“É preciso entender a agroecologia como uma ciência capaz de transformar a realidade”, destaca presidenta da ABA
Confira entrevista com Islandia Bezerra, presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia
Desde a década de 70 a Agroeocologia vem crescendo no Brasil e no mundo. Enquanto ciência ela difere de tantas outras, já que trata das questões (perguntas de pesquisa) aliada às propostas (encaminhamentos e proposições). Várias correntes de pensamentos, de forma transversal e intersetorial, vêm contribuindo para a construção deste conhecimento. No ano de 2004 foi criada a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-agroecologia), que tem centralizado os debates em torno da construção do conhecimento agroecológico nos Congressos Brasileiros de Agroecologia (CBA). O XI ocorreu em 2019 em Aracaju (SE).
Frente a um governo que nega várias evidências da ciência mundial e é notoriamente a favor do agronegócio, não tem sido fácil para quem produz o saber agroecológico nas chamadas instituições formais, como universidades, centros e/ou instituições de pesquisa que produzem o conhecimento científico. Para entender melhor a importância destes setores e os desafios que estão enfrentando, conversamos com Islandia Bezerra, atual presidente da ABA, nutricionista, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais/UFRN e Pós-Doutora na Universidad Autónoma de Chapingo/UACh, México. Atualmente é Professora Associada da Faculdade de Nutrição – FANUT/UFAL.
Na entrevista à NINJA, ela destaca o drástico corte nos investimentos em pesquisas por parte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), principais agências de fomento à pesquisa no Brasil. Critica também a interferência das grandes corporações – especialmente do setor de produção e/ou processamento de alimentos – ,que promovem editais de financiamento à pesquisa nas universidades. Mas ressalta a importância dos movimentos nos territórios, que com a suas práticas resistem à cooptação do agronegócio. É importante, segundo ela, potencializar estas experiências e políticas públicas que promovem a sustentabilidade e a soberania e segurança alimentar e nutricional sob a ótica do Direito Humano à Alimentação Adequada.
Qual o principal debate hoje em relação à ciência agroecológica?
Primeiro precisamos pensar que a agroecologia enquanto ciência, prática e movimento, está sofrendo uma cooptação muito intensa. São várias pesquisas financiadas e/ou subsidiadas por grandes corporações que supostamente trazem o debate da questão ecológica, da sustentabilidade, responsabilidade social, etc. O processo de cooptação da ciência agroecológica atualmente está contínuo e intenso, especialmente, por parte dos setores produtivos e de processamento do sistema alimentar de produção industrial. Porém, referencio aqui dois nomes que me antecederam à frente da presidência da ABA-agroecologia (Profa. Irene Cardoso e Prof. Romier Paixão) sempre nos lembram: “na agroecologia que construímos pautada nos princípios de uma ciência cidadã e transformadora, o que jamais será possível cooptar são os processos no campo e nos territórios”. São eles que na prática envolvem as pessoas dos mais distintos segmentos sociais na construção do conhecimento agroecológico e que não são passíveis de cooptação.
O desafio também se expressa de forma muito concreta no âmbito das universidades, dos centros de pesquisa e, ainda, dos institutos federais, por exemplo, com o não financiamento público (editais sem renovação) dos Núcleos de Estudo em Agroecologia (NEAs). A ABA participou ativamente da construção desses editais de fomento e agora, infelizmente, estamos sem nenhum recurso orçamentário previsto. Vale ressaltar que a grande maioria dos NEAs é alocada nos Institutos Federais de Educação (IFEs), ou seja, tem muita capilaridade nos territórios. Atualmente, os que estão ativos – em que pese a contexto de pandemia – funcionam por amor de quem está participando.
Outro desafio que se coloca para nós, é desconstruirmos a ideia e/ou o imaginário de que a agroecologia “não gosta” de tecnologia. Pelo contrário! O que não apoiamos e nem reproduzimos, é aquela tecnologia excludente e que não incorpora muito menos respeitam os saberes, ou aquelas que os povos não se apropriam. Construímos um conhecimento (desenvolvendo tecnologias) que preza pela sua replicabilidade. Pelas suas infinitas possibilidades de serem melhoradas, adaptadas, incorporadas no dia a dia de fazer agroecologia nos campos, nas florestas, nas águas, nas cidades. Questionamos sim a ciência que serve ao sistema atual que exclui, expropria, contamina, destrói, desmata e mata. Que ciência é esta?
Outro desafio que se coloca para nós, é desconstruirmos a ideia e/ou o imaginário de que a agroecologia “não gosta” de tecnologia. Pelo contrário!
Obviamente que outras áreas do conhecimento também promovem estes enfrentamentos, mas a agroecologia agrega as diversas áreas do conhecimento: nutrição, medicina, medicina veterinária, zootecnia, dentre outras, assim como a sociologia, comunicação, economia, etc. Elas convergem e dialogam entre si. Somos muitas mentes que pensam, sentem, propõem ações, transformam. Mas estamos compartimentados, “departamentalizados” nas nossas caixinhas alocadas nas áreas de conhecimento da Capes/CNPq. Precisamos nos unir e nos fortalecer para também nos sentirmos e seguirmos dispostos (as) nesses enfrentamentos, especialmente no de cooptação. Os CBAs são importantes por isso, são nesses momentos de encontros que vemos toda aquela sinergia em prol da construção do conhecimento agroecológico. Respiramos profundamente e dizemos para nós mesmas (os): “Ufa, não estamos sozinhas (os). No último CBA tivemos mais de 2.400 trabalhos – de pesquisa, de relatos de experiências – submetidos por autoras (es) de norte a sul do país que trazem a agroecologia na sua essência. Os CBAs acabam sendo esse sopro de energia, de oxigênio para seguirmos os enfrentamentos nos nossos campos de ensino, extensão e pesquisa.
Em que pé estão as discussões nos CBAs, existem temas mais recorrentes?
Os trabalhos do eixo temático que trata do tema de manejo de agroecossistemas batem recorde. Têm um diferencial para além das pesquisas, trabalhos de conclusão de curso (TCCs), monografias, dissertações de mestrado e/ou teses de doutorado com relatos de experiências admitidas recentemente pela ABA. Essa modalidade traz os relatos de agricultoras (es), camponesas (es), quilombolas, povos originários, experimentadoras (es) de agricultura urbana, dentre outros segmentos.
As experiências que enalteceram o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), quando ele ainda tinha uma dotação orçamentária significativa e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), especialmente como ações estratégicas que impulsionam a agroecologia nos territórios foram bastante expressivos. Também foram trazidas iniciativas municipais, como as feiras agroecológicas ou as CSAs (comunidades que sustentam a agricultura) que prezam pelos circuitos curtos de produção e consumo. Nos CBAs, também temos conseguido construir uma série histórica bastante expressiva de outras pesquisas e relatos de experiências sobre o protagonismo das mulheres e das juventudes na agroecologia.
Como você enxerga a intervenção das grandes corporações subsidiando as pesquisas no campo da produção de alimentos?
Esse é um tema controverso e bastante polêmico. Sou avessa, por exemplo, aos editais subsidiados por grandes corporações do setor como as fundações da Cargill e/ou Nestlé – para citar como exemplos -, pois acredito em uma ciência cidadã na qual o conhecimento construído deva ser partilhado com a sociedade. Ao acessar editais cujos recursos se originam dessas empresas mesmo que não seja explicitado, existe sim, uma relação conflituosa de interesse. Então, é preciso atentar aos valores éticos imbricados nessas relações.
O financiamento público para a construção do conhecimento mediante as agências públicas de fomento como o Capes e CNPQ, é uma responsabilidade moral, ética e social do Estado para a construção de conhecimento científico em favor da sociedade brasileira. Investir na educação, na pesquisa científica, na infraestrutura dos centros de pesquisa não é favor. É uma obrigação constitucional. Porém, o que se vê nos últimos anos, infelizmente, é o desmonte dessas políticas. É fundamental trazer esse debate para a sociedade. Recentemente, foi criada uma iniciativa que aborda essas questões, veja aqui suas reivindicações.
Há uma narrativa desde o início de negação da ciência, que aflorou mais com o debate sobre a vacina na pandemia. Mas como tem sido no CNPQ e demais órgãos?
Os investimentos para pesquisa caíram drasticamente, sem considerar o negacionismo promovido pelo atual governo – além de uma parcela significativa da população que o segue – das chamadas ciências “duras” como a biologia, a medicina e a genética, por exemplo. Não que estas sejam ciências irrefutáveis, ou que seus achados científicos sejam finitos. Refutar faz parte. Afinal, é assim que se constrói o conhecimento. Mas, o que choca é que esse negacionismo é feito/reproduzido sem embasamento nenhum. Negam evidências científicas produzidas não apenas pelo Brasil e sim pelo mundo. Esse comportamento irresponsável em pleno contexto de pandemia é absolutamente inadmissível. O negacionismo se expressa neste governo de várias formas, negando estas ciências e também negligenciando outras que são base para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, como sociologia, antropologia, história, filosofia entre outras. É um conjunto de fatores que vai culminar no desmonte da ciência pública brasileira.
Como você avalia os programas de comercialização e outros mecanismos no campo das políticas públicas?
Como mencionei antes, a Agroecologia como ciência nos desafia a problematizar e, sobretudo, agir para a transformação da realidade. Nesse campo das políticas públicas, e aqui menciona-se especificamente o Programa de Aquisição de Alimentos/PAA e a Política (apesar de ter o nome de programa) Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), nos aproximou ainda mais da economia, administração, gestão pública, etc. Pois a partir desses processos empíricos – da operacionalização da política – conseguimos “costurar” muitas reflexões e, o mais importante, diagnosticar fatores que limitam e propor alternativas. Entender como opera a política, ou melhor, a equipe da gestão que a operacionaliza, é uma contribuição enorme para trazer os princípios da agroecologia como uma ciência capaz de transformar a realidade.
Qual a diferenciação da proposta agroecológica para a do agronegócio, e o que emperra para que esta se torne uma realidade em grande escala?
É preciso colocar de maneira muito contundente que existe de fato uma diferença muito marcada entre esses dois sistemas alimentares, que é o acesso à terra. Talvez, no campo da prática e também do movimento agroecológico, esse seja o principal fator que emperra, limita e cerceia a produção de alimentos e por conseguinte o consumo, desses alimentos. Falar/pesquisar/propor alternativas ao atual sistema hegemônico de produção industrial e o não falar na urgência de uma política de reforma agrária que democratize o acesso à terra não faz nenhum sentido. Essa é a pauta. Precisamos fortalecer ainda mais a agroecologia nos territórios, não apenas como prática e movimento, mas também como ciência.
Afinal, é a ciência agroecológica que, a partir do atual contexto pandêmico (ou por que não dizer, sindêmico) vem questionando o atual sistema de produção alimentar industrial. Mostra ao mundo com base em evidências científicas, mediantes os mais distintos estudos de diferentes áreas do conhecimento, que este sistema é (sempre foi) insustentável. A agroecologia como ciência-movimento-prática também questiona a prática não apenas de fazer, mas também do ser machista, racista e facista. Por isso, somamos ao coro das mulheres dos movimentos agroecológicos “Sem feminismo não há agroecologia”, trazendo também a dimensão racial, “Se tem racismo não é agroecologia”.
Para finalizar, não poderia deixar de mencionar que, enquanto professora, pesquisadora e extensionista, que atua no campo da ciência da nutrição e atualmente preside a aba-agroecologia, me sinto muito honrada por ocupar este espaço. A aba é uma grande instituição composta por pessoas comprometidas com a construção do conhecimento agroecológico pautada nos princípios da ética, do cuidado, do respeito e que, por estes motivos, me encoraja a seguir problematizando o ato de comer. De se alimentar e alimentar aos demais, e levantar questionamentos a esse sistema atual que promove destruição, doenças e mortes. Precisamos desconstruir muito sobre o que sabe acerca dos alimentos. Diferente do agronegócio que produz, reproduz e perpetua desigualdades, fome e doenças associadas à má-alimentação, a agroecologia nos oportuniza outros questionamentos e nos ensina cotidianamente que esse é o caminho.