Muito se tem falado sobre a possibilidade de um aprofundamento da crise alimentar, no Brasil e no mundo, em função, dentre outros fatores, da guerra que está ocorrendo entre a Rússia e a Ucrânia. Vários pesquisadores, de diferentes setores, apontam alguns elementos preocupantes no curto e médio prazos: falta de matéria-prima para os fertilizantes, alta dos combustíveis e do gás e vários outros desequilíbrios do mercado. A fome aumentou nos últimos cinco anos no país – são 3 milhões de pessoas a mais, em estado de desnutrição, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este quadro pode piorar, em proporções ainda não muito claras.

Para falar sobre o sistema agroalimentar e as alternativas possíveis para se ter uma produção e distribuição de alimentos saudáveis menos desigual, conversamos com Laércio Meirelles, agroecólogo, escritor, coordenador do Centro Ecológico e integrante da coordenação da Rede Ecovida de Agroecologia. Há mais de 30 anos junto ao movimento agroecológico, já percorreu mais de 40  países dando palestras e visitando experiências exitosas, que buscam um modelo de desenvolvimento socialmente mais justo e ambientalmente mais adequado. 

Na entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o agrônomo explica a viabilidade de sistemas alimentares isentos de substâncias químicas sintéticas e sementes geneticamente modificadas. Relembrando grandes cientistas, aponta os gargalos técnicos e políticos para a ampliação da produção agroecológica em maior escala. O problema, segundo ele, são os interesses avassaladores das grandes empresas e do dito mercado, em detrimento da saúde das pessoas e do meio ambiente, que está cada vez mais devastado e impactado pela forma como nossa sociedade se organiza. Um sistema que repensa a própria economia de escala, a noção de crescimento sem limites e aposta nos pequenos empreendimentos descentralizados e de curtos espaços para a comercialização, esses seriam alguns dos caminhos para transformar essa estrutura que não nos entrega o que promete, defende Meirelles. 

A mídia e diversas instituições internacionais, inclusive a ONU, têm alertado sobre uma possível crise alimentar mundial em função da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Qual a sua avaliação a respeito?

No nosso campo, da agroecologia, desde sempre alertamos sobre essa linha tênue pela qual caminha o sistema agroalimentar mundial. É um equilíbrio muito frágil para um tema tão sensível, que é a fome. A fome, na grande maioria das vezes, ocorre por uma questão mais de distribuição do que propriamente produção, mas não podemos ignorar que ambos, produção e distribuição, foram estruturadas em bases frágeis, dentre elas a alta dependência de petróleo. Em vários momentos, o modelo da monocultura agroexportadora, de gigantescas extensões de terras, é muito dependente de petróleo. Boa parte dos agrotóxicos e fertilizantes químicos solúveis, principalmente o nitrogênio, tem sua fabricação dependente de petróleo. Além disso, vale lembrar que o Brasil importa uma quantidade absurda de nutrientes, cerca de 80% do consumo do NPK (Nitrogênio, Fósforo e Potássio).   

Em tempos de emergência climática, é fundamental falar sobre esta dependência do petróleo, que também é muito sensível à geopolítica mundial. Estamos em mais uma crise no preço do petróleo, custando agora  mais de U$ 100 o barril. E mesmo que, por um milagre, a guerra acabasse hoje, especialistas afirmam que o preço do petróleo seguirá em um patamar alto. É um sistema agroalimentar muito focado nos fertilizantes, nos agrotóxicos e no transporte dos alimentos por distâncias oceânicas.

Há uma discussão hoje sobre a importação do trigo proveniente da  região em  guerra. Por outro lado, a Argentina, que é aqui ao lado, quer proteger a sua produção…

Importamos muito trigo da Ucrânia e da Rússia com um absurdo gasto energético. Mais um exemplo, dentre muitos outros,  que demonstra a vulnerabilidade no equilíbrio do sistema agroalimentar mundial. Existe uma lógica trabalhada pelos economistas no pós Segunda Guerra Mundial chamada “vantagens comparativas”, na qual os países não devem se preocupar com determinadas produções se outros já fazem. Para que produzir trigo se a Rússia e a Ucrânia produzem muito melhor? Produzimos café, cacau… Vendemos e compramos outras commodities. Mas, comprar muitos dos alimentos essenciais é um equilíbrio muito frágil. Olha só o que ocorre aqui no interior do litoral norte gaúcho, onde o Centro Ecológico atua. Sempre teve uma produção muito diversificada, característica da agricultura familiar. Em um dado momento, há 50 anos, estimularam o plantio e a venda da banana, porque dava mais dinheiro. Hoje, predomina o monocultivo desta linda fruta. O que ocorre? Pelo interior, passam caminhões vendendo aipim, batata-doce, laranja, verduras etc. Coisas que todos tinham em casa, agora compram. A tese das vantagens comparativas pode até aumentar a renda bruta, nem sempre aumenta a renda líquida e ainda acentua a insegurança alimentar. Em um exemplo hipotético: se o caminhão não passar mais, a comunidade terá que gastar mais, em deslocamento, para obter esses alimentos, ou se alimentará só de banana. Tem aqueles que acreditam que o “mercado” regula essa relação. Mas, e se ocorre uma guerra nesta região? Parece algo caricato e muito simplório, mas é o que está acontecendo na economia mundial. Como vamos nos virar sem esses produtos que a Ucrânia e a Rússia são protagonistas no comércio mundial? Agora, o Brasil corre para comprar potássio do Canadá e trigo da Argentina, mas ao mesmo tempo esses produtos estão batendo recordes nas bolsas no preço atual e no futuro. As consequências desta guerra não estão claras ainda, mas podem ser muito nefastas. Quem arcará com as consequências da maior parte dos desequilíbrios? Os de sempre: a parte da população com menos, ou nenhuma, renda.  

Uma alternativa a esse modelo dependente deveria, então, considerar uma proposta de sistemas e formas integradas de produção?

Nós da agroecologia sempre falamos isso, a solução não é pontual, temos necessidade de redesenhar o modelo, pois não estamos caminhando bem. Nesses 30 anos de luta, muitas vezes falamos que uma guerra poderia vir a qualquer momento. Não se trata de ser profeta, mas sim de ver um pouco a história. E uma guerra pode desarranjar todo o sistema agroalimentar e as coisas se complicarem na prateleira dos  supermercados. E agora, temos  uma pandemia e uma guerra juntas… Precisamos redesenhar a nossa dependência de insumos, por exemplo. Vou dar um exemplo,  o trabalho da pesquisadora Johanna Döbereiner, que faleceu há poucos anos, mostrou o o óbvio: a soja, por ser uma leguminosa, tem a capacidade biológica, em íntima relação com os microrganismos, de fixar nitrogênio do ar. Ela achava um absurdo usarmos adubos nitrogenados na soja, sendo ela uma leguminosa. Defendia o aprofundamento das pesquisas para não dependermos de nitrogênio neste cultivo, potencializando sua capacidade de fazer o que a soja  faz há milhões de anos. Com isso, se economizaria uma quantidade absurda de nitrogênio no complexo soja, que é gigante no Brasil. Até onde sei, esta eminente pesquisadora nem se autodenominava uma agroecóloga, mas suas pesquisas e luta foram capazes de economizar centenas de milhões de dólares em fertilizantes químicos, além de evitar esse gigantesco impacto na natureza. Ela fez o que nós preconizamos:  trabalhar alguns elementos agroecológicos óbvios, observando a natureza e aprendendo com ela e, assim, utilizar  tecnologias que não corroboram com essa dinâmica tão frágil do sistema agroalimentar mundial.

Mas e os outros nutrientes?

A lógica é semelhante. O mesmo que foi feito com o nitrogênio poderia ser feito com outros nutrientes, como o fósforo. Nossos solos são ricos em fósforo, que podem estar indisponíveis, momentaneamente, para nossos cultivos. Como devo suprir a deficiência deste elemento? Trazendo fósforo de Israel ou pesquisando quais microrganismos do solo podem disponibilizar às plantas o nutriente que está ali, ao seu lado? Mas isso não atende ao interesse monstruoso das grandes indústrias ao redor da agricultura. É possível produzir com um método mais inteligente utilizando os elementos naturais ao redor, para potencializar a produção. Queremos produzir cada vez melhor e mais por área, dar certa escala, isso é parte da dinâmica da agricultura, mas a agroecologia também se preocupa com outros elementos: ambiental, social, cultural… O povo está apavorado com o preço do petróleo, que reverbera no da ureia, do agrotóxico etc. A agroecologia quer repensar esses insumos a nível local. A professora Ana Primavesi defendia desde os anos 1960 uma agricultura de sol, ou seja, transformar a energia da luz do sol em energia química e em massa verde por meio da fotossíntese. Essa massa verde pode e deve servir de insumo para substituir, ao menos em parte, o petróleo.  Mudar a matriz energética na agricultura do petróleo para o sol é um imperativo do século XXI.

Tem um livro dos anos 1960 chamado O negócio é ser pequeno. O autor Ernst Friedrich Schumacher trabalha como a economia de escala tem seus limites e nem sempre é a mais oportuna, necessária ou economicamente viável. Falamos de uma descentralização com unidades familiares, coletivas, municipais, para fazer a transformação e venda dos nossos alimentos, como do trigo, que precisa ser moído, ou do café, que precisa ser torrado para chegar às nossas mesas. Ou ainda de uma fruta, da qual se faz suco. Esse processamento necessário, não o ultraprocessamento, pode ser feito de forma muito mais descentralizada. Trabalhar com mercados, os mais curtos possíveis, aproximando produção e consumo. Não somos contra a exportação,  mas defendemos algo mais racionalizado, feito com inteligência e incorporando a variável socioambiental.

Isso tudo dialoga com o conceito de soberania alimentar? Onde ele se encaixa nisso?

Esse conceito foi desenvolvido pela Via Campesina no encontro em Roma, em 1996, para discutir segurança alimentar. A agroecologia logo incorporou esse conceito de soberania nas suas premissas. Temos que ter direito e capacidade de decidir o que e como queremos comer.  Momentos como este, de guerra, nos mostram a importância dessa ideia. A questão anteriormente mencionada, das vantagens comparativas, nos leva a uma realidade oposta à soberania alimentar. Pode até se dizer que, do ponto de vista estritamente financeiro, em dadas circunstâncias não vale tanto diversificar o cultivo numa propriedade ou país, o que discordo. É sempre  necessário estar atento. Quem gestiona deve preparar sua propriedade, ou país, para os momentos de crise ou escassez, que nunca sabemos quando chegarão. 

Há uma narrativa do agronegócio de que a agroecologia, por não usar produtos químicos, é inviável no controle das pragas e na produção em  escala. Defendem que não é possível alimentar a todos com um modelo sustentável. Qual a sua opinião?

Uma ideia muito presente na condução do nosso desenvolvimento, principalmente das grandes empresas, é criar dificuldades para vender facilidades. A agricultura sempre teve seus problemas de pragas, de insetos que se proliferam em grandes quantidades. Mas, pensadores mais contemporâneos e muitos estudos mostram que, graças a muitas das práticas da agricultura convencional, como o monocultivo, o uso de fertilizantes altamente solúveis e agrotóxicos, dentre outras, potencializou-se muito o aparecimento de pragas. A agricultura brasileira e a mundial veem aparecer pragas a cada ano. Hoje, as plantações estão cada vez mais sensíveis. Isso é explicado pela Teoria da Trofobiose, do pesquisador francês Francis Chaboussou, que nos mostra esse problema das ditas pragas como sendo mais consequência da agricultura convencional do que uma causa. Os agrotóxicos resolvem um problema que eles criaram, tem muita literatura e prática sobre isso. O agricultor percebe que o volume de problemas só aumenta. Os transgênicos e os agrotóxicos vêm aumentando uma série de problemas, que pretendiam resolver.     

Temos como fazer agroecologia em grande escala sem agrotóxicos. Resta saber se nos interessa enfrentar os poderosos interesses econômicos. Lembro do José Lutzenberger, um dos pais do ambientalismo nacional, dizendo: “grandes lavouras ecológicas são agronomicamente possíveis, mas socialmente indesejáveis”. Como sociedade, precisamos refletir  sobre o tamanho das unidades produtivas que julgamos conveniente. É possível alimentar a sociedade a partir de uma agricultura que se baseia em princípios agroecológicos, várias análises e projeções demonstram isso.   

Não sei se a agroecologia é capaz de alimentar a sociedade, mas sei que uma agricultura baseada em produtos químicos não é. Estamos vivendo essa experiência [da agricultura convencional], de forma intensa, há mais de 50 anos e temos 1 bilhão de pessoas passando fome. Questionam a capacidade de uma agricultura baseada nos princípios da agroecologia alimentar a população do planeta. Ok, vamos discutir isso. Mas, o que podemos afirmar, sem discussão, é que essa agricultura dos monocultivos, em gigantescas extensões, cara, poluente, que intoxica as pessoas e a natureza, não tem sido capaz de alimentar a humanidade. Concordo que essa troca de modelo, ter a agroecologia como base para a agricultura planetária, seria uma discussão mais delicada se todos estivéssemos alimentados e contemplados, mas não é o caso. É um escândalo essa quantidade de famintos no mundo. O que surpreende é como nós, como sociedade, aceitamos conviver com um fato desse, com uma tragédia desta natureza. Até quando?