Cenas dos clipes de Maria Maria e Dona de Mim

Crescendo com pais dos anos 60 e 70, ouvia muita coisa diferente em casa. Amado Batista, Rita Lee, Odair José, Emílio Santiago, Djavan e… Milton Nascimento.

“Maria Maria” era um hino. Tocava nos domingos, nas reuniões dos amigos dos meus pais, na oficina de costura da minha mãe. Nesse último cenário, talvez seja o primeiro que mais me marcou – eu sentada no chão, entre retalhos e giz, com a tilintar das verloques.

É preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre.

Exatamente essa parte da música era trilha sonora do sorriso da minha mãe. Das minhas tias. Das mulheres negras da minha família. Que entre moldes e filhos correndo, contavam relatos de uma vida cheia de violência, sempre assumindo que eram culpadas por tudo que a vida tinha colocado em seu caminho.

Lembro da minha mãe me contando no dia que ela percebeu que minha avó não corria pela roça que moravam porque estava feliz ou brincando noite adentro e sim porque fugia para não apanhar do meu avô no meio da madrugada. Por uma triste coincidência, o nome a minha vó é Maria.

Talvez por isso, quando aos 14 anos, dentro de uma sala de coral, me chegou a mão a partitura de Maria Maria, eu respirei fundo. Eu entendi melhor a construção da música, admirei a inteligência do arranjador, mas de certa forma ela me pareceu ainda mais cruel. A minha linha, de contraltos, tinha menos presença na melodia e acabava deixando a letra ainda mais deprimente

Ao ficar mais velha e entender melhor que algumas mulheres estavam fadadas a trajetórias diferentes das outras e que a maioria dessas mulheres tinham a minha cor, vi esse hino se transformar na música de fundo da infelicidade das minhas tias, mãe, avó e amigas.

Na verdade, quem traz na pele essa marca misturava a dor e alegria.

Avanço pra 2018. Mulheres empoderadas, nas ruas. Minha mãe perto de se tornar a primeira mulher da minha família a se formar numa universidade. Minha avó na sua rocinha, cuidada pelas filhas. Em determinado ato de mulheres, surge a dúvida – Maria Maria poderia ser tocada e ser encarada como uma ode a nossa força?

Muitas dizem que não. O verso “De uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta” amargurava a garganta de qualquer uma. Com flashes dos sofrimentos da minha família, concordei.

Eu não queria que minha avó risse quando deveria chorar quando era espancada. Eu não queria que minha mãe forçasse o riso até a depressão passar. Eu desejava para elas vida, não apenas aguenta. Votei contra.

20 de setembro. 9 dias antes do #EleNão que tomaria o país, Milton Nascimento lança o clipe de Maria Maria. As correntes de whatsapp gritam, choram, comemoram. Eu, ignoro. Até a madrugada. E quando assisto, não resisto a um minuto sem cantar cada palavra, mas também chorar cada segundo. Em tempo real, entendia a letra, a melodia, a intenção e as mulheres da minha família.

É preciso ter força, é preciso ter raça e é preciso ser humilde sempre. Ao ver e ouvir novamente percebo a arrogância que era negar aquela música como parte da história linda, e mais importante, REAL que minhas matriarcas construíram.

Negar “Maria Maria” também era negar minha mãe, Maria Conceição de Sene Faria.

Feminismo nenhum deu tanto descanso pra minha vó quanto os domingos cantando essa música. E eu que, como nós, luta para que isso mude, não consigo negar que todas nossa vida foi uma sequência de rir em momentos de dor e continuar tendo fé na vida. É isso, ou morrer.

Fazer as pazes com a música me abriu caminhos. Oito dias depois recebi “Dona de Mim”, da Iza. Mais próxima do imaginário atual das mulheres negras, sua letra põe musicalidade na história da geração de mulheres negras que faço parte:

“Sempre fiquei quieta, agora vou falar, se você tem boca, aprende a usar. Sei do meu valor e a cotação é dólar, porque a vida é louca, mano, a vida é louca”.

O clipe conta a história de várias mulheres negras diferentes – professora de escola pública sob um tiroteio, uma jovem mãe solo e seu filho, uma advogada trans defendendo uma senhora de um tribunal de homens brancos. Somos nós contendo o pânico em sala de aula, embalando o bebê em condições precárias e com algemas na mãos. Somos nós também impondo nossa existência em todas essas situações.

A letra segue contando

“Já não me importa a sua opinião, o seu conceito não altera minha visão.
Foi tanto sim que agora eu digo não”.

A canção cura e guia. Aceita as vezes que me perdi, mas me lembra que não posso parar. Me deixa chorar, mas não me afogar. Coincidentemente também com um coral no enredo, o clipe termina com o encontro dessas mulheres. Ali ser mãe, professora, advogada, trans, cantora, dançarina, se misturam. Como queremos nossa militância atual.

Ao fim, entendo que “Maria Maria” está para minha mãe como “Dona de Mim” está pra mim.
E finalmente feliz, assumo:

Sou Dríade. Filha de Maria. Dona de Mim que mereço amar como outra qualquer planeta.

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