
‘Dormir de Olhos Abertos’: um olhar inquietante de Nele Wohlatz sobre imigrantes em Recife
A diretora alemã retorna ao Brasil para investigar as fraturas sociais através da vivência de imigrantes taiwaneses e chineses
Por Hyader Epaminondas
Chegando pela Sessão Vitrine Petrobras, o cinema de Nele Wohlatz encontra sua força na ênfase do olhar curioso do desconhecido: num gesto mínimo, no silêncio desconfortável, no instante em que a identidade parece vacilar. Com a produção brasileira de Emilie Lesclaux e do querido Kleber Mendonça Filho, em Dormir de Olhos Abertos a diretora retoma sua investigação sobre deslocamento e pertencimento, mas desloca o eixo da questão.
“Mal conseguimos nos entender no nosso próprio idioma” em meio a um diálogo, essa frase talvez sintetize com precisão o espírito do filme. A obra fala sobre múltiplas linguagens, sobre formas de comunicação que vão além da fala, ao mesmo tempo em que atribui ao silêncio uma presença quase esmagadora. Nesse jogo de contradições, a cena do ar-condicionado se torna emblemática: em tese, um aparelho simples, com poucos botões, mas que invariavelmente gera confusão e exige esforço constante para funcionar, uma metáfora clara para os ruídos, falhas e improvisos da comunicação humana.
O silêncio, aqui, não é ausência: é desconforto. Ele caminha lado a lado com a experiência do imigrante, reforçado pela alegoria do aquário de peixes, símbolo da condição de quem vive em deslocamento, observando, contido, mas sempre fora de um pertencimento pleno.
A narrativa se estrutura a partir de três perspectivas distintas sobre ser estrangeiro, alternando espanhol, português e mandarim em uma construção não linear, passando pelo filtro curioso de Kai de Liao Kai Ro, atravessando a angústia de Fu Ang interpretado por Wang Shin-Hong e o olhar contemplativo de Xiao Xin de Chen Xiao Xin. Esse trânsito de línguas encontra eco nos postais escritos e nunca enviados: fragmentos de memória que carregam tanto a tentativa de conexão quanto a impossibilidade de fazê-la se concretizar.
Não se trata mais apenas de aprender uma nova língua ou se adaptar a um novo ambiente através da perspectiva de um trio de personagens, colocando a ênfase de seus enquadramentos em suas rotinas nada glamourosas que revelam a forma áspera da vida como ela é. A produção assume uma linguagem de dramédia para se dedicar a registrar o incômodo mais profundo: a condição de habitar um espaço sem nunca estar plenamente integrado a ele e, dentro do contexto paulistano, isso ganha uma perspectiva bem mais ampla.
Essa sensação se materializa nas imagens, que recusam a grandiosidade do cartão-postal. Recife, onde se passa a narrativa, não é captada pelo olhar turístico nem pela paisagem exótica. É uma cidade fragmentada, de corredores estreitos, mercados populares e condomínios imponentes. Esses cenários funcionam como metáforas do desencontro: lugares de passagem, onde tudo acontece, mas nada enraíza. Wohlatz projeta nesses espaços como se eles mesmos fossem estrangeiros dentro da cidade, corpos estranhos em constante atrito com o entorno.
O título do filme condensa essa atmosfera: Dormir de Olhos Abertos não é apenas um conselho prático de sobrevivência, mas a formulação de uma poética da desconfiança. Migrar significa aprender a permanecer em alerta, mesmo nos momentos em que seria esperado o repouso. É viver no fio entre a adaptação e a rejeição, carregando a tensão de não poder se entregar totalmente ao ambiente. A insônia aqui não é apenas física, mas existencial.
Entre Recife e São Paulo: o estrangeiro como espelho das diferenças internas
Essa abordagem ressoa com um aspecto profundo da sociedade brasileira: nossa relação ambígua com a migração. O Brasil se constituiu a partir de sucessivos fluxos indígenas deslocados de seus territórios, a diáspora forçada de africanos escravizados, os ciclos de imigração europeia, asiática e árabe.
Ainda assim, persiste um olhar seletivo sobre quem é “bem-vindo” e quem é tratado como intruso. Enquanto alguns grupos, em sua maioria eurocentrados, foram incorporados ao mito da miscigenação como “parte do Brasil”, outros permanecem invisíveis ou alvos de preconceito e discurso de ódio. Essa vivência, no entanto, não se limita ao encontro com o estrangeiro. Ele já se inscreve nas próprias cidades brasileiras, onde diferenças internas produzem fronteiras simbólicas tão fortes quanto as geográficas.
Basta pensar somente dentro das fronteiras da cidade de São Paulo: a metrópole, que concentra algumas das maiores comunidades imigrantes do país, é também marcada por abismos internos. Seus quatro eixos: norte, sul, leste e oeste, carregam culturas, realidades sociais e cotidianas tão distintas que, muitas vezes, parecem pertencer a países diferentes. Para quem cruza a cidade, o deslocamento pode ser tão brusco quanto atravessar fronteiras internacionais: há choque de linguagens, de códigos sociais e até de modos de ocupar o espaço público.
É nesse atravessamento que Dormir de Olhos Abertos encontra uma camada ainda mais contundente de significados. O estrangeiro que não pertence ao Recife ecoa o próprio brasileiro que, dentro de sua cidade, pode sentir-se fora de lugar ao atravessar seus extremos. A premissa de Nele Wohlatz ao registrar imigrantes taiwaneses e chineses em Recife acaba não falando apenas sobre eles: fala também sobre nós. Expõe tensões naturalizadas, desnuda mecanismos de exclusão e desmonta o mito de uma integração que raramente se concretiza.
E talvez sem querer, levando em consideração a nacionalidade alemã da diretora, o filme não apenas retrata a condição do imigrante, mas também espelha as fraturas de um Brasil que insiste em se pensar como unidade. Dormir de Olhos Abertos é um cinema de passagens, de ruídos, de silêncios. Ele constrói uma experiência que nos coloca no mesmo estado de vigília que seus personagens enquanto pensamos em situações similares que passamos no nosso cotidiano vivendo numa metrópole.
E ao subir dos créditos a pergunta incômoda permanece: se estar desperto significa sobreviver, em que momento e em qual lugar será possível, enfim, relaxar?