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Do GAPA ao Museu Bajubá: Luiz Morando resgata a memória LGBTQIA+ de Belo Horizonte
Em entrevista exclusiva, autor dos livros “Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque” e “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte” mergulha no passado para trazer à tona narrativas que foram silenciadas
Por Kaio Phelipe
Em Belo Horizonte, a memória LGBTQIA+ também pulsa através do trabalho de Luiz Morando, ativista e pesquisador dedicado a resgatar e preservar as histórias da comunidade. Autor dos livros “Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque” e “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”, Luiz mergulha no passado para trazer à tona narrativas que foram silenciadas e personagens que desafiaram as normas de seu tempo.
Seu trabalho minucioso de pesquisa revela a riqueza da história LGBTQIA+ da capital mineira, desde os encontros clandestinos no Parque Municipal nos anos 40 até a trajetória de Cintura Fina, uma travesti negra pioneira que desafiou as convenções sociais, marcou época em Belo Horizonte e hoje é cidadã honorária da cidade. Através de seus livros e projetos como o Museu Bajubá, Luiz Morando nos convida a revisitar o passado e reconhecer a importância da comunidade LGBTQIA+ na construção da história da cidade.
Nesta entrevista, Morando compartilha suas experiências no ativismo, relembra momentos marcantes do GAPA-MG (Grupo de Apoio à Prevenção da Aids) e do Museu Bajubá, e discute a importância de resgatar a memória LGBTQIA+ para combater o preconceito e fortalecer a identidade da comunidade. Acompanhe a entrevista completa contada por quem se dedica a preservar a memória e a garantir que as vozes do passado ecoem no presente e inspirem o futuro.
Como foi trabalhar no GAPA-MG?
Foi uma experiência de vida. Entrei no GAPA em outubro de 1992 e encerramos as atividades do grupo em dezembro de 2014. Tive uma experiência incrível e sensacional durante vinte e dois anos. Meu atendimento não era voltado diretamente à pessoa vivendo com HIV ou aids, mas trabalhei com educação, prevenção e sensibilização da comunidade, principalmente com o público de homens homossexuais de Belo Horizonte. O primeiro projeto de prevenção à aids do GAPA voltado para o público homossexual masculino foi um projeto que eu criei junto com Roberto Chateaubriand, voluntário e presidente do grupo na época. Roberto fazia parte do GAPA desde 1987, quando o grupo foi criado em Minas, e já tinha experiência de trabalho com profissionais do sexo cisgêneros, trans e travestis. Entrei no grupo em 1992 e logo após, no ano seguinte, ele e eu formulamos um projeto para apresentar ao Ministério da Saúde. Esse projeto foi selecionado e aprovado. Em 1995, nós o executamos e se chamava “Sexo, Prazer & Homens”. Durou três anos, mas foi sucedido por outros projetos dentro do GAPA voltados para o mesmo público.
Eu já tinha experiência de sociabilidade constituída nos territórios de vivência e convivência gay em Belo Horizonte. Desde 1987, frequentava bares e boates. Mas, a partir de 1995 e da execução desse primeiro projeto, vivi outro lado, preparando abordagens, coordenando as ações dos monitores. Eram vinte e quatro monitores, distribuídos em ações em bares, boates, cinemas e pontos de pegação na rua, em locais abertos. Teve esse lado de preparar material para esse público, coordenar o projeto, trabalhar no grupo de convivência que a gente criou dentro do GAPA para discutir temas de interesse, supervisionar o primeiro serviço de telefone criado em Belo Horizonte para conversar de forma anônima com pessoas LGBTQIA+ que tivessem dúvidas, não apenas sobre HIV e aids, mas que quisessem conversar sobre sua identidade. Recebíamos muitas ligações de pessoas que ainda não tinham saído do armário e tinham medo. Foi maravilhoso trabalhar no GAPA e assumir papéis de execução, de diretoria, de representar o GAPA na cidade, conversar com a imprensa.
A própria imprensa e algumas pessoas da comunidade achavam que o GAPA era um grupo de ativismo gay, uma ONG gay, como era comum falar na época. “Gay” abarcava todos os espectros que hoje a gente percebe na sigla LGBTQIA+. A gente sempre precisava esclarecer que o GAPA não era sobre ativismo GLS, para usar a sigla da época. Claro que a maior parte das pessoas que a gente atendia era formada por homens gays, homens bissexuais, mulheres trans e travestis, que ficavam mais à frente, de fato. Mas a gente também atendia pessoas cis e heterossexuais.
Aqui em Belo Horizonte, nós fomos o primeiro grupo a celebrar o dia 28 de junho, o Dia da Revolta de Stonewall, Dia do Orgulho LGBTQIA+. E isso aumentou a confusão que as pessoas faziam sobre ser uma ONG gay, mas era importante celebrarmos como parte do projeto “Sexo, Prazer & Homens”. Nós fizemos essa primeira celebração em 1996, e a primeira Parada do Orgulho de Belo Horizonte foi em 1998. Então, tivemos algumas atividades precursoras, que eram características do movimento LGBTQIA+.
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Quando virou pesquisador?
Tenho um papel de ativismo dentro do movimento social e também dentro da academia, acabei ocupando essas duas vertentes ao mesmo tempo. Minha graduação em Letras é da segunda metade dos anos 1980. Quando eu estava no último ano, em 1989, decidi que queria ingressar no mestrado no ano seguinte já com um projeto. E foi um projeto inédito dentro da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que foi onde fiz meu curso de Letras também, e não havia nenhum professor possível ou com alguma formação ou experiência com o tema que escolhi.
Minha dissertação, defendida em dezembro de 1992, trabalhou com a representação de personagens homossexuais dentro da narrativa brasileira produzida entre 1870 e 1900. Também discuti como essa representação literária dialogava com a representação médica desse mesmo período. Peguei dois campos de conhecimento, o discurso literário e o discurso médico, para buscar uma interlocução e ver como o discurso literário se apropriou de uma visão de personagens homossexuais masculinos e femininos no discurso patológico.
Lembro que, no primeiro semestre do mestrado, em 1990, quando alguém me perguntava sobre meu projeto de pesquisa, o assunto não rendia. Era um tabu e era um terreno onde as pessoas não transitavam e não sabiam falar, omitir opinião, dar uma bibliografia. Não se falava de Judith Butler no Brasil. Não se falava nesses pesquisadores badalados, que só começaram a ser discutidos a partir da segunda metade dos anos 1990. Eles já estavam produzindo, mas aqui no Brasil não chegava muitas notícias a respeito deles. Tanto que não utilizei Butler, utilizei Foucault e Jurandir Freire Costa como bibliografia.
A partir de 1987, quando comecei a frequentar os espaços de sociabilidade da comunidade LGBTQIA+, também comecei a formar um acervo de materiais. Não apenas recortes de jornais e revistas, mas um clipping da imprensa sobre Belo Horizonte e sobre o Brasil, e também sobre a nossa comunidade. Guardei folhetos, panfletos, livros, tudo a respeito desses locais de sociabilidade. Em março de 2019, entreguei esse acervo à UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Toda essa coleção forma o que hoje é o Acervo Especial LGBT+ Cintura Fina, na Fafich (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas) da UFMG, e está situado dentro de uma sala na biblioteca daquela unidade.
Desde 1987, venho constituindo esse acervo e me colocando como pesquisador, o que me motiva até hoje. Sou um pesquisador da memória das identidades LGBTQIA+ aqui de Belo Horizonte, que é de onde vem, por exemplo, a produção dos dois livros que já publiquei e dos diversos artigos de minha autoria em livros e revistas acadêmicas.
O que foi o Crime do Parque?
O Crime do Parque é uma história sensacional, muito novelesca, muito romanesca e cheia de reviravoltas que aconteceu aqui em Belo Horizonte. O Parque Municipal Américo Renné Giannetti é uma área verde central, originalmente muito grande, que foi sendo cortada e separada. Atualmente, a área verde corresponde a 1/3 de sua área verde original. Ele está localizado em uma das margens da Avenida Afonso Pena, que é uma artéria central da cidade. Quando Juscelino Kubitschek foi prefeito de Belo Horizonte, em 1941, mandou retirar as grades do parque. A partir daí e, principalmente de 1944, homens gays e bissexuais passaram a ocupar uma parte do parque à noite. Com a retirada das grades, o trânsito ficou livre tanto durante o período diurno quanto noturno. Durante a noite, ele servia para encontros de casais heterossexuais e também entre homens homossexuais e bissexuais. A polícia, inclusive, já sabia que havia uma parte que era frequentada por esses homens, que eles próprios apelidaram de Paraíso das Maravilhas. Nessa convivência, eles constituíram uma sociabilidade muito característica. A área servia para se encontrarem, se conhecerem, transarem ou, a partir dali, buscar um novo local para interações eróticas maiores. Os frequentadores se nomeavam com nomes femininos ou de atrizes famosas da época ou determinados nomes como Perfume da Madrugada, Pompom Grená, Bunda de Cetim, Dorian Gry, Suspiro da Noite, com certo tom erótico.
Na manhã do dia 5 de dezembro de 1946, no Paraíso das Maravilhas, foi encontrado o corpo de um homem com vinte e oito facadas no peito e no pescoço, evidenciando um crime passional e, com as investigações policiais, ficou sabendo que, além da passionalidade, foi também um crime de caráter erótico. Nunca foi desvendada a autoria do crime, embora tenha sido apresentado um autor em 1953 que, em um julgamento em 1954, foi absolvido por falta de provas materiais e testemunhais. Mas, entre o final de 1946 e 1953, houve uma investigação muito turbulenta por parte da polícia, cheia de reviravoltas, que vai constituir esse tom de folhetim em cima da história do Crime do Parque. Como eu disse, a polícia já sabia do que acontecia, mas fazia vista grossa para aquele território. Desde que gays e bissexuais não perturbassem a ordem social, poderiam fazer uso daquele local.
Em 1947, como não foi possível abafar as investigações, treze homossexuais foram chamados à delegacia para depor. O processo do Crime do Parque também tem esse componente de reunir treze depoimentos de homens gays que foram chamados entre fevereiro e maio de 1947 à polícia. Hoje, você ler treze depoimentos de homossexuais que viveram na década de 1940 aqui na cidade é muito bacana. As pessoas não sabem o valor que esse processo tem enquanto um registro documental da existência de sociabilidade LGBTQIA+ em Belo Horizonte.
Reuni todas as reportagens de jornais locais e dos grandes centros do país sobre o Crime do Parque. Principalmente, as que datam a partir de 1953. Reuni as peças judiciais, sobre as quais pedi o desarquivamento do processo, são cinco volumes. Também pedi o desarquivamento de dois processos anteriores ao Crime do Parque, de homens homossexuais que circulavam por lá e sofreram diversas formas de violência como chantagem, extorsão, violência física e violência emocional de pessoas que assaltavam e agrediam esses homens. Em 1945, duas das vítimas tiveram coragem de procurar a polícia e denunciar a violência que sofreram.
Tentei localizar pessoas, sobretudo profissionais da imprensa, que cobriram o caso do Décio Escobar, o suposto assassino que foi absolvido em 1954. Localizei jornalistas que na época eram jovens e quando escrevi o livro estavam na faixa dos setenta anos. Essas pessoas toparam me dar entrevistas e algumas, só de ouvirem o nome Décio Escobar, se lembram automaticamente do Crime do Parque e, ainda que de forma confusa, se lembram desse escândalo que aconteceu entre as décadas de 1940 e 1950.
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Como foi o processo de pesquisa e escrita de “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”?
Eu fui me apaixonando pela Cintura Fina à medida que fui levantando material sobre ela. Comecei a ouvir falar mais sobre Cintura Fina quando eu estava no GAPA, lá nos anos 1990 ainda. Eu não sou de Belo Horizonte, sou do interior de Minas, e vim para Belo Horizonte em 1984. Antes de vir para cá, nunca havia escutado falar no nome dela. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, eu ainda ouvia falar muito pouco sobre ela aqui na cidade. Quando eu entrei para o GAPA, passei a ouvir falar mais sobre ela, mas não me passava pela cabeça, por exemplo, que ela era uma pessoa negra. Quando falavam dela, não mencionavam a cor da pele e eu formava na minha imagem mental a figura de uma pessoa branca.
O GAPA me deu não só a vivência de trabalhar com questões relacionadas ao HIV e à aids, mas também me deu a experiência com esse mapa, esses territórios, essa cartografia LGBTQIA+ de Belo Horizonte. Se hoje eu consigo retornar aos anos 1950 fazendo essa cartografia, devo muito isso ao GAPA. Eu conversava muito com outros voluntários e pessoas que passavam pelo grupo. Eu tinha muita curiosidade para saber sobre bares e boates que existiram em Belo Horizonte nos anos 1980, antes de 1987, que foi quando comecei a conhecer esses territórios. E as pessoas falavam de maneira muito confusa sobre o que já tinha acontecido, comprovando que elas iam a esses lugares, mas não com a intenção de fazer estudo, iam para se divertir. As pessoas falavam sobre bares, boates e saunas que conheceram, e eu queria muito saber os endereços. Não queria saber apenas as experiências dessas pessoas dentro desses locais, queria também localizar fisicamente e, se possível, voltar a esses locais e ver o que restava deles fisicamente.
Quanto mais as pessoas voltavam no tempo, mais confusa parecia a memória delas. Quando falavam de Cintura Fina, falavam de maneira muito confusa, genérica e contraditória. A maioria não havia conhecido Cintura.
Quando virou o século, decidi fazer uma pesquisa detalhada e longa sobre a memória LGBTQIA+ da cidade. A primeira vez que me deparei com a imagem de Cintura Fina em um jornal foi quando eu estava pesquisando sobre o Crime do Parque. Me deparei com a primeira reportagem que saiu sobre Cintura Fina em Belo Horizonte, datada de julho de 1953. Quando vi a foto dela, que está reproduzida em meu livro, ela com vinte anos de idade, com um olhar esnobe em relação à polícia, era uma foto feita por repórteres policiais de Belo Horizonte, e com todos os elementos de uma performance feminina – sobrancelha pinçada, cabelo cortado ao modo feminino, roupas femininas –, eu fiquei muito impressionado. Primeiro, porque eu não pensava que fosse uma pessoa negra e isso já me colocou em outro lugar. E também porque eu ainda não tinha registros de outras travestis que viveram aqui naquela época, na década de 1950. Só fui encontrar o registro de outras pessoas trans vivendo aqui durante a minha pesquisa. Então realmente fiquei muito impressionado.
Eu não estava reservando um livro específico para Cintura Fina. Ela iria aparecer no livro que estou produzindo agora, sobre a recuperação da memória LGBTQIA+ dos anos 1950 de Belo Horizonte. À medida que fui tendo acesso em primeira mão às matérias sobre Cintura Fina, fui vendo que não tinha como tratá-la em um livro com outros personagens e histórias. Ela tinha que ter um livro apenas sobre ela. Isso ficou óbvio, principalmente, quando consegui acesso aos processos judiciais. Foram dezoito processos judiciais que ela sofreu aqui em Belo Horizonte e Uberaba. Ela tem três ocorrências que levaram a processos judiciais no Rio de Janeiro, mas esses eu não consegui. Consegui algum material sobre as prisões dela na Ilha Grande, no final dos anos 1950 e na virada da década de 1960 para 1970, mas o processo em si eu não consegui.
Então reuni o material de imprensa, o material de processos judiciais e faltava buscar pessoas que tivessem conhecido Cintura. Comecei a colocar algumas imagens e notícias sobre Cintura Fina no Facebook, por volta de 2017 e 2018, e as pessoas davam retornos, pessoas que eu não conhecia, mas as imagens circulavam muito e as pessoas vinham comentar. Aproveitei muitos comentários das redes sociais, mas também muitas entrevistas de pessoas que conheceram ou conviveram com ela. No ano da pandemia, no primeiro semestre de 2020, foi quando escrevi o livro. Como eu tinha que ficar isolado em casa, comecei a escrever. O fato de não ter muitos compromissos acabou colaborando com o processo de escrita. Eu ministrava aulas online, mas ainda me sobrava muito tempo. Escrevi o livro entre janeiro e julho de 2020.
Não tem como falar que passei ileso pela escrita. Fiquei, de fato, apaixonado por Cintura Fina. Como coloquei na introdução do livro, minha ideia era humanizá-la. Ela cometeu diversos delitos que eu não tento esconder e não justifico. Mas tentei humanizar uma pessoa que foi desumanizada por diversos fatores como raça, financeiro, familiar. A mãe dela morreu no parto e o pai a rejeitou. Ela foi criada por três tias. Ela sofreu muito desde a infância por ser afeminada e sofria muito bullying, era chamada de ‘viadinho’, de ‘florzinha’ e, como é comum no Nordeste, de ‘frango’. Ela passou a infância no Ceará, onde nasceu. Ela tinha diversos marcadores sociais que a fizeram com que se virasse de forma independente, desde quando deixou de morar com as tias, quando tinha catorze anos e foi para a zona de prostituição de Fortaleza. Depois, com dezessete anos, saiu de Fortaleza e foi para Natal, Recife, Salvador e Rio de Janeiro até chegar a Belo Horizonte, em 1953. Não sei o motivo que a fez se fixar aqui e não consegui criar hipóteses para isso.
O que Cintura já foi falada e reposicionada depois da publicação do livro… Aqui em Belo Horizonte e fora daqui, ela já recebeu muitas homenagens póstumas. Ela recebeu o nome de um coletivo dentro da UFMG formado por alunos, alunas e alunes trans, chamado Coletiva Cintura Fina. Ela já foi objeto de exposição de arte e, possivelmente, vai vir a se tornar personagem de audiovisual. Isso me deixa em uma posição de muito agradecimento.
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Como foi a relação entre Cintura Fina e Madame Satã no presídio de Ilha Grande?
Há poucos registros sobre isso. Na verdade, não fui ao Rio de Janeiro para tentar localizar esse material específico. Uma das pessoas que me ajudou nesse sentido com a pesquisa foi a Rita Colaço, que trabalhou como oficial de justiça dentro do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Quando conheci a Rita, ela estava perto de se aposentar, em 2012. Como ela tinha interesse em localizar processos sobre Madame Satã, ela se ofereceu para localizar processos também sobre a Cintura Fina. No Tribunal de Justiça, a pessoa que fez esse levantamento localizou apenas um processo da Vara de Execução Criminal. A Vara de Execução Criminal é responsável pela vida da pessoa dentro do presídio e não do processo judicial da pessoa, então foi localizado o processo da Vara de Execução Criminal do começo dos anos 1960.
A Cintura vai relatar o fato de ter conhecido Madame Satã em uma entrevista que ela concedeu em 1977 para uma rádio de Belo Horizonte, uma entrevista longa, mas que ficou perdida. A rádio conseguiu localizar apenas trinta minutos desse arquivo e passou para mim. São, justamente, os trinta minutos em que ela falava sobre a vida na Ilha Grande, quando esteve presa na virada dos anos 1960 para 1970, e ela fala que conheceu Madame Satã e que Madame Satã era feia. Tem essa coisa preconceituosa do gay mais novo chamar o gay mais velho de ‘maricona’ e era essa posição. Cintura Fina era um pouco mais jovem que Madame Satã. Cintura fala que conheceu Satã, mas que Satã vivia em outro conjunto. O presídio era dividido em três ou quatro conjuntos e cada uma vivia em um. ‘Era Satã lá e eu aqui’, é isso que Cintura fala na entrevista para a rádio, e que elas não tinham convivência, mas que se conheceram.
Há outro momento em que Cintura Fina possivelmente deve ter conhecido Madame Satã, que foi quando Cintura foi presa pela primeira vez em Ilha Grande, no final de 1958. Tem uma matéria que saiu no jornal Última Hora, também no final de 1958, que é um conjunto de três ou quatro reportagens sobre as más condições do presídio de Ilha Grande, a falta de infraestrutura, de saneamento, de insalubridade. Na primeira reportagem, há uma imagem da Madame Satã no presídio e, na segunda reportagem, tem uma referência a Cintura Fina, com uma foto que também reproduzo no livro, onde ela aparece vestida com um baby doll, se preparando para um encontro sexual com outro detento. O jornalista não fala da convivência entre as duas nem menciona a possibilidade de se conhecerem, mas imagino que elas se conheceram desde a primeira detenção de Cintura Fina em Ilha Grande.
O que é o Museu Bajubá?
O Museu Bajubá é uma iniciativa muito bacana da Rita Colaço que eu abracei com entusiasmo. É um museu eminentemente digital de resgate da memória dos territórios LGBTQIA+ do Brasil. Como em um primeiro momento não tínhamos a possibilidade de alcançar o país inteiro, criamos o que é chamado de ‘estações’: Estação Rio de Janeiro, Estação Belo Horizonte e Estação São Paulo. Temos uma possibilidade futura de criar a Estação Campos dos Goytacazes, onde temos pessoas que podem se tornar responsáveis. A Rita é a responsável pela Estação Rio de Janeiro, eu sou o responsável pela Estação Belo Horizonte e o Emerson Rossi pela Estação São Paulo. No museu, criamos exposições para homenagear figuras ou eventos importantes para a memória LGBTQIA+. A segunda exposição criada pelo Bajubá está na Estação Belo Horizonte e homenageia os cinquenta e cinco anos do primeiro concurso de miss travesti realizado publicamente aqui na cidade – Entre gritinhos e emoções – 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte. Existiram concursos anteriores, mas que foram realizados de forma clandestina. Desde o início dos anos 1960 acontecem eventos como esse, mas, de maneira pública e com autorização da polícia, o primeiro foi em novembro de 1966. Então, em 2024, fizemos essa exposição.
A primeira exposição do Museu Bajubá foi sobre os cento e cinquenta anos de nascimento do João do Rio – Cintilando e causando frisson – a produção literária de João do Rio. Depois, veio essa sobre o concurso e uma sobre a Cassandra Rios – De menina da pastinha a uma das maiores escritoras do Brasil. No final de 2024, preparei uma exposição, mas ela está localizada na Estação Rio de Janeiro, sobre os sessenta anos do primeiro show do grupo Les Girls. O nome da exposição é Charme, Glamour e Sucesso: 60 anos de Les Girls.
Ainda foi criado um mapa interativo que foi inaugurado em julho de 2024. Esse mapa interativo é, justamente, para qualquer pessoa da comunidade LGBTQIA+ ou qualquer pesquisador que queira localizar um ponto da memória da comunidade dentro do mapa do Brasil. Sobre Belo Horizonte, já incluí catorze pontos. Há muito mais pontos para serem inseridos, mas com o tempo irei ampliando. Em cada ponto de memória incluímos pelo menos uma imagem e uma pequena descrição. Podem ser tanto pontos físicos, localizados geograficamente, como pontos imateriais, como festas que aconteceram, concursos, personalidades. Cintura Fina está localizada na Rua Guaicurus, que é a rua do meretrício e boemia, onde Cintura Fina reinou, onde foi, de fato, rainha. Embora a imprensa a chamasse de Rei da Navalha, ela foi a Rainha da Navalha.
Inclusive, outro elemento do livro, durante a minha pesquisa, eu ficava ansioso tentando localizar alguma marca em que a própria Cintura se designasse no feminino. Ela usava roupas atribuídas às mulheres durante a noite e o dia, mas eu ainda precisava de uma marca onde ela se referisse no feminino. Daí encontrei um depoimento que ela dá a um delegado, em 28 de junho de 1964, é impossível esquecer essa data que, logo depois, em 1969, se tornou uma referência mundial de ativismo para a comunidade LGBTQIA+, mas, no dia 28 de junho de 1964, Cintura falou para um delegado que era mulher: “Eu sou mulher, eu nasci mesmo foi para os homens”.
Voltando ao Museu Bajubá, ele existe há quatro anos e tem a finalidade de servir como um repositório da memória da comunidade dissidente de sexualidade e gênero do Brasil.
Qual é a importância de resgatar a memória da comunidade LGBTQIA+ do Brasil?
Primeiro, é uma importância muito imediata, muito clara, de reposicionar, eu gosto muito dessa palavra, essa comunidade, no sentido de valorizar essa comunidade, de tirar essa camada de criminalidade, de doença, patologização, que foi imposta ao longo da história, não só no Brasil, mas de todo o lado ocidental do planeta, para falar de onde estamos mais situados. É importante retirar essas camadas de pontos de vista negativos e pejorativos e melhorar a autoestima de toda a comunidade, que é o que acontece quando se reposiciona o olhar sobre o passado.
Mas é também resgatar determinadas pessoas e determinadas vivências e retirar, especificamente, a ideia de que determinadas iniciativas precursoras partiram do público homossexual masculino. Digo isso em resposta ao valor que a gente tem que dar às travestis e pessoas trans. Pessoas trans deram muita visibilidade à luta da comunidade LGBTQIA+. Cintura Fina, por exemplo, é uma grande precursora da visibilidade dessa comunidade em Belo Horizonte.
Aqui em Belo Horizonte, pessoas trans tomaram iniciativas bem antes de homossexuais masculinos. Pessoas como Edmundo de Oliveira e Ricardo Demoprat Marschall, que eram homens trans. Patrícia Lucena, que não mora mais em Belo Horizonte, mas cometeu, em 1965, o ato extremo de decepar o próprio pênis para assumir a identidade de gênero com que ela se reconhecia desde a infância. Essas pessoas foram totalmente invisíveis e começaram a lutar muito antes de pessoas cis, sejam gays, lésbicas ou bissexuais.
Certamente, há importantes personalidades gays que buscaram uma visibilidade muito forte para a comunidade a partir dos anos 1970, como Luiz Mott e João Silvério Trevisan. O João, de quem sou amigo, é uma pessoa muito especial, muito formidável, muito sensível e que deu uma contribuição enorme não apenas literária e ativista. A contribuição dele ajudou pessoas a saírem do armário. Em 2023, o João esteve aqui em Belo Horizonte, eu fui buscá-lo no aeroporto, ele veio para o lançamento do livro Sob o signo de João, lançado pela Editora O Sexo da Palavra, originário de um seminário sobre o Trevisan, João do Rio e João Gilberto Noll. Fomos almoçar nós dois com o Antonio K. Val e o Fábio Figueiredo, que são da editora, e uma pessoa veio até a nossa mesa, deu um toque no ombro do João e o agradeceu por sua existência e disse que foi a partir dos livros dele que conseguiu juntar coragem para sair do armário. Foi um momento tão emocionante de testemunhar. O João pertence à memória nacional.
Então a importância de recuperar a memória LGBTQIA+ é abandonar a ideia de que o movimento foi fundado em 1978. Em 1978 houve a iniciativa do Somos e do Lampião da Esquina, mas essa data é uma convenção. Não foi o início do movimento. Foram, sim, marcos importantes, mas não o início. Houve iniciativas anteriores, mas que foram infrutíferas, em 1966, 1968, 1972, houve tentativas de congressos entre homens gays e travestis. Em 1968, houve três tentativas de congresso em Niterói (RJ), João Pessoa (PB) e Fortaleza (CE). Três tentativas de congresso frustradas pela política. Em Fortaleza, há um registro de imprensa sobre isso, já haviam chegado lá vinte e oito pessoas para esse encontro e a polícia impediu que o evento acontecesse. Isso aconteceu dez anos antes de 1978.
Imagine em 1968 como era o exercício de comunicação que essas pessoas faziam entre elas. Nessa época, só havia telefone e carta, mas telefone era coisa de privilegiado. Não havia outra forma de comunicação além dessas, a não ser que fosse fisicamente. Imagine como poderia ser criada uma rede de pessoas nesse ano.
Em 1966, em Petrópolis (RJ), houve também uma tentativa de organização, que a polícia também impediu. E essa rede é anterior a 1966. Os concursos de miss travesti já aconteciam em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. E as pessoas já arranjavam um jeito de se comunicar e trocar experiências para a realização desses concursos.
Resgatar a memória é trazer à tona essas iniciativas e entender que a comunidade LGBTQIA+ vem há muito tempo se esforçando para existir.