Ditadura Militar tentou arquivar denúncias internacionais sobre violações contra o povo Yanomami
Caso de denúncias contra o Brasil vem à tona a partir de trabalho de pesquisa de documentos da diplomacia brasileira
Uma pesquisa inédita revela que durante a Ditadura o governo militar mobilizava o Itamaraty para abafar e tentar arquivar denúncias internacionais. Os Yanomami foram vítimas dessa prática, como aponta trabalho conduzido por Bruno Bernardi, da Universidade Federal da Grande Dourados (MS) e João Roriz, da Universidade Federal de Goiás.
Segundo reportagem de Jamil Chade (UOL), que repercutiu o conteúdo do estudo, o comando militar agiu para que o país não fosse condenado em instâncias internacionais por violações contra o povo Yanomami. O caso examinado com base em documentos da diplomacia brasileira – a partir de meados dos anos 70 -, se refere às denúncias contra o país apresentadas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Com a liderança da Associação Antropológica de Washington, do Centro de Recursos Antropológicos de Boston, da Survival International e da Indian Law Resource Center, de Washington, entidades estrangeiras iniciaram uma petição contra o governo brasileiro ainda em 1980.
Chade relata na reportagem que à época, a acusação era de “enorme invasão de terras, desintegração social, disseminação de doenças, mortes e destruição”, sem que “a Funai tomasse providências para prevenir a destruição das comunidades Yanomami”.
A denúncia se apresentava em nome de mais de 10 mil indígenas Yanomami que, segundo as estimativas, viviam no Amazonas e Roraima.
Entre outros pontos, expunha que ” a construção da BR-210 (Perimetral Norte) e as pressões econômicas em favor da mineração levavam doenças, vícios, desequilíbrio ecológico e exploração de mão de obra, e a FUNAI não conseguia proteger os territórios de invasões de posseiros, fazendeiros e garimpeiros”.
A denúncia citava ainda a incapacidade do governo de demarcar a Terra Yanomami, ignorando doze propostas feitas entre 1968 e 1979 por antropólogos e missionários pró-indígenas. Por fim, os denunciantes solicitavam uma investigação in loco e uma resolução urgindo a criação do parque Yanomami.
O caso desembarcou no organismo internacional num momento em que o Estado oficializava uma política de assimilação e integração forçada dos povos indígenas, com um saldo de milhares de mortes.
A pesquisa aponta vários prismas da situação. Mas foca especialmente, em como foi a mobilização encampada por militares para minar o movimento das organizações internacionais.
Segundo o colunista, os documentos coletados pelos acadêmicos revelam que a questão chegou até o presidente João Figueiredo e que “despertou grande preocupação do governo brasileiro”.
“Nos seis anos de trâmite, a troca de informações entre peticionários, CIDH e Brasil, assim como entre Ministério das Relações Exteriores e outros órgãos governamentais, foi intensa, com idas e vindas processuais e muita movimentação diplomática”, revelou.
Os documentos revelam três caminhos adotados pelos militares brasileiros para barrar ou, pelo menos, adiar o máximo possível qualquer tipo de conclusão por parte da Comissão. Eles são:
- Os contatos sigilosos constantes com a secretaria da Comissão Interamericana, que vazava informações e ajudava o governo a se defender.
- O uso de comissários brasileiros no organismo internacional e que serviam como uma espécie de informantes sobre casos que estivessem tramitando contra o regime militar. A meta era a de tentar arquivar o caso contra o Brasil.
- Um esforço deliberado de esconder a realidade da situação dos indígenas.
“Porém, a despeito dessa intricada atuação, em razão do peso da campanha transnacional em favor dos Yanomami e da presença de comissários mais progressistas, o Brasil não logrou, como na década de 1970, influência para arquivar e vetar o andamento do caso”, constata a pesquisa.
Artimanhas
O governo tentava minimizar o teor das denúncias, negando a dimensão do garimpo. “Outra parte da estratégia dos militares era negar a proporção da invasão de garimpeiros e atuar para adiar o máximo possível qualquer decisão internacional”, destaca a reportagem.
E quando a diplomacia brasileira não conseguia arquivar denúncias contra ela, trabalhava para protelar a decisão.
“A tática era distanciar, no tempo, o momento da decisão formal sobre as queixas de quando tinham ocorrido os fatos, a fim de diminuir sua repercussão, tal como explicitamente havia sido feito com os casos da década de 1970”, apontam os pesquisadores.
Foi somente com o término oficial da ditadura, em 1985, que um organismo internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), emitiu uma recomendação sobre esse contexto e abordou a denegação de território e os abusos perpetrados contra o povo Yanomami nos estados do Amazonas e Roraima, perto da fronteira com a Venezuela.
Paralelos entre o passado e o presente
Revendo a história, os pesquisadores fizeram conexão com a atualidade, lembrando que esse cenário de omissão se repetiu no governo Bolsonaro. Para Bruno Bernardi (UFGD) e João Roriz (UFG), a pesquisa aponta “paralelos perturbadores entre o passado e o presente”.
“Em primeiro lugar, ela mostra como a ditadura militar mobilizava o Itamaraty para abafar e tentar arquivar denúncias internacionais, o que se repetiu no governo Bolsonaro, sempre disposto a negar e desacreditar acusações de violações contra os povos indígenas”, destacam.
“Além disso, a pesquisa ajuda a compreender a continuidade do genocídio contra os Yanomami. Ao não levar a sério, no passado, os alertas e recomendações dos organismos internacionais de direitos humanos, o Estado brasileiro criou as condições para a repetição de atrocidades”, denunciam os pesquisadores.
“Por meio da garantia da impunidade, do incentivo ao garimpo, à grilagem e ao desmatamento, e do desmantelamento da Funai e de outras estruturas de fiscalização e apoio aos povos indígenas, as necessidades predatórias do “desenvolvimento” econômico produziram mais um genocídio anunciado”, disseram.
“Nesse sentido, para evitar a reprodução desse padrão, o Brasil precisa se abrir mais à participação política dos povos indígenas e se engajar fortemente com os mecanismos internacionais de direitos humanos, assumindo compromissos concretos. Não bastam novos discursos: é preciso internalizar novas práticas”, completam.
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