Por Ben Hur Nogueira

Existe uma lenda iorubana sobre Ifá, um oráculo africano que nos informa sobre nosso destino antes de sermos enviados ao mundo. Contudo, ao chegarmos a este mundo, tal afazer é brevemente esquecido e passamos a vida cheio de detalhes sortidos que nos preparam para tal missão, até que uma hora, após a realização de tal dever, somos devolvidos aos Orixás, como se tudo que fizéssemos fosse a realização de uma obra suprema que nos premia com a vida e a morte, simultaneamente.

É com este conto que Juliana Vicente começa o seu longa-metragem “Diálogos com Ruth de Souza”, que de maneira sútil, através de um plano simétrico e um barco, que tem apenas uma passageira preta como tripulante, nos narra este conto e os paralelos da história de Ruth com o último caso registrado de um navio negreiro vindo ao Brasil em 1852. Cem anos depois, paradoxalmente em 1952, Ruth de Souza, uma das maiores atrizes brasileiras de sua geração foi a primeira brasileira a ser indicada à um prêmio internacional pelo filme “Sinhá moça”, lançado em 1952 e dirigido por Tom Payne, produzido pelo maior estúdio brasileiro em atividade na época: A companhia cinematográfica Vera Cruz.

Foi através deste papel como uma personagem que reivindica a abolição da escravidão que Ruth ganhou aclamação internacional, sendo disputada como garota-propaganda em vários jornais da época e reverenciada como uma das maiores artistas de seu tempo. O documentário poderia facilmente cair em um saudosismo sobre a vida de Ruth de Souza como se ela fosse apenas uma artista a ser conhecida, porém o documentário explora, e ao mesmo tempo estabelece, as injustiças que impediram Ruth de Souza de se tornar mais popular, da maneira como merecia.

Ora no Teatro Experimental do negro onde ela começou sua carreira com o ativista Abdias do Nascimento, ora na televisão em 1964 onde ela, como protagonista principal da telenovela “A cabana do Pai Tomás”, deixou de aparecer como personagem principal na abertura devido a reclamação de atrizes brancas, e ora no cinema, sua maior paixão, como personagens quase sempre estereotipadas, a vida de Ruth profissionalmente foi marcada por momentos de humilhação, preconceito e falta de reconhecimento artístico por seu trabalho marcante. O documentário sabe quando explorar a dor de Ruth, que já idosa traz através de relatos sôfregos sua vida, e explora até mesmo com exotismo, diferente de documentários usuais, como Ruth lidou com a dor e sobretudo a falta de reconhecimento.

O documentário traz dois lados, um lado teatral, livremente reminiscente de filmes norte-americanos dos anos 1950 e 1960 que exploram grandes contos e estórias em grande escala, como se o filme fosse uma ode à cultura teatral brasileira e em especial à carreira prolífica teatral de Ruth. O segundo lado é um lado documental que, através de footage film, traz relatos retirados de entrevistas obsoletas de pessoas ligadas à Ruth como Grande Otelo, que agraciava a vida de Ruth, e entrevistas hodiernas com Ruth já idosa. Tudo isso prende o telespectador com um filme que traz a memória como um presente, um tipo de perdão que todos nós devíamos ter de assumir por não permitir a fama de Ruth.

A cineasta Juliana Vicente. Foto: Reprodução/Greg Salibian/Folhapress

O final do filme traz dois paralelos geniais estabelecidos por Juliana, que ao perceber que Ruth seria homenageada em um desfile de carnaval, traz através do lado teatral do filme uma referência à diáspora do povo preto, o desfile de carnaval que homenageou Ruth, e o fato de que Ruth, uma atriz preta de origem humilde, havia sido nomeada em 1952 por um filme brasileiro de grande orçamento, um ano que celebrava 100 anos do último registro de um navio negreiro no Brasil, ao som de “Caís”, de Milton Nascimento.

É através deste modo que Juliana traz um filme sensível, autoral, corajoso e audaz sobre uma grande atriz que, já no fim de vida, recebeu de certo modo uma homenagem por todo seu conjunto da obra. “Diálogos com Ruth de Souza” é, certamente, uma carta aberta de amor à Ruth e ao povo preto aviltado brasileiro.

Em memória de Maria Geralda, mulher que me incentivou a leitura e fortaleceu através do seu encanto e força, a avidez de nosso povo.