Por Felipe Mesquita

“Eu quero ser o Devi, eu não quero ser mais uma personagem. Eu quero usar a minha voz para falar sobre mim.”

Foi esse o pensamento que deu o pontapé inicial na carreira musical de Devi Cruz, jovem de 27 anos. Antes disso, Devi já acumulava alguns anos como bailarino e, também, como ator de teatro musical. Foi em 2024 que ele decidiu investir como cantor. Com a ajuda de uma lei de incentivo à cultura de Petrolina (PE), o cantor conseguiu lançar “Amar e Aluar”, o seu primeiro EP. Além do disco, também foi possível gravar o clipe do single “Aboiolado” e produzir o seu primeiro show.  

“Amar e Aluar” conta com cinco músicas e mistura ritmos como forró, xote e xaxado com pop. “Não tinha outra forma de fazer esse EP, se não fosse com ritmos que me marcaram tanto”, conta o artista sobre os estilos musicais que estão presentes em sua vida desde a infância. “Era impossível falar sobre quem eu sou sem o forró”, completa. Devi reconhece a importância de sua presença e de outras pessoas das comunidades LGBTQIAPN+ neste gênero musical, que são responsáveis por trazer outras narrativas para o segmento: “Eu fico muito feliz de ter pessoas com outros corpos, com outros gêneros cantando isso.” 

Em seu single “Aboiolado”, assim como em outras canções do EP, sua vivência enquanto homem gay é bastante presente. A canção que tem em seu título um termo pejorativo escutado pelo cantor ao longo de sua vida traz um relato potente sobre a infância do artista.  “Se eu pudesse encontrar o meu eu criança hoje, eu cantaria essa música  para ele” comenta Devi em nossa conversa. “Eu super considero uma carta de amor, e escrever ela foi um desabafo.”

Devi Cruz é o Artista Foda desta semana. Em entrevista ao FODA, o multiartista de Petrolina falou sobre suas motivações para iniciar a carreira musical, suas influências musicais e muito mais. Confira abaixo: 

Foto: Kira Duarte

Qual foi o pontapé inicial para você começar a investir na carreira musical?

Foi quando eu fiz Lisbela e o Prisioneiro. Foi o último musical que eu fiz em São Paulo. Eu fazia uma personagem que era secundária, era o Cabo Citonho, ele ficava na cadeia e era meio que o alívio cômico. Foi quando eu imaginei como eu poderia contar agora algo que fosse meu, porque eu sempre dei vida a outras personagens. E aí foi a primeira vez que eu fui aplaudido em cena aberta, tipo foi um musical super bonito, a gente tocava e cantava em cena. Eu tocava zabumba, tocava triângulo, a gente ia meio que misturando. E aí chegou um momento que eu falei assim: “Porra, eu tô fazendo algo muito legal. É muito bonito. Eu tô amando dar vida a esse personagem, mas eu acho que o Devi quer falar agora. Eu quero usar a minha voz para falar sobre mim” Foi aí que eu decidi correr atrás disso, e é engraçado como as coisas vão acontecendo no universo, porque quando eu pensei isso e comentei com alguns amigos surgiu a oportunidade de escrever um projeto para uma lei de incentivo de cultura aqui em Petrolina. E aí eu falei “Eu vou fazer. Vamos ver se dá certo”.

Escrevi o projeto junto com um amigo e deu certo. Eu consegui gravar o “Amar e Aluar”, que é o EP. Já gravei um clipe, vou gravar mais dois, fiz o show, então eu meio que fiz uma era completa, né? Já cheguei fazendo muitas coisas e eu fiquei bastante feliz, porque pensar nisso de produzir arte e ser artista independente é muito difícil, porque não tem grana. Às vezes você não tem mesmo dinheiro para conseguir gravar música. Uma faixa às vezes para você gravar é mil reais por exemplo. Você imagina gravar um EP, só aí vai cinco mil reais. Nem todo mundo tem esse dinheiro, nem todo mundo consegue juntar a grana e investir. Por isso que as leis de incentivos são tão importantes. Se não fosse isso, eu nem teria conseguido gravar. Depois que eu fiz  “Lisbela e o Prisioneiro”, que era um musical que eu tinha muito apreço por ter músicas nordestinas, em que eu tô ali cantando forró, que é um lugar que é muito do meu conforto. Chegou o momento que eu falei “Eu quero cantar agora falando sobre a minha história. Eu quero ser o Devi, eu não quero ser mais uma personagem.”

Há 4 anos você lançou o seu primeiro single. Hoje, em 2024, você lançou seu primeiro EP e subiu ao palco com um show próprio. Como está sendo viver esse momento?

Tá sendo muito especial, tá sendo muito chique! Eu não esperava que fosse assim. A gente cria uma expectativa muito grande em relação ao show, né? Porque é o contato direto que a gente tem com o público. A gente coloca as músicas nas plataformas, qualquer pessoa do mundo pode escutar, mas quando você tá fazendo show é quando você tem a troca de energia ali direta com quem tá te assistindo. Eu fiquei muito feliz, porque eu tive uma resposta muito positiva e eu não esperava que a galera ia gostar tanto.Eu tive a sorte de mais uma vez poder ter o investimento para fazer esse show. Então eu consegui botar uma banda de cinco músicos, consegui botar seis bailarinas no palco, foi um show bem grande, que é muito difícil fazer. 

Uma das coisas que eu fiquei mais impressionado é conseguir ter mesclado tudo que eu queria. Eu repito: eu canto forró, mas eu também sou um artista pop, eu não deixo de ser pop. Aqui a gente tem uma grande influência também de Juazeiro. A cidade que eu moro é Petrolina, do lado é Juazeiro da Bahia. São duas cidades vizinhas e que estão coladas, então eu tenho muita referência pernambucana e muita referência baiana. Inclusive a gente meio que se denomina como “pernambaiano”. Eu canto muito pagodão também, eu tenho  alguns singles lançados que tem referência de pagode, brega funk, que a gente bebe um pouco também de Recife. Eu queria muito trazer isso para o palco. 

Uma das coisas que mais me satisfez foi as pessoas terem captado a minha mensagem e entendido que eu consigo misturar tudo, que eu não preciso cantar uma coisa só. Tem um bloco do meu show, inclusive, que eu canto “Mas Que Nada”, do Jorge Ben Jor, e ela vem depois de “Radar”, da Gloria Groove. Elas são músicas que você fala assim “não tem nada a ver uma coisa com a outra”, mas que super funcionam juntas, sabe? Eu tô muito feliz em fazer show, já realizei meu segundo show agora em um evento que teve aqui, e eu acho que a maior felicidade é saber que as pessoas estão se identificando com que eu faço.  As pessoas olharem para o Devi e falar:  “Porra, que chique! É um grande artista.” Eu até brinquei no último show que era um show em pé, diferente do teatro, e eles estavam todos parados. Eu falei “Eu sei que vocês estão encantados por mim, mas podem dançar, podem curtir, por favor, minha gente. Vamos dançar, vamos beber, que já já eu desço aí para beber com vocês também”. Eu tô muito feliz de agora ser finalmente o Devi e poder comunicar com as pessoas sem ser uma outra personagem.

“Aboiolado” foi sua primeira música com influência de ritmos como baião, xaxado e forró. O que fez você aderir a essas influências? Como foi pra você trabalhar com essa pegada musical?

É engraçado porque eu não acordei e falei “pô, vou fazer forró”. As coisas foram se encaixando. Eu sabia que eu queria fazer um EP que contava a minha história, né? A maioria dos artistas ganha uma fama, eles vão fazendo uma música que é mais popular para a galera escutar e chega um determinado momento em que eles voltam para as raízes e acabam falando sobre quem eles são. Eu quis fazer o contrário. Eu já quis chegar falando quem eu era.  Era impossível falar sobre quem eu sou sem o forró, porque eu danço forró desde criança. Eu danço forró com meu avô, com a minha avó, no muro de casa. Então eu falei não tem como eu contar sobre quem eu sou se não tiver esse ritmo que faz parte da minha vida. Eu adoro. Inclusive, se me botar em uma festa para dançar forró, eu danço do começo da noite até o dia raiar.

Aboiolado é um termo que eu escutei bastante assim na minha vida, né? Aqui no Nordeste é uma coisa que a gente escuta bastante: “Ai, que menino aboiolado” ou “Esse menino é aboiolado”. E aí eu resolvi fazer esse single contando a minha história e eu falei “Acho que tem que ter um xaxado. Tem que botar ali um forró. Tem que ser nessa vibe”. Óbvio que eu dei um pouquinho de toque, tem uma hora que a música muda e vira uma outra coisa, que eu acho que é o que deixa especial e que é essa quebra de expectativa. Mas eu acho que não tinha outra forma de fazer essa música. Não tinha outra forma de fazer esse EP, se não fosse com ritmos que me marcaram tanto assim.

Foto: Jota

Você comentou que realizou o sonho de cantar Luiz Gonzaga em um show seu e, também, tem uma música com sample de “o xote das meninas”. Qual é a sua relação com Luiz Gonzaga? O que ele representa para você?

Assim, eu tenho uma relação muito musical com ele. Não tenho muito apreço pela pessoa. Ele foi um grande revolucionário, mas ainda assim pensando em quem eu sou tem muitas coisas que não batem a conta. Tem muitas falas, por exemplo, que se ele estivesse vivo hoje ele provavelmente seria contra quem eu sou. Isso é uma suposição, uma ideia, mas artisticamente falando ele sempre foi uma pessoa que estava à frente do mundo dele. Eu me identifico muito com a história de luta, com essa garra de não desistir, de conseguir fazer música e ser um grande sucesso em uma época que não existia nada de internet, não existia nenhuma possibilidade que facilitava essa propagação da música, e ele conseguiu chegar em lugares que acho que nem ele mesmo imaginava.

Eu tenho uma relação muito grande de apreço pela música que ele faz. Eu acho que ele fez um som muito bom, sou apaixonado pelas canções, pelas letras e por como ele passa e fala sobre o Nordeste. Ele fala sobre a nossa terra de uma forma tão bonita. Foi de fato realizar um sonho, porque quando a gente pensa nesse cenário do Forró sempre tem um estereótipo muito grande. É sempre aquele homem hetero cantando ali no palco, e eu percebo que essa cena do Forró LGBT está crescendo bastante. Eu fico muito feliz de ter outras pessoas com outros corpos, com outros gêneros cantando isso. Sem ser sempre aquele homem hetero cantando sobre mulher ou sobre festa, Forró e cachaça, sabe? Eu acho que existem outras narrativas para serem contadas e elas podem sim ser cantadas com forró, com xote e xaxado. 

Foto: Kira Duarte

Sua vivência enquanto homem gay é muito presente em suas músicas. Qual é a importância disso para você?

Toda! Assim, pega toda a importância do mundo e coloca ali (risos). Cara, eu acho que a gente já sofreu tanto, já escutou tantas coisas. A gente luta todos os dias para simplesmente ser quem a gente é. É engraçado como as pessoas ainda não entendem que existe muito preconceito, que existe muita homofobia velada mesmo. Eu quero poder sair na rua sem que as pessoas fiquem olhando torto para mim, sabe? Ainda que você vá me admirar, ainda que você esteja estranhando como eu estou, ou estranhando quem eu sou, mas seja discreto, sabe? Agora eu volto isso para as pessoas. Eu já escutei tanto isso sobre ser discreto e é engraçado que as pessoas quando vão praticar homofobia ou algum outro tipo de preconceito elas são zero discretas, né? Elas deixam na cara que elas estão sendo assim. Eu levanto essa bandeira hoje.

É engraçado você perguntar isso porque se você me pergunta: “você quer cantar sobre isso para sempre?” Não, eu não quero cantar sobre isso para sempre. Eu quero cantar sobre amor. Eu quero cantar sobre a vida. Eu quero cantar sobre o que eu tô vivendo, mas neste momento eu levanto essa bandeira porque eu sei que é o que eu vivo. Eu ainda sou olhado estranho na rua. Eu ainda escuto que eu sou aboiolado. Eu ainda vejo pessoas olhando para mim como se eu fosse um alienígena. Então se eu precisar falar por mais tempo sobre quem eu sou e levantar a bandeira de como não é fácil ser uma bixa afeminada nordestina, eu vou levantar essa bandeira sim, porque eu acho que ainda tem pessoas que precisam aprender, precisam enxergar isso com outros olhos. Eu quero muito cantar sobre outras coisas, mas nesse momento eu levanto essa bandeira porque só eu sei o quão difícil foi ser do jeito que eu sou. Muitas pessoas me param, até os meus amigos da época de escola, e falam assim: “Eu sempre admirei sua coragem. Eu nunca tive essa coragem. Você desde sempre já tinha essa bravura de ser quem você é”.  Eu mantenho isso comigo até hoje. Eu acho que você ser gay, você ser bi, você ser trans, você ser queer, qualquer uma das pessoas que se encaixem nessa nossa sigla é um ato de muita resistência, é um ato de muita inspiração para as outras pessoas. A gente já passou anos e anos e anos consumindo cultura hetero e escutando das outras pessoas como a gente deveria ser ou não deveria ser que hoje o que eu puder rasgar minha voz para falar o que eu quero ser, eu vou rasgar. 

Foto: Fernanda Walentina

No início do single “Aboiolado” você canta sobre a sua infância. Você considera essa música uma carta de amor para o jovem Devi? Como foi para você escrever essa música?

Eu acho que sim, eu considero sim uma carta de amor para o jovem Devi. Eu gostei disso. Eu considero bastante. Se eu pudesse encontrar o meu eu criança hoje, eu cantaria essa música  para ele. Eu super considero uma carta de amor, e escrever ela foi um desabafo. Eu lembro que quando eu escrevi eu até mostrei para minha mãe e meu pai, apesar de não ter tanto contato assim com ele, que mora em outro estado. Eu mandei a carta para ele, mandei a música e falei  “ó, tô escrevendo essa música” e ele super me apoiou. Me desejou coisas maravilhosas. E eu acho que eu quis fazer esse desabafo mesmo. Acho que quando eu estava escrevendo aboiolado, eu pensei muito no meu eu criança, mas ao mesmo tempo eu sabia que existiam outras pessoas que também sentiram isso, sabe? Muita gente fala sobre a parte do “tua tia vai te bater”. Isso é uma realidade nossa. Eu acho que é uma vivência que toda criança gay viveu. Se alguém não viveu, é muito sortudo, tem que agradecer ao universo. Foi uma carta para o meu eu criança, mas ao mesmo tempo eu acho que eu já sabia que eu ia comunicar com outras pessoas e que outras pessoas iam se identificar com essa música.