“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura (como deveria), então temos que mudar nossa cultura.”
Chimamanda Ngozi Adichie, em Sejamos todos feministas.*

Por Carla Piaggio*

Mulheres cis, trans, indígenas, negras, brancas, amarelas, com deficiência, com várias identidades de gênero e orientações sexuais, desfeminilizadas, mães, idosas, trabalhadoras de tantas profissões.

Tenho orgulho das conquistas históricas e atuais do movimento. Feminismo é sobre direitos, autonomia, liberdade e respeito. Graças às ativistas, cada mulher pode escolher viver conforme sua personalidade e visão de mundo – ao contrário do passado histórico de controle, submissão e anulamento. Ainda assim, o contexto social de cada uma é diverso em acessos e oportunidades.

O feminismo, assim como os demais movimentos sociais, é plural. Tem diversidade de opiniões internamente e reúne demandas específicas de mulheres que vivem realidades e opressões diferentes. Mulheres cis, trans, indígenas, negras, brancas, amarelas, com deficiência, com várias identidades de gênero e orientações sexuais, desfeminilizadas, mães, idosas, trabalhadoras de tantas profissões. Em comum, há o objetivo de promover mudanças sociais para que todas sejam devidamente tratadas com cidadania, equidade, segurança e respeito.

São preciosas as lições do feminismo negro sobre interseccionalidade. A sociedade tem vários níveis de opressões estruturais, e há muito a progredir em busca da redução de violências, exclusão, sobrecarga, pressões sociais, desvalorização profissional. Com simplicidade e sem estereótipos, pesquisadoras como Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez, bell hooks e Angela Davis nos ensinam sobre o tema.

Diversas opressões relacionadas a gênero, raça, classe, sexualidade e características físicas nos atravessam no convívio social. A identidade de algumas pessoas integra mais de um desses aspectos, de modo que elas enfrentam cotidianamente preconceitos e dificuldades de forma potencializada. Dentro de um subgrupo de pessoas que sofrem as mesmas situações sobrepostas, elas costumam encontrar mais conexão, acolhimento e fortalecimento. Mas na teia das intersecções, toda pessoa está sujeita a ser oprimida em um contexto e ser opressora em outro. Ouvir quem vive a situação, sem julgamentos, contribui para conhecer as reais questões e os privilégios.

A situação mais urgente é das meninas e mulheres que sofrem violações como feminicídios e agressões físicas ou sexuais por causa da misoginia – um tipo de ódio virulento que se amplifica quando associado a transfobia, lesbo/bifobia, pedofilia, violência doméstica, racismo, classismo. O resultado são crimes gravíssimos, cujas soluções demandam educação e cumprimento efetivo das leis.

Há debates em sociedade que convidam os homens a verem que eles também ganham ao abandonar preconceitos, agressões e comportamentos abusivos. Apesar de iniciativas como essas, ainda há pouco entendimento e forte influência patriarcal. Mudanças de paradigma demandam tempo e comprometimento. Muitos comportamentos e julgamentos naturalizados, por um lado, concedem aos homens uma infantilização confortável que os exime de assumir certas responsabilidades. Por outro lado, lançam sobre as mulheres castração, culpabilização, excesso de demandas. Além disso, há posturas e atitudes que são assimetricamente interpretadas como positivas em homens e negativas em mulheres.

As mulheres reagem, questionam e impõem seus limites, o que incomoda. E que incomode mesmo, pois a realidade ainda é injusta e inaceitável. Por conta dos questionamentos mobilizadores que o movimento feminista levanta, historicamente foram criados discursos e rótulos estereotipados numa tentativa de enfraquecê-lo. Sem sucesso. O movimento segue atuante, colocando em pauta todas as questões em desequilíbrio. Fico feliz ao ver tantas mulheres fortes construindo esses avanços e conscientizando jovens e garotas.

Esse cenário diverso em constante disputa é o que caracteriza o feminismo contemporâneo. Não tenhamos medo da pluralidade. Como bem disse Bruna Benevides**: “Opressões e especificidades não se anulam ou são antagônicas. Por isso, não deveríamos permitir que assumam um papel determinante dentro dos feminismos, sob o risco de largar a mão daquelas que constroem resistências em seus territórios/campos de atuação. Precisamos seguir na luta contra o patriarcado juntas”. É importante que entre as mulheres haja cada vez mais conexão e sororidade, sem competição ou cobranças comportamentais e estéticas.

Dentro e fora do movimento, a sabedoria é buscarmos justiça com firmeza diante dos conflitos e alianças, apesar das diferenças. Isso nos torna mais fortes na luta. Um exemplo de união foi retratado em um filme que muito me marcou, intitulado Orgulho e Esperança (2014). Eu pude assisti-lo em uma mostra gratuita de filmes organizada por estudantes em uma universidade. Na história, baseada em fatos reais, ativistas LGBTQIA+ e trabalhadores das minas, dois grupos diferentes que sofrem opressões diversas, aprendem a reduzir barreiras e unir forças ampliando o impacto de seus protestos. Também o filme Milk: a voz da igualdade (2008) mostra um grupo ativista pedindo apoio a outro para boicote ao consumo de um produto de empresa antiética.

Quanto mais aprendermos na prática a colaborar e avançar coletivamente, mais o mundo ficará justo e inclusivo. Não vale a pena permitir que algo nos divida e nos coloque em rivalidade para nos controlar. Somos livres!

*. CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE. Sejamos todos feministas. Tradução: Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
*. BRUNA BENEVIDES. O mito da mulher universal. Revista Azmina.

Revisão: Flavia Neves (@estranhageira)

* Carla Piaggio é designer editorial na Carla Piaggio Design. Graduada pela Universidade do Estado da Bahia. Master em Produção Editorial pela Università di Verona, Itália. Coordenadora do coletivo de design negro PretADG, na ADG Brasil.

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