“Defendo o veganismo popular, inspirado na reforma agrária e com a consciência de classe no centro da luta”
Não é possível ser vegano sem uma perspectiva política de transformação da sociedade.
O veganismo vem crescendo nos últimos anos no Brasil, mas em geral aparece na mídia vinculado a um hábito alimentar sem produtos de origem animal. A União Vegana de Ativismo (UVA), rede criada em 2018, em Recife, defende algo muito além disso: não é possível ser vegano sem uma perspectiva política de transformação da sociedade. Para entender melhor esse debate, conversamos com Sandra Guimarães, uma das fundadoras do movimento.
Ela sempre militou em diversas causas: antifascismo, anarquismo, feminismo e LGBTQIAP+. Neta de agricultores familiares e filha de sem terra, cresceu em Natal, no Rio Grande do Norte, trabalhando desde cedo por um futuro melhor. Há 15 anos não come qualquer produto de origem animal, e é formada em linguística pela universidade Sorbonne.
Na entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Sandra explica como funciona a UVA, que hoje é composta por 40 coletivos em todo o país, e os princípios que norteiam a luta vegana. Ressalta a necessidade da reforma agrária e da agroecologia para garantir um modelo ambientalmente adequado e igualitário que saia da lógica desenvolvimentista. Para isso, é preciso conscientizar as pessoas sobre a causa, apontar caminhos e políticas públicas alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemônico na produção de alimentos.
Como você começou a se envolver com as lutas políticas e o veganismo?
O direito à terra foi o começo da minha militância. Comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos, como qualquer família empobrecida, e fiz uma escola técnica que me ajudou bastante para ter um emprego melhor. Aos 20 anos, tive dinheiro suficiente para fazer faculdade em Paris, onde fiquei seis anos, estudando linguística, e depois fui militando em solidariedade morar na Palestina por 5 anos, em Belém, na luta por autodeterminação do seu povo e trabalhando com mulheres palestinas refugiadas. Mora desde 2019 em Aubervilliers, na periferia norte de Paris, no distrito 93, que é o mais pobre, racializado e tem mais imigrantes.
Me tornei vegana há 15 anos. Há muitos anos tenho um blog chamado Papacapim, onde comecei a falar mais do lado político e ver que o veganismo foi ficando mais popular. Ele é a extensão lógica da minha luta anti opressão e exploração. Quando comecei a ver um veganismo de Instagram e “estilo de vida” crescendo, bem sudestino, branco e de classe média alta, foi me incomodando, porque isso sempre se tratou de uma luta política para mim. Em 2018 fiz uma turnê pelo Brasil em 11 cidades em 20 dias, e encontrei veganas/os que também não se sentiam representadas/os por esse movimento mais gourmet de celebridades. Na última cidade, Recife (PE), fizemos uma reunião contra essa encarnação liberal do veganismo e criamos a UVA. Não é uma ONG nem uma estrutura hierárquica com diretorias, porque muitos [que passaram a integrar a rede] já tinham participado de organizações que, geralmente, têm sede em São Paulo e mandam diretrizes para o resto do Brasil. Nem sempre faz sentido. Em relação ao Nordeste, sabemos bem a xenofobia que rola. Então, resolvemos fazer essa rede para conectar as pessoas e afirmar o veganismo como um movimento social, em defesa da consideração moral de todos os animais, humanos e não-humanos. Acreditamos que o veganismo deve se articular a outras lutas por justiça social e ser disseminado de forma acessível e popular.
No ano seguinte, fizemos o I Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo (ENUVA), quando vários coletivos foram criados, e também escrevemos a nossa carta de princípios. Os coletivos que querem entrar na UVA precisam estar alinhados aos princípios desta Declaração de Recife. Oferecemos essas ferramentas para a militância nos territórios, mas sabendo que elas têm consciência sobre o que faz sentido para a sua luta local. O coletivo de Belém (PA), por exemplo, vai fazer ações de forma livre que talvez não façam sentido em São Paulo. Hoje, temos 40 coletivos alinhados à UVA.
Vocês têm alguma forma de captação de recursos ou razão social? Como esse evento foi financiado, por exemplo?
Não temos razão social nem recursos próprios, fazemos a captação para ações específicas, como esse encontro nacional. Todos são voluntários. Há vários Grupos de Trabalho (GTs), e a instância de decisão maior é a Assembleia Geral. Abaixo disso, tem o Conselho Gestor, do qual faço parte juntamente com os representantes dos coletivos. Até a realização do ENUVA, as decisões são tomadas por esse conselho. Abaixo dele tem as coordenações dos sete grupos de trabalho. Eu faço parte do GT de acolhimento e formação política, que é sobre formação interna, e tem a carta política levada aos candidatos, já que neste ano temos eleições. Não temos empregado nem salário, só nos eventos fazemos a captação pontual.
Quais as pautas prioritárias deliberadas nesse encontro e nessa carta de princípios? Como se traduz na prática essas ações dos coletivos nos territórios?
Na Declaração de Recife tem descrito ponto a ponto, mas de maneira prática as ações dos coletivos são variadas: desde educação, panfletagem a levar marmita às pessoas em situação de rua. Estamos sempre fazendo palestras e cursos para divulgar informação e nos formarmos politicamente. Um coletivo de Recife fez uma formação sobre o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) e o veganismo. Então, tem muitas ações externas também. Há muita diversidade nas atuações, como o que levou receitas culinárias para o restaurante da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Fiz uma formação para o Armazém do Campo [do MST], em que a gente ensinou o pessoal a preparar pratos 100% vegetais usando os produtos vindos da agricultura familiar, dos assentamentos e que respeitem nossa cultura alimentar. Levamos também uma formação política e culinária ao pessoal do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) nas cozinhas solidárias. Recife é o centro da revolução vegana no Brasil. Sempre lutamos para levar alimento vegetal aos restaurantes universitários e populares, merenda escolar etc. Investimos muito no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que é uma das nossas frentes de luta. Tem lugar em que os 30% [de produtos da alimentação escolar, que de acordo com a lei, devem ser provenientes] da agricultura familiar nem é respeitado, mas lutamos para aumentar esse percentual. No ano passado, foi criado um setor de direito aos animais dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), e nos chamaram para construirmos a pauta no programa do partido. A nossa demanda foi o aumento para 70% no Pnae, e o guia de direitos dos animais está nas mãos dos deputados do partido.
Quais as discussões em torno do veganismo?
Os nossos inimigos não sabem o que estamos fazendo ou nos demonizam. O problema é a galera na esquerda, dos movimentos, que não sabe ou prefere não saber o que é o veganismo. A gente está do mesmo lado, nossas pautas estão alinhadas. Às vezes, é por ignorância mesmo. É preciso explicar primeiro o antiespecismo, que é uma discriminação baseada na espécie. Assim como o racismo é baseado no que imaginamos ser raça, o sexismo no sexo e assim por diante… É uma ideologia que diferencia o que é ou não humano, e nos coloca acima de outras espécies, que passam a ser usadas como recursos por nós. Existe uma hierarquia, porque a gente vai amar cachorro e vai comer vaca. Criamos um meio para proteger gato e cachorro, mas fazemos o que queremos com o porco e a galinha. Isso é muito cultural, na Índia a vaca é sagrada e na China a população come cachorro, enquanto aqui tem lei para proteger esses caninos. A espécie não pode ser uma fator determinante para a discriminação, e o veganismo é a pratica de solidariedade politica com outros animais não humanos. Não falei de regime, comida, estilo de vida, mas de uma prática de solidariedade política. Me recuso a participar da exploração de outros animais. Dentro do possível, a gente é anticapitalista, sabendo que moramos num mundo capitalista Então, tento construir uma alternativa ao mundo sem especismo, mas sabendo que é dentro dessa estrutura. Fui vacinada contra a covid-19, por exemplo, que foi testada em animais.
Uma parte do veganismo diz respeito à alimentação, mas o veganismo não é uma dieta nem um estilo de vida. Você pode ter uma alimentação vegetal, ser vegetariana por razões de saúde ou pelo meio ambiente. Mas o veganismo é um posicionamento político. É a prática de solidariedade política com outros animais. Por isso, não existe comida vegana, existem pessoas veganas, comida é vegetal. Um prato de cuscuz ou tapioca, por exemplo, não é vegano. Não existe hamburger vegano, e sim comida com vegetais, veganas são as pessoas. Essa distinção é muito importante, porque quando você transforma o veganismo em etiqueta e selo e cola na comida, acaba transformando um movimento político num modo de consumo. Dá brecha às pessoas para falarem que não gostam, mas elas nunca comeram uma macaxeira ou um macarrão com molho de tomate? Não gostam de feijão?
Como é esse impasse e até contradição entre o mercado e a perspectiva política? Porque na perspectiva popular e democrática, acaba esbarrando nesse sistema de produção alimentar e tantos outros embates.
Temos vários tipos de veganismo. Defendo o popular, inspirado na reforma agrária e com a consciência de classe no centro da luta. Mas estamos disputando espaço com a galera vegana liberal que, como em todos os movimentos, vai sempre tentar capturar parte da luta e despolitizá-la para transformá-la em mercadoria e consumo. Esse veganismo despolitizado é o que mais tem atenção da mídia, que prega um lifestyle e acredita que podemos comprar como o capitalismo verde. Essa corrente extremamente liberal fecha com os frigoríficos JBS e, Friboi, que tamém fazem hambúrguer vegano. A mesma galera que acha que só pode militar através do consumo e, então, tem que comprar produtos. Acham que veganismo é um selo, então despolitizam muito a luta e parece que é só um nicho de mercado. Defendemos o veganismo popular numa sociedade sem exploração. As pessoas não acordam dizendo que hoje serão más com os animais. A maior parte delas os come porque não tem alternativa. Lutamos pela emancipação total, de todos os corpos. Então, precisamos mexer nas estruturas fazendo com que cada pessoa tenha acesso à alimentação vegetal. Temos que sair do capitalismo, construir outras relações de produção com a terra, daí entra a agroecologia. A gente não quer veganizar o mundo, a gente quer acabar com a dominação humana sobre o não-humano, e sem agroecologia não combatemos o especismo. O veganismo popular não diz o que você deve comer, ele pede que você se pergunte: “Quem eu posso comer?” “Por que como o que eu como?” e “Que estruturas e sistemas reforço ou enfraqueço com as minhas escolhas alimentares?” No Brasil, quando escolhemos comer carne, estamos reforçando o agronegócio, a concentração fundiária, a grilagem de terras indígenas… O modelo de mundo do agro e da pecuária. Ao escolher a macaxeira, a batata doce e o feijão, estamos reforçando o modelo da agricultura familiar, que defende a reforma agrária. Não é uma dieta ou um regime que queremos impor, apenas vamos questionar a ideologia que força os seus hábitos alimentares. Por isso falamos de reforma agrária, agroecologia, soberania alimentar, anticapitalismo etc.