“Decoloniedade Afrofuturista”, com Rafael Bqueer
Rafael Bqueer é a #artistafoda dessa semana e concede entrevista à equipe NINJA/FOdA. Drag queen e ativista LGBTQIA+, paraense de Belém, Bqueer atua em investigações sobre arte política, sexualidade, afrofuturismo e decolonialidade.
Por Amanda Olbel, para o @planetafoda
A entrevistada da semana para #ArtistaFOdA é a artista e performer Rafael Bqueer que atua hoje com investigações sobre arte política, sexualidade, afrofuturismo e decolonialidade. Drag queen e ativista LGBTQIA+, Bqueer tem um trabalho que dialoga também com vídeo e fotografia, utilizando de sátiras do universo pop para construir críticas atentas às questões da contemporaneidade. Atua de forma transdisciplinar com vivências entre a moda, escolas de samba e arte contemporânea.
Rafael Bqueer, graduade em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), nasceu em Belém/PA, 1992, e atualmente vive e trabalha entre Rio de Janeiro e São Paulo. Ainda na adolescência começou seus primeiros trabalhos como figuriniste e carnavalesque de escolas de samba e grupos juninos de Belém do Pará, e essa paixão a levou, posteriormente, ao curso de Artes Visuais da UFPA. Durante sua graduação ganhou uma bolsa de intercâmbio para estudar na UFRJ e enfim poder trabalhar no carnaval do Rio de Janeiro.
Rafael conta que o espaço acadêmico lhe trouxe o desafio de lidar com as narrativas eurocêntricas da história da arte oficial, onde se enxergava como ume alienígena nestes lugares, mas aos poucos foi entendendo a necessidade de ocupar esses espaços para legitimar narrativas pretas e LGBTQIA+ dissidentes . Diz ainda que buscar o imaginário popular para falar de arte contemporânea sempre foi algo bastante natural para elu e também a aproximou dos professores Zélia Amador e Arthur Leandro, dois importantes pesquisadores e ativistas paraenses do movimento negro dentro da universidade.
“É preciso reescrever a história da arte institucionalizada, acredito muito no conceito de ‘escrevivência’ de Conceição Evaristo como importante ferramenta metodológica para a produção de novos conhecimentos e de reação ao racismo epistêmico. É preciso reconhecer a arte contemporânea preta que existe nos subúrbios e periferias do Brasil, nossas vivências e nossa presença são marcadores importantes para desafiar o projeto hegemônico do colonialismo.”
Seu trabalho tem muitas naturezas: um verdadeiro caldeirão de referências e misturas que vão da cultura popular aos espaços institucionais de arte. Bqueer se considera ume artista em constante processo experimental, cuje suas pesquisas surgem nas vivências entre a moda, figurino, escola de samba, arte Drag Themônia, artes visuais, fotografia e performance . Atualmente está produzindo seu primeiro filme, recentemente contemplado pela bolsa de fotografia da revista ZUM do Instituto Moreira Salles.
Aos seus 16 anos, em Belém, conheceu os carnavalescos Jean Negão e Claudio Rêgo de Miranda, importantes artistas da cena paraense. Tornaram-se amigues, e generosamente foi convidade para acompanhar seus processos e, assim, ser introduzide na cena do carnaval paraense. Suas práticas sempre foram multidisciplinares, com vivências que atravessavam cultura popular, ópera, teatro, cinema, arte-educação, etc.
“Sem dúvida muito do meu olhar amplo para experimentação vem desse berço. Meus trabalhos tem o corpo como principal questão e se desdobram em pesquisas sobre afrofuturismo, gênero, decolonialidade e tudo que atravessa minha subjetividade como bixa preta amazônica/paraense no mundo.”
Durante seu processo de imersão ao universo drag, ouviu falar pela primeira vez em afrofuturismo, e viu na personagem da comandante Nyota Uhura da série Star Trek, uma potente representação de poder na luta contra o racismo e para questionar os estereótipos brancos da arte da montação.
Quando questionade sobre sua personagem nos trabalhos de Drag Queen, diz que costuma apresentar Uhura Bqueer, brilhantemente, como:
“A panterona afrofuturista e intergalática do Pará.
É a primeira rainha drag-Themônia coroada na festa Noite Suja, em 2014.
Uma artista e ativista LGBTQIA+ que mistura diversos materiais e referências do trabalho de Gaby Amarantos e do tecnobrega paraense.
É a filha de Grace Jones com Vera Verão.”
Suas inspirações partem de todos os lugares possíveis: filmes, desenhos, vídeo-clip’s, livros, revistas, Instagram, de onde destaca algumas artistas da região norte, como Lúcia Gomes, Uyra Sodoma, Coletivo Noite Suja, Gaby Amarantos, Zélia Amador de Deus, Arthur Leandro . Diz não se cansar de assistir desfiles das escolas de samba de vários anos: um de seus vícios. Também conta ser fã das narrativas dos carnavalescos Joãosinho Trinta, Fernando Pinto e Rosa Magalhães.
Já seus estudos sobre fotografia e performance tem referências também da moda e artistas visuais de diversos países, incluindo artistes contemporânees negres e indígenas que atuam politicamente dentro e fora do circuito de arte.
Durante o início de seu trabalho com performance, a infância aparecia de forma recorrente para pensar suas memórias com os anos 90 e a ausência de representatividade afro-indígena na televisão, cercada por conteúdos de origem eurocêntrica, japonesa e estadunidense, muito bem apreentada na apresentação “Super Zentai”.
“Eu adoro trabalhar com signos ditos globais, que ganham caráter irônico ao se confrontarem com a realidade social e colonial do Brasil.”
Em seu trabalho “Alice e o chá através do espelho”, atravessa diversos cenários do Brasil, caminhando do Rio de Janeiro ao Pará, com seu corpo “lúdico, negro e gay”, onde o maravilhoso e a destruição andam juntos, coexistem constante e simultaneamente. Reúne o imaginário carnavalesco e a imagem de Jorge Lafond como importante referência para levantar questionamentos sobre gênero, racismo e representatividade no campo da arte. A paisagem cercada pelo lixão em meio ao território amazônico cria um diálogo com o trabalho “Sanitário Santuário”, da performer e artista paraense Lúcia Gomes.
Brinca com os espaços urbanos, que não carregam a mesma mágica da história original, de Lewis Carroll, trazendo mesmo assim esse universo onírico e utópico do conto infantil, para essa realidade distópica, cruel, da desigualdade, do que é precário nas cidades e nas relaçoes entre os moradores desses espaços. E nisso questionando as heranças coloniais do absurdo e as contradições dos tempos atuais.
“A personagem na verdade não ignora o seu entorno, ela está a todo momento na dúvida de qual o seu lugar em um mundo, que se mostra distópico e sufocante. No começo da ação em 2013, o figurino causava uma sensação de contraste com as paisagens e com o corpo que o vestia. Com o passar dos meses o vestido foi apodrecendo, sobrepondo camadas de sujeiras das cartografias, fazendo muitas pessoas associarem minha imagem de Alice a uma empregada doméstica, uma afirmação que revela muito sobre o olhar colonial e racista do Brasil.”
Em um de seus trabalhos performaticos mais potentes, “Sem título”, elaborado durante o curso de formação para artistas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, levanta discussões sobre corpo, objetificação e fetiche. Construindo criaturas híbridas de caráter surrealista, juntando corpos e objetos em uma ação que questiona os padrões normativos e o corpo como objeto de arte. Bqueer aparece mimetizada a uma poltrona, revestida de um tecido de lycra, progressivamente fazendo movimentos, por debaixo do pano colorido. Nos passa uma tremenda angustia a ver enclausurada, sem possiblidades de libertação, e remete ao famoso quadro do pintor espanhol Salvador Dalí, “Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo “. Desenvolvida durante a Segunda Guerra Mundial, a pintura transmite a preocupação do artista com o futuro da humanidade diante da perspectiva sombria da época, e temos uma figura de um homem se esticando por dentro de uma casca de ovo.
Rafael demonstra então esse desejo de sair de um estado de objeto artístico e social. Uma tentativa de deslocar-se desse espaço estigimatizado dos corpos que não seguem a “regra” heteronormativa, que cada dia mais se aproxima da falência e do desgaste. Estar mimetizado na poltrona, não parece somente um estado primário de “nascimento”: de formatação original, da qual deseja-se desvincular, parte muito mais de pressuposto de castigo, de punição, sendo obrigade a se adequar a essa “caixinha” sistemática. Foucault diria que dentro da sociedade existem mecanismos de disciplina e sequestro dos corpos, os quais devem ser continuamente exercitados, treinados modelados, remodelados, remendados, corrigidos através de recompensas e punições. Portanto, abre-se um espaço para resitência e o delinquente aqui, para a nossa felicidade, tem como sinonimo a liberdade transviada.
Rafael Bqueer já participou de exposições nacionais e internacionais, destacando : “Against, Again: Art Under Attack in Brazil”- Shiva Gallery em Nova York (2020) e a individual “UóHol” no Museu de Arte do Rio (2020). Foi artista premiade na 8º Edição da Bolsa de fotografia da Revista ZUM – Instituto Moreira Salles (2020) e na 7º edição do Prêmio FOCO Art Rio(2019) . Suas obras fazem parte das coleções do Museu de Arte do Rio (MAR) , Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) e Museu do Estado do Pará (MEP).
Para ver mais de seus trabalhos, acompanhe-a pelo perfil @rafaelbqueer no Instragram, onde compartilha fotos e informações, e suas performances como Drag Queen, no perfil @uhurabqueer. Acompanhe a página do @planetafoda para ficar por dentro dos próximos Artistas FOdA’s, publicados todas as quintas-feiras.
Fotos desta edição: Paulo Evander Castro, Alice Ninn, Alex Korolkovas e Lou Pipa