De túmulos falsos a criança no fogo: jurados de morte, defensores relatam violações
Vivendo em uma das regiões de maior conflito no Brasil, denunciam a falta de apoio e apontam deficiências dos programas de proteção
Segundo a organização internacional Global Witness, o Brasil é o quarto país que mais mata ativistas no mundo. Assim, quem assume a liderança em defesa da terra, meio ambiente e território pode estar assinando sua sentença de morte. Esse é o caso de quatro defensores que em entrevista à Mídia Ninja relatam os desafios, ameaças e a falta de apoio do poder público no todo – forças de segurança, Judiciário, Legislativo e Executivo –, e deficiências dos programas de proteção que os atendam de maneira justa para que mantenham com dignidade.
Vivendo em fuga, Osvalinda e Daniel Pereira não se esquecem do dia que se depararam com dois túmulos falsos cavados no quintal de casa; Polly Soares viu a filha de dois anos nas mãos de pistoleiros enquanto eles ameaçavam jogar a criança no fogo e, jurado de morte, nem Erasmo Teófilo, nem qualquer um de sua família pode mais voltar ao Projeto de Assentamento Dorothy Stang, que ajudou a criar.
Além de viver sob tensão, eles têm em comum a região de origem. Vivem em comunidades dos rincões da Amazônia Legal, região que detém boa parte dos conflitos no campo registrados no país, como atestou o relatório Conflitos no Campo 2021, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A Amazônia foi palco de 52% dos conflitos por terra no Brasil em 2021. Sozinha, a região tem 62% do número de famílias atingidas. Além disso, 97% das áreas de conflitos – quase 69 milhões de hectares – estão no bioma. Já os números dos assassinatos revelam que das 35 das mortes em conflitos no campo em 2021, 80% ocorreram na Amazônia Legal
Osvalinda e Daniel Pereira se cansaram de fugir e de uma vida de mudanças a todo tempo, impostas pelo programa de proteção. O apelo da comunidade pesou sobre a decisão de voltar ao território, como conta a presidente da Associação de Mulheres no Projeto de Assentamento (PA) Areia, localizado a 42 km da sede do município de Trairão (PA), onde vivem cerca de 280 famílias. Então, ela voltou ao território.
Osvalinda conta que a situação foi se agravando gradativamente. O PA foi criado em 2010 e eles estão na luta desde então, mas as ameaças que começaram firmemente em 2012, ganharam contornos perigosos em 2018. A vida do casal virou uma viagem em uma montanha-russa.
“A primeira ameaça veio de uma carta que deixaram na nossa moto falando que a gente estava atrapalhando os grandes a trabalhar. Os pequenos, no caso, somos nós, os agricultores. Os ‘grandes’ são fazendeiros, madeireiros… Pessoas de posse”.
Por conta do alerta, fizeram o primeiro boletim de ocorrência de uma série deles.
“Em 2014 recebemos uma visita de doze pistoleiros com os fazendeiros, todos armados. Eles ofereceram dinheiro, à época eu precisava fazer uma cirurgia cardíaca. Então, disseram que eu poderia pagá-la e ainda sobraria dinheiro para trabalhar na associação, mas ao mesmo tempo, eu tinha que sair da região. Disse que não queria o dinheiro deles e que não éramos empregados deles”, relembra.
O homem não gostou do que ouviu e disse que “se os empregados dele viessem a ficar desempregados por causa do casal, porque o Ibama ou ICMBio entrava e queimava as máquinas dele, e que se os filhos desses empregados passassem fome”, que não se responsabilizaria por reações violentas.
“Eu disse a ele que aquilo era uma ameaça e que eu o denunciaria e ele retrucou dizendo que era um alerta porque ‘as pessoas que querem ajudar agricultor preguiçoso, morre que nem a Dorothy’”, ao mencionar a missionária assassinada aos 73 anos, em Anapu, no mesmo estado.
“A partir desse momento começamos a ser perseguidos. Tinham motos atrás de nós, tivemos que nos esconder em casas de apoiadores e amigos e quando íamos fazer boletim de ocorrência até os escrivães nos aconselhavam a não fazê-lo. Desde essa época não tivemos mais sossego. Polícia fazendo ronda, perseguições. A gente não podia mais ir para a cidade, nem à igreja podia mais. E foi isso anos a fio. Em 2018 cavaram duas covas no quintal da nossa casa simbolizando as nossas covas”.
A polícia foi até o local, mas segundo ela, só arrancaram as cruzes e jogaram fora, disseram que era apenas uma ação para amedronta-los.
“Ver sua sepultura ali, traz um sentimento muito ruim. É difícil lembrar disso. A gente fez até tratamento para dormir, temos que tomar remédio, isso fica na cabeça da gente. Nós temos netos que não podem nem ir à nossa casa, meus filhos não vão à nossa casa. Vivemos isolados”.
Ela diz que voltaram por insistência da comunidade. “Eles contaram que o período que estive fora, foi terror total”. A associação age na defesa dos direitos à terra, mas principalmente, das mulheres que vivem nela.
“Elas sofrem ameaças, as crianças são estupradas. Eles engravidam crianças! Eles mataram uma menina grávida e sumiram com o corpo. As meninas que os interessam, e que a família se opõe, eles levam mesmo assim. Depois devolvem a menina. Ninguém denuncia porque se denuncia, morre”.
Foi para protege-las que criou a Associação de Mulheres.
“Mas nisso fui a mais atacada. Buscamos ajuda para que os direitos delas fossem defendidos, porque afinal, muitos homens estavam dependentes dessas pessoas a um ponto que estava mais para trabalho escravo. Então, atuamos também para resgatar os agricultores, para legaliza-los. Hoje temos 50 sócios, só que ativos mesmo, só 20. Os outros têm medo”.
O marido dela disse que voltaram porque viver fugindo, enquanto se tem uma casa, é difícil demais. “E as ameaças dessas pessoas não prejudicam só as mulheres, prejudicam a família toda. Para se ter uma ideia, ônibus nem entram mais, então os pais têm que levar as crianças, e mulheres, levam para o mato. Não adianta fazer boletim de ocorrência, nada acontece”.
Ele realça que é preciso apoio do poder público.
“Ninguém quer viver escravizado, encurralado. A gente quer viver em paz. Só queremos ter o direito de trabalhar, de vender nossos alimentos. Eu trabalho de sol a sol, não tenho estudo, mas tenho força para trabalhar. Mas não tenho ninguém para comprar meus produtos, sou boicotado”.
Ele se declara um aliado das mulheres. “A associação nasceu para guardar o direito das mulheres. Eu nasci de uma, vivo com uma e tenho filhas. Defender a mulher é questão de respeito”.
Resiliente, Osvalinda destaca que mesmo em meio às ameaças, vão sobrevivendo. “E o apelo que faço, é que o poder público nos ajude. Já fomos várias vezes à Polícia Federal, Ministério Público. Já ficamos então em acolhimento provisório por dois anos por causa das covas. A gente se sente morto por dentro quando tiram a gente do território e não dão apoio lá dentro. Saquearam nossa casa, roubaram tudo. Tivemos que começar do zero. As pessoas que dizem que nos protegem, apenas ligam para perguntar se estamos bem, tiram fotos, mandam relatório… Para dizer que estamos vivos”.
Proibido de voltar
Na luta também no Pará, estado que liderou o ranking nacional de conflitos por terra em 2021, muitas vezes jurado de morte, nem Erasmo nem a família podem mais voltar a Anapu (PA). De acordo com os dados da CPT, entre as maiores vítimas dos conflitos no campo no Pará estão os povos indígenas (38%), sem-terra (29%) e assentados da reforma agrária (13%).
Ele conta que lutou por sete anos na representatividade das famílias dos lotes 96 e 97, do que agora é o Assentamento Dorothy Stang, em homenagem à missionária assassinada no município. “Mas na verdade, a luta começou a partir do momento que nasci, como deficiente, me vi obrigado a lutar até por espaço. Com 16 anos, fui presidente da Associação de Deficientes na Transamazônica, em Altamira. Daí fui chamado para conhecer o assentamento e lá fiquei”. Só não está mais lá, porque não pode.
“Eu estou sendo expulso da minha casa. Depois do penúltimo ataque que sofremos, não posso mais ir a Anapu, porque se eu for, vão me matar. Minha família teve que sair também, meus pais foram atacados. Se não tivessem com os companheiros, não sei o que teria acontecido. Nem na Romaria da Floresta eu pude ir, porque eles teriam que aumentar o nível de segurança, pelo risco de ataques”.
Ele conta que em uma batalha que para ele durou sete anos, venceram pelo menos 14 reintegrações de posse. “A das famílias é de 11 anos. Houve inúmeras investidas do município e governo para tentar nos tirar de lá e mais recentemente fomos atacados há mais de três meses, casas invadidas e queimadas por pistoleiros, mas o que é diferente no lote 96 e que me move com relação às famílias, apesar de todos esses ataques, é que continuamos resistindo. Depois desse penúltimo ataque, já houve outro. Mas o MPF decretou a criação do assentamento”.
Erasmo frisa que é graças à atuação do Ministério Público Federal, pois segundo ele, o Incra “fez parecer que foi ele que quis fazer. Mas foi multado por mais de um ano, para que criasse o assentamento já que o lote 96 era terra pública e destinada à reforma agrária. Tinha que fazer o assentamento. Foi obrigado a fazer o papel dele judicialmente. Porque se um órgão que deve trabalhar pela regularização e não faz, ele incita a violência, ele promove. Ele é responsável a partir do momento que pode resolver e simplesmente se cala”.
Agora a luta é pela Amazônia
Ainda que tenha de se manter distante, Erasmo está animado com os desdobramentos da luta. “A própria comunidade, agora que é assentamento, agora eles vão se autogerir, é isso que espero, a comunidade vai ficar com dois projetos agroflorestais. Um já feito pela CPT, por meio das irmãs Jane e Kátia, outro, coordenado pelo professor Anderson Serra”.
O sonho do ativista é que o projeto de agrofloresta se consolide. “Se eu pudesse sonhar com alguma coisa para deixar o lote, seria o projeto de agrofloresta. Cumprimos a missão, agora cabe às famílias continuarem o que já vínhamos fazendo e tenho plena certeza de que farão. É um projeto para dar dignidade, renda e manter a floresta em pé. Para que as famílias não sejam cooptadas pelo agronegócio”.
E ele diz que se isso ocorrer, certamente que somará forças. “A luta do Erasmo e da Natália [esposa dele] não é só pelo lote 96. Muitos amigos vão dizer que somos loucos e vão ficar preocupados quando lerem isso, mas já definimos que a luta é pela Amazônia. Uma luta contra o agro na Amazônia”. Ele trabalha em uma proposta de criação de uma área de preservação permanente na Amazônia.
Luta pela democratização da terra
Em outro município paraense, Polly resiste junto aos companheiros do Acampamento Hugo Chávez, que fica em Marabá. Ela faz parte da direção estadual do Movimento dos Sem-Terra e é autodeclarada defensora dos direitos humanos e da democratização da terra.
“Atuou nos territórios ameaçados de despejo, na defesa famílias acampadas e assentadas. E no Pará, a luta é muito violenta. É um dos estados mais perigosos para os defensores que lutam pela terra, pela floresta, pelas águas e comunidades tradicionais. Temos nos deparado com muitas situações de violações aos direitos humanos”. Como ataques à sua comunidade, que já sofreram dois despejos, um em dezembro de 2017 e o segundo, em 2018.
“Este último, promovido pela milícia da região, que chamamos de agromilícia. Eles invadiram, atearam fogo em todas nossas coisas, agrediram crianças, ameaçaram lideranças de morte e tentaram sequestrar minha filha, que à época tinha dois anos”.
Hoje, ela tem cinco anos.
“Mas ela ainda lembra, do fogo, dos tiros, das bombas, dos animais jogados em caminhonete com chamas e é muito difícil lidar com isso porque o Estado é agressor, porque mesmo que não agride, não repara os danos, o Estado brasileiro infelizmente tem cumprido um papel de algoz. É um Estado genocida, fascista e governado por um presidente que não valoriza a vida das pessoas, com a dignidade da pessoa humana”, desabafa.
“Então, desde 2018 sou ameaçada de morte. Mas uma coisa sou eu, que sou adulta, outra coisa é uma criança. Minha filha foi ameaçada de ser jogada numa caminhonete em chamas. Isso não passa na sua cabeça, mas quando acontece, te revolta muito. Desde 2018 não vivemos em paz. Recebemos telefonemas, mensagens de texto por WhatsApp”.
Ela realça que o Movimento dos Sem-Terra vem de um enfrentamento muito brutal do ponto de visto da violência.
“Em 1996 aconteceu o massacre de Eldorado dos Carajás. Perdemos muitos trabalhadores naquele momento e depois daquele massacre, também. A gente vem de um histórico de luta e enfrentamento atravessado a todo momento pela violência, nossas lideranças estão no alvo do latifúndio”. E que para as mulheres, é muito mais difícil. “É muito difícil para as mulheres defensoras, porque nossos filhos também estão sob a mira”. A invasão do crime organizado, principalmente o narcotráfico, também é alvo da preocupação atual.
Polly cresceu sob a pressão da violência. “Eu venho do município de Eldorado de Carajás. Eu tinha 12 anos e esse foi meu primeiro contato mais direto com a violência. Quando a gente foi até à curva do S no dia 18 de abril, eu tinha 12 anos de idade. E eu perguntei à minha mãe porque aquilo tinha acontecido e ela respondeu: ‘os ricos acham que têm o direito de tirar a vida dos pobres’. E me angustiei, porque eu pensei que as pessoas tinham sim direito a um pedaço de terra, a uma vida digna e justa”.
E ela também sente falta da assistência do poder público. “Mais tarde, quando houve o episódio de 2018, não tínhamos perspectiva. Se o Estado não vai reparar, não vai dar apoio, nós nos reorganizamos de novo, porque não podemos abandonar a luta pela terra, que é legítima. Estamos enfrentando um sistema agrário, que é concentrador. Não é justo que uma pessoa só com sede de muita terra na mão enquanto tem 200 pessoas que não têm”.
“Estado brasileiro optou por um lado”
Ela defende que a democratização da terra é importante para que a sociedade se desenvolva de forma saudável, para que as pessoas tenham saúde e educação de qualidade no campo, moradia. “E esses são direitos que não podem ser negados simplesmente porque o Estado brasileiro optou por um lado, abrindo mão do povo”.
E enfatiza que a luta é necessária para que o país volte a oferecer alimentação de qualidade e acessível.
“É muito triste saber que 33 milhões de brasileiros passam fome, comem resto de osso, resto de comida. Vão buscar comida no lixo! E a gente, sabendo que existe condições de produzir alimento saudável, condições e terra, mas que não é dividida”.
Polly diz que há como ajudar a luta dos trabalhadores sem-terra, buscando informações verdadeiras, saber a verdade que está detrás do que a mídia tradicional fala. “Porque existe um preconceito muito grande com relação à luta pela terra e convencionou-se no Brasil, desde a eleição de Bolsonaro, que o MST é terrorista, bandido, que queremos terra pra vender, é mentira”. Enfatiza que os assentamentos estão abertos para qualquer pessoa visitar e ver como é a vida dos trabalhadores, o que produzem.
“Então, não dissemine mentiras. O povo Brasil precisa lembrar que é a agricultura familiar que coloca arroz e feijão na mesa todos os dias. Pequenos produtores, trabalhadores, acampados e assentados da Reforma Agrária, não é o agronegócio. Pode ter propaganda bonita, mas o agro produz morte, não vida”.
E por fim, convoca as pessoas a interagirem com as campanhas, com as denúncias. “E se você sabe de um assentamento perto de você, vá fazer uma visita, tire suas próprias conclusões”.