Foto: Emergentes

Ignoramos nossa verdadeira estatura
Até nos levantarmos.
Emily Dickison

Por Freya Cadena Naranjo*

No mês de junho, e depois de uma série de acontecimentos que nós como coletiva organizamos; centenas de mulheres com o resistente desejo conseguimos que toda pessoa com capacidade de gestar tivesse a possibilidade de optar em qualquer momento e por qualquer razão pelo aborto seguro, livre e legal.

A jornada de 13 de junho começou com os primeiros raios do sol e cedo o dia se viu cheio de dezenas de atividades que todas as grupas feministas de Córdoba tinham preparado, entre as quais: pañuelazos (os lenços verdes todos juntos), ações, intervenções. Em Córdoba, recorria no ar a sensação de cumplicidade, união, esperança, seguridade e sobretudo de carinho para todas as mulheres com quem se construiu e se tinha transitado esta luta. Era imprescindível continuar de perto o debate na Câmara de Deputados e assim fizemos desde seu início às 11h00.

Muitas acompanhavam o debate de seu escritório, casa, universidade. Um sem número de sentimentos nos percorriam, pensávamos em quanto nos havia custado transitar uma luta cujo principal objetivo eral obter a legalização de um direito que nunca devia ter sido retidado, lembrávamos com saudade cada passo que demos e que deram no passado, esse que nos deixou um legado e agora gritávamos também pelas que não estão.

Em instantes ao redor nosso uma maré de cor verde pintava a cidade, na esquina onde estava, com temperatura de 4 graus e minhas mãos salpicadas de cor verde, das pinturas que fizemos, me dizia: somos imparáveis, somos decididas, vamos conseguir!

Aquela noite chegou com um vento agudo e frio; todas os grupos que acompanharam esta causa tomaram as ruas, especificamente próximo ao Museu de Antropologia da Universidade Nacional de Córdoba, e não foi uma escolha casual. Nestas mesmas ruas se realizou a reforma universitária de 1918. Por outras palavras, os muros desta universidade têm memória. E foi aí onde nos congregamos.

Com tendas, música e um projetor que minuto a minuto nos informava da situação do debate, esperávamos em uma vigília cheia de alegria e de energia infindável por alcançar nossos direitos. Transcorriam as horas e a temperatura continuava descendo, procuramos refúgio na soridade de nossa presença, em momentos dormíamos compartilhando um fino cobertor que conseguimos. A gente se abraçava para conter os arrepios que com 4 graus abaixo de zero nos triturava.

Por momentos dançávamos ou cantávamos para acordar nosso “espírito socorrista” e não decair ante o clima, ou ante as mutáveis previsões de votos, que diga-se de passagem, jogou com nossas emoções, inclusive ante os comentários antidireitos que se escutavam por meio da transmissão.

Ironicamente, enquanto está inacabável listagem se transmitia na televisão nacional, uma mensagem chegou a nossa pagina de facebook. Uma mulher desesperada nos consultava por informação para abortar. “Não posso tê-lo, não agora, preciso sua ajuda por favor”. Ao ler, milhares de sentimentos nos tocaram e e também muitos pensamentos atravessaram nossos corpos. Unanimemente dissemos: não queremos que outra mulher tenha que sofrer desta maneira pelo desejo de resguardar seu projeto de vida, de resguardar-se em si mesma.

Fizemos do verde nosso grito de esperança

Então, enquando coletivo socorrista “Córdoba Hilando”, decidimos organizar uma intervenção simbólica e transmitir o debate, com ares de coletividade e paixão por nossa militância, e pintarmos a avenida Hipólito Yrigoyen de cor verde. Para nossa surpresa agradável, dezenas de pessoas aproximaram-se a pintar com a gente, participaram de nossa intervenção, e em pouco tempo, centenas de pessoas, tantas que nem a policia pôde determo-nos ou advertir-nos por ter pintado as raias brancas de trânsito, motivo suficiente para uma detenção. Os rolos atravessavam o asfalto, em quanto cantávamos em coro forte e estrondoso “Contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”

A manhã chegou e desde as 8:00 todas esperávamos ansiosas a resolução, com medo, mas também com a confiança de escutar: “Se não der certo, de toda forma, o movimento é grande e ter conseguido isto já nos faz ganhar”. Entretanto nunca deixamos de cantar, enquanto o fazíamos, na Câmara dos Deputados, disputava-se voto a voto a decisão transcendental. E chegou o momento, um silencio estrondoso invadiu toda Argentina, cada segundo nos oprimia e de forma esperançosa o silencio se rompeu com o voto final: após 23 horas de debate e com 129 votos a favor, se aprovou a Lei da despenalização do aborto na Câmara dos Deputados na Argentina.

As lágrimas, os gritos, os fogos, os cantos, os abraços, foi um mar, um estouro de emoções e o disfrutamos, tinha-se aprovado não o que os meios chamam aborto, mas também a educação sexual para decidir, a contracepção para não abortar, aborto legal, seguro e gratuito para não morrer.

Como socorristas tinha uma clareza: a partir desse dia não deveria existir nenhuma outra mulher que vá contar para nós que pagou 900 pesos argentinos pelo comprimido e que o vendedor lhe disse que precisava de 12, ou aquela mulher de bairro que teve que pagar 30 mil pesos argentinos por fazê-lo em uma clínica clandestina, ou a trabalhadora que tem 3, 4, 5, 7 filhos ou filhas porque seu médico não lhe deu a autorização para fazer uma laqueadura das trompas.

O que desejamos é que a lei passe em sua totalidade para que tenha assessoria cientifica e livre de preconceitos nos centros de saúde, acompanhamento social e psicológico em caso de que as mulheres o requeiram. Conferimos o primeiro passo e fizemos história.

Do lenço branco ao lenço verde

Se existe na Argentina um símbolo de luta nas mulheres é o lenço, o fizeram as “Mães da praça de Maio” e hoje anos depois, os lenços verdes são símbolo da luta feminista. Não é estranho escutar nesta cidade os comentários e dedicação da luta destas avós, que lutaram pelo direito ao voto, as mães que conquistaram o direito ao divórcio e hoje, nós deixamos para as gerações futuras o direito a decidir ser mães ou não.

Nos abraçamos porque sempre tivemos entre nós para lutar, mas também para abrigar-nos de carinho em momentos difíceis, porque sabemos o quão importante que era para cada uma a aprovação desta lei.

Ao final da jornada, caminhamos juntas como coletiva, como bloco, mais unidas que nunca, cantando, dançando, porque embora cansadas continuávamos firmes, porque apesar do frio que nos corta o corpo, nos movia mais a consciência que valeu a pena.

Cheia de lágrimas de felicidade percorríamos toda Córdoba, que bela luta pensava ao olhar uma e outra vez os abraços de sororidade que aconteciam quando caminhávamos para encontrar companheiras de luta. Vibrantes de felicidade cantamos em coro, gritamos forte para que todo o mundo tenha consciência que conseguimos, desta forma ressoava o som de nossas vozes pelas ruas.

“Alerta, alerta, alerta que caminha
a luta feminista pela América Latina”
“Se cuida, se cuida, se cuida seu machista
América Latina vai ser toda feminista”

 

Essa noite fomos para casa, sabíamos que tínhamos meia sanção na Câmara, e não obstante, estávamos conscientes que no dia seguinte a luta continuaria para que seja lei no Senado. Temos a firme convicção que todo mudará: a clandestinidade, o medo, os encontros as escondidas, os chats secretos, o sentimento de culpa, a vergonha, o isolamento.

* Freya Cadena Naranjo é estudante de psicologia na Universidade Nacional de Córdoba, apaixonada pelas psicanálises e o feminismo, militante de Socorristas em Rede. Anteriormente colaborou com a Rede de Acompanhamento em Aborto As Comadres em Equador.