Por Tácio Santos

A expressão “pernas tortas” pode ser referir tanto a um desvio dos membros inferiores para dentro (joelho valgo), como para fora (joelho varo). Apesar de o joelho varo ser o desvio de membros inferiores mais frequente entre jogadores de futebol, e de ser mais comum neles que na população em geral, o atleta com “pernas tortas” mais famoso da história tinha um dos joelhos com um elevado valgismo.

Mané Garrincha tinha o joelho direito valgo, mas devido a questões ligadas à saúde pública do Brasil de sua época, e não ao futebol. Ele nasceu com uma má formação congênita, em uma família humilde, quando não havia um sistema público de saúde universal como é o SUS hoje em dia. Assim, não recebeu o devido acompanhamento médico, que poderia ter resolvido tal alteração nos primeiros anos de vida com o uso de um simples aparelho corretivo.

Joelho Valgo (esquerda) e Joelho Varo (direita). Imagem: Wikipedia

Garrincha também foi vítima de poliomielite na infância, uma doença transmitida principalmente pelo contato com água contaminada por fezes de pessoas já infectadas, e que se alastrou em surtos sequenciais no Rio de Janeiro nos anos 1930. O alarmante número de casos naquela década não se deu apenas pelas péssimas condições sanitárias a que a maioria da população estava exposta, mas também pelo negacionismo das autoridades locais, que fez com que a vacinação se concentrasse nas famílias privilegiadas economicamente, que podiam ser imunizadas por um médico particular.

Com a deficiência física de nascença e as sequelas da paralisia infantil, a perna direita de Mané ficou seis centímetros menor que a esquerda, fazendo com que o valgismo fosse acentuado devido à acomodação irregular do peso corporal sobre um membro desfavorecido.

Foto: Reprodução / Twitter Botafogo

Entretanto, diferente do que costuma acontecer com as pessoas ditas “das pernas tortas”, o joelho esquerdo de Garrincha apresentava um desvio diferente do direito, pois era varo. Além dele, que atuou nos dois primeiros títulos mundiais da seleção brasileira, Romário em 1994 e Rivaldo em 2002 também tinham joelho varo. Ou seja, a única exceção nas vezes em que levantamos a taça do mundo parece ser a seleção de 1970 (que é exceção a vários outros padrões, sendo eleita o melhor time de futebol da história). Em 2022 teve Neymar, com um joelho notadamente varo, mas não teve título.

O fenômeno do joelho varo em grandes jogadores de futebol é tão notável que vários treinadores das categorias de base têm predileção por atletas com esta característica. E de certo modo, o tino deles não está errado, pois estudos científicos têm demonstrado relação da agilidade e da impulsão com o afastamento excessivo dos joelhos.

Mas tanto indivíduos com joelho varo inato, como aqueles com joelho padrão, desenvolvem adaptações ósseas favoráveis ao desvio em varo quando são expostos a regimes de treinamentos de futebol visando o alto rendimento ao longo da infância e da adolescência.

Durante o período de crescimento, as extremidades dos ossos se alongam de maneira a fazer com que cheguemos à estatura final. Ao longo desse processo, deve haver um nível ótimo de sobrecarga mecânica sobre os ossos para que alcancemos o melhor resultado dentro de nossas possibilidades genéticas. Contudo, sobrecargas superiores ou inferiores ao nível ótimo atenuam o crescimento, bem como níveis assimétricos de sobrecarga sobre uma mesma superfície óssea podem levar a um crescimento assimétrico do osso.

Ossos dos Membros Inferiores e Joelho. Foto: Wikipedia

 

A este respeito, o treinamento de futebol com volume e intensidade que visam o alto rendimento pode causar uma sobrecarga assimétrica na tíbia, o osso da canela que se articula com o fêmur, formando o joelho. Ações como corridas com mudanças repentinas de direção e desacelerações bruscas geram maior estresse na parte interna da tíbia, limitando o crescimento nesta região, e favorecendo um alinhamento varo da articulação.

Ademais, situações causadas por ações específicas do futebol, que não são comuns em outros esportes, exigem a musculatura interna da coxa de modo a elevar a sobrecarga já imposta à parte interna da tíbia, limitando sobremaneira o crescimento da região. Embora os passes, os dribles, os desarmes e os chutes estejam entre essas ações, ainda não sabemos se há preponderância de alguma delas sobre as outras. Por fim, quando os pés ficam presos ao chão pelas travas da chuteira, um novo estresse adicional é imposto à face interna da tíbia.

A longo prazo, o joelho que sofreu desvio em varo pode não apresentar nenhum desfecho diferente do joelho padrão, mas também por causar dor, aumentar o risco de lesões em geral durante a prática esportiva, de lesão de menisco, e do desenvolvimento de artrose. Assim, não é incomum que com o avanço da idade, seja necessário efetuar uma intervenção cirúrgica, como aconteceu com Garrincha, com Romário e com Rivaldo, entre outros.

Sendo assim, uma das tendências apontadas para estudos futuros sobre a saúde de atletas em formação é justamente monitorar os regimes de treinamento, o crescimento ósseo e o alinhamento dos membros inferiores para identificar o melhor a se fazer. Torcemos para que daqui a quatro anos, em uma próxima Copa do Mundo, possamos voltar com boas notícias.

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube