Da urbanização anti-urbana à construção social de um projeto para as cidades do Brasil
A conjuntura regressiva é nacional, mas tem seus rebatimentos nos municípios, com afinidades diversas entre práticas, medidas e narrativas, de tal maneira que as instâncias reforçam umas às outras e constituem um quadro relativamente coerente. Mas se algo une de fato essas escalas administrativas, este algo são as políticas que acentuam as realidades duplas, ou […]
A conjuntura regressiva é nacional, mas tem seus rebatimentos nos municípios, com afinidades diversas entre práticas, medidas e narrativas, de tal maneira que as instâncias reforçam umas às outras e constituem um quadro relativamente coerente. Mas se algo une de fato essas escalas administrativas, este algo são as políticas que acentuam as realidades duplas, ou se quisermos, duais. Publicamente, as medidas anunciadas são de austeridade, com cortes em programas educacionais, habitacionais, de cultura e de mobilidade.
A agenda assumida como necessária onera as cidadãs e cidadãos comuns, os mesmos que levam duas horas para ir e duas para voltar do trabalho, cujos salários agora serão negociados diretamente com o patronato; as mesmas mulheres gestantes que agora não poderão se negar a trabalhar em lugares insalubres, os mesmos estudantes cujo futuro afunila.
A segunda realidade é protagonizada nas reuniões de gabinetes e escritórios, onde o clima é de abertura de oportunidades: no bojo das rearticulações entre gestores públicos e os grandes players saem revisões de legislação, desonerações, concessões, privatizações e parcerias feitas se possível à toque de caixa – aprovadas em plenárias da madrugada. São medidas reanimadoras dos players que somente se envolvem em operações cujos retornos sejam de montantes substanciais, inimagináveis ao mundo assalariado. Para a realidade dual ganhar uma coerência, torna-se necessário manter na opinião pública a convicção na eficiência e no espirito cidadão dos players, o tom de responsabilidade com a famigerada crise, os argumentos pretensamente técnicos e, ainda, uma polícia bem orientada.
Mas se os paradoxos de tais narrativas políticas – que surfam como novidade na onda vintage dos anos 1990 – algumas vezes parecem abstratos na escala da macropolítica nacional, tornam-se concretos quando analisados na escala do espaço urbano. A resultante dessas dinâmicas e articulações são bem conhecidas: não produzem cidades, pelo contrário, tendem a acirrar uma urbanização anti-urbana, segregacionista e espoliativa. As medidas dos gestores não-políticos tendem a assegurar a viabilidade dos grandes negócios com o solo urbano e patrimônios públicos, capazes de gerar zonas (re)valorizadas, seletas e muradas, com acesso restrito por poder de consumo e sociabilidade estratificada, mas ao mesmo tempo, nesse imaginário onde a administração pública flerta com o empresarialismo corporativo, tende-se a ejetar os que não conseguem se manter na cidade seletiva.
Em termos espaciais, trata-se do escanteamento – ora limpeza social, ora invisibilização, ora periferização – de dependentes químicos, mas também das classes de assalariados e trabalhadores informais, de pobres e negros afetados pelo desemprego, por direitos suprimidos ou por aumento do aluguel. São levados para a periferia da periferia as mesmas e os mesmos que, ao longo de todo o século XX, instalaram-se como puderam nas bordas e sobras das cidades. Isso somente não se torna visível, vale reiterar, quando as atenções permanecem presas aos jogos publicitários.
Para o grosso da população, esse é um período difícil, de desorientação e abatimento, pois não há perspectiva de contrariar as cidades dividas e duais. E a vida cotidiana tende ao recrudescimento e agonização, mesmo quando a opinião pública diz o contrário. Mas esses momentos também são fundamentais para a reinversão das narrativas invertidas. É preciso reatar os fios da realidade cindida e, sobretudo, recolocar em circulação as práticas, os saberes e os afetos que apontam para as possibilidades de uma urbanização menos desigual, na qual os recursos sejam alocados de acordo com a expansão da cidadania, na qual se efetivem direitos previstos e tenham lugar aquelas e aqueles que trabalham e lutam.
Mas tal tarefa não é fácil e somente se constrói com força social e aposta nas ações coletivas. É necessário fazer convergir sujeitos que, embora mantenham diferenças, estejam imbuídos do desejo de uma urbanização mais coerente, uma cidade que possa ser chamada de nossa por todas e todos. Essa tarefa passa por universidades, por profissionais e técnicos, mas necessita sobretudo de movimentos sociais e de juventude, associações de bairro e comunitárias. A tarefa parece árdua, mas nos últimos quatro anos os grandes centros urbanos – a despeito da tendência regressiva na política institucional – tem sido o lugar por excelência dessas energias coletivas, tanto no que diz respeito às lutas por moradia digna, quanto por mobilidade e transporte coletivo, pelo uso de espaços públicos, por educação de qualidade e por cultura, em suma, por acessar e participar nos rumos do urbano em comum.
Uma aposta dessa natureza vem sendo gestada por uma rede cujo mote é a necessidade de retomar um projeto para as cidades do Brasil. Já assinam o primeiro manifesto a Federação Nacional dos Arquitetos(FNA), Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB – DF, RS e PB), a Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros(FISENGE). Profissionais e estudiosos da área da mobilidade urbana como ANTP-Associação Nacional de Transporte Públicos; do planejamento urbano, a Associação Nacional de Planejamento Urbano e Regional(ANPUR) e Instituto Pólis; da saúde, Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e Centro Brasileiro de Estudos da Saúde(CEBES). Subscreveram também Laboratórios de Pesquisas sediados em Universidades como USP, UFRJ, UFMG,UFF, UFMT.
Entre os movimentos sociais por moradia e por Direito à Cidade, já estão, por exemplo, o MNLM – Movimento Nacional de Luta por Moradia, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), a Frente de Luta por Moradia( FLM), a CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores, CMP- Central de Movimentos Populares, MNRP- Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Outros signatários estão na luta contra a desigualdade racial, como UNEAFRO- União de Núcleos de Educação Popular para Negros, Frente 3 de fevereiro, Coletivo Sistema Negro e Confederação das Entidades Negras(CONEN); na luta pelo reconhecimento de direitos LGBT, a União Nacional de Luta LGBT.
Subscrevem também forças do movimento estudantil como o Levante Popular da Juventude, a UNE – União Nacional dos Estudantes, União dos Estudantes do Estado de São Paulo(UEE-SP), Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura(FENEA); diversas Organizações Não-Governamentais e a Associação Brasileira de ONG’s. Entre religiosos estão a Igreja Povo de Deus em Movimento, Coletivo de Igrejas da Zona Leste de São Paulo, Articulação Pastorais e Movimentos Sociais e Evangélicos de Esquerda. Entre signatários individuais, há sociólogos, geógrafos, arquitetos-urbanistas, psicanalistas e figuras públicas como Carlos Vainer, Nabil Bonduki, João S. Whitaker, Raquel Rolnik, Maria Rita Kehl, Natacha Rena, Caio Boucinhas, Arlete M. Rodrigues, Luiza Erundina, Gilberto Maringoni, Eduardo Suplicy, entre outras e outros.
Os integrantes e apoiadores pretendem incidir na conjuntura, mas também construir uma mobilização nacional a médio e longo prazo. Preveem organizar cursos de formação sobre a denominada “questão urbana no Brasil” em universidades, escolas de ensino médio, também junto a movimentos sociais, associações e, num futuro breve, realizar um primeiro Fórum Social. O manifesto, ainda aberto a adesões, está na plataforma https://www.brcidades.org/assineomanifesto