Da fé ao medo: o Brasil que quase tivemos e o espelho do Irã
Filmes como “Foi Apenas um Acidente” e “O Agente Secreto” revelam que a arte resiste quando o poder tenta impor silêncio
Por Thays Villar
A tentativa de golpe de Estado ocorrida recentemente no Brasil expôs um projeto de ditadura militar com camadas teocráticas. Munida de metafóricas bíblias debaixo dos braços e se apropriando de símbolos nacionais, uma associação criminosa, assim condenada, executou atos que culminaram na nefasta deterioração de patrimônio tombado e na tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. O que estava em jogo era a tentativa de instaurar um Estado de obediência, em que a religião serviria como verniz moral para o autoritarismo.
Essa perversão do sagrado faz parte da história das civilizações. Todo o mundo tem ciência de regimes que misturam fé e poder, e o Irã, oficialmente chamado de República Islâmica do Irã, é, talvez, um dos exemplos mais contundentes. Desde a Revolução de 1979, o país vive sob um regime teocrático, em que o Estado é comandado por clérigos e guardiões da moral religiosa. O véu é obrigatório, a liberdade artística é crime, e o cinema é tratado como ameaça.
Nos últimos quinze anos, o cineasta iraniano Jafar Panahi foi alvo recorrente de prisões e restrições por parte do regime islâmico. Em 2010, foi detido por tentar filmar um documentário sobre os protestos pós-reeleição de um ex-presidente, o que culminou em sua condenação a seis anos de prisão e vinte de proibição de dirigir filmes, conceder entrevistas ou deixar o país. Em 2022, voltou a ser preso ao tentar acompanhar o caso de outros diretores detidos por criticarem a repressão estatal, e foi libertado após uma greve de fome.
Panahi faz parte de um seleto grupo de quatro cineastas a vencer os prêmios principais dos três maiores festivais de cinema europeus. Conquistou o Leão de Ouro de Veneza por “O Círculo” (2000), o Urso de Ouro de Berlim por “Táxi Teerã” (2015) e, em maio deste ano, a Palma de Ouro de Cannes por “Foi Apenas um Acidente”. O longa acompanha Vahid, um mecânico que acredita ter encontrado seu antigo torturador e decide se vingar, reunindo outros ex-prisioneiros para confirmar a identidade do algoz e planejar a retaliação. Os gatilhos emocionais disparados sobre eles alteram seus rumos e os expõem vulneráveis e contraditórios, transformando o impulso de punir em dilema moral. No passado, as personagens não atuaram como guerrilheiros nem se posicionaram ideologicamente contra o Estado: foram presos, torturados e quase mortos apenas por reivindicarem meses de salários atrasados.
Em “Foi Apenas um Acidente”, Panahi utiliza os cães como espelhos dessa mesma contradição e como metáfora política. O filme se inicia com um cachorro atropelado, “apenas um acidente” tratado como irrelevante, mas que se torna o eixo moral de toda a narrativa. Os cães retornam de forma recorrente, discretos, sempre à margem, quase invisíveis, mas teimosamente vivos, enquanto as angústias de uma sociedade estão sempre prestes a atropelá-los.
Com o Estado exigindo que o roteiro fosse previamente aprovado, Panahi optou por filmar de maneira clandestina, certo de que o trabalho seria censurado. Algumas sequências foram rodadas no deserto e dentro de carros, enquanto a pós-produção foi realizada na França, onde o cineasta possui autorização para residir. Logo que a seleção de “Foi Apenas um Acidente” em Cannes foi divulgada, integrantes do projeto foram chamados para interrogatório pelo Estado Islâmico. Atores e membros da equipe passaram a receber ameaças e telefonemas anônimos. No dia 1º de dezembro, durante as viagens de campanha do filme, forte concorrente ao disputadíssimo Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, Jafar Panahi foi condenado pelo Irã a mais um ano de prisão e dois sem poder sair do país.
É impossível não pensar no que estaria em risco caso o golpe brasileiro tivesse sido bem-sucedido. Artistas, jornalistas, professores, cineastas e todos os que questionam o poder teriam sua liberdade sob ameaça. Filmes como “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, talvez nem existissem. A obra, ambientada no período da ditadura militar, retrata a jornada de Marcelo, um especialista em tecnologia acusado de atividades subversivas, que se muda de São Paulo para Recife em 1977 na tentativa de escapar dos agentes do governo.
Ele é acolhido em um ambiente familiar, a casa de Dona Sebastiana, onde, durante um momento de comunhão e afeto, vemos um retrato de Jesus vivo, pendurado na parede, como se estivesse à mesa, partilhando do alimento e da conversa dos bons. Em outras passagens do filme, ambientadas em repartições públicas, como um Instituto de Identificação, onde o protagonista passa a trabalhar, um retrato do presidente do regime militar surge ao lado de um crucifixo, onde Cristo está morto, imagem que se sustenta sobre o signo da dor e da imobilidade. Sob esse mesmo ambiente tenso, Marcelo busca registros de seus antepassados, quase indetectáveis pela ação de uma estrutura que leva o racismo ao apagamento da memória e da identidade.
No início de “O Agente Secreto”, a canção “Eu não sou cachorro, não”, de Waldick Soriano, irrompe como comentário sutil e subversivo. Não é o lamento de quem se dobra, mas a voz de quem insiste em manter sua humanidade diante da humilhação. Em meio ao ambiente opressivo da ditadura, a música ressoa como um protesto que se camufla no rádio. Kleber transforma a canção popular em ato de insubordinação poética, lembrando que a arte sempre encontra um modo de afirmar vida onde o poder tenta impor silêncio.
As duas obras dialogam em intensidade e propósito. Panahi e Mendonça transformam o cinema em uma forma de consciência coletiva e de elaboração simbólica e política. Suas câmeras não são apenas instrumentos de registro, mas ferramentas de lucidez moral que devolvem ao espectador o próprio olhar, confrontando-o com sua responsabilidade histórica. Ambos falam sobre o poder da empatia e sobre a força da arte que inspira reflexão onde os regimes tentam impor obediência.
Também este ano, em Cannes, “O Agente Secreto” recebeu, além de outros dois prêmios, o de melhor direção para Mendonça e o de melhor ator para Wagner Moura. Os atores que dão vida aos fictícios oprimidos do nosso real passado recebem linda e rara homenagem nos créditos, ilustrados um a um, em sua diversidade à brasileira, como quase nunca vimos em nossos filmes. Já os intérpretes de “Foi Apenas um Acidente” talvez ainda temam as consequências de exercerem seus ofícios. Jafar Panahi afirmou que voltará ao Irã para o cumprimento de sua pena.
O Brasil se livrou não apenas de um golpe de Estado, mas de uma tentativa de capturar a democracia pela força disfarçada de fé religiosa. Fomos salvos, ainda que com tantos arranhões, do moralismo que mascara o ódio, da tentação de um país guiado por quem confunde púlpito com palanque. E, ao olharmos para o Irã, entendemos o que está sempre em jogo: quando a fé se transforma em instrumento político, o primeiro milagre que desaparece é a liberdade.







