Crise climática impacta vida de ribeirinhos no interior do Amazonas
“Há uns 18 anos os cardumes subiam em março para o rio Negro. Nós já éramos acostumados, que em março em diante vinha os cardumes para desovar. Agora não, só vem de maio para Junho. Isso é sinal de mudança climática, né?”
“Há uns 18 anos os cardumes subiam em março para o rio Negro. Nós já éramos acostumados, que em março em diante vinha os cardumes para desovar. Agora não, só vem de maio para Junho. Isso é sinal de mudança climática, né? O peixe sente quando acontece algo na água, agora nós esperamos o cardume em março e não vem não, só para maio em diante, aí os cardumes vem e nós começamos a pegar peixe”, conta o experiente pescador Nilton Bacry da Silva, 46, morador da comunidade São José do Amatari, no município de Itacoatiara (AM), à margem do rio Amazonas. Foi a primeira vez de Nilton pescando na região do Lago do Aleixo e entorno, um ato de desespero para poder sustentar ele e a filha de 14 anos, consequência da seca e falta de acesso aos lagos da sua terra natal.
Em Manaus, a cota do rio Negro medida desde 1902 no Porto de Manaus revela a extremidade dos eventos de cheia atingidos no último século na Amazônia. No século passado, levaram cem anos para que o rio Negro atingisse a quantidade de cheias ocorridas de 2009 a 2022. “A cota de 29 metros foi superada ao longo do século passado por nove vezes. Agora, a gente pega os últimos 14 anos, de 2009 até 2022, e esse mesmo valor , ele também foi igualado nove vezes, ou seja, um evento que ocorria nove vezes a cada 100 anos agora ocorreu mais recentemente nove vezes também em apenas 14 anos”, explica Luna Gripp, pesquisadora em Geociências responsável pelo Sistema de Alerta Hidrológico do Amazonas.
Conforme a pesquisadora, a cota do rio serve de parâmetro para os demais canais fluviais da Amazônia como o rio Solimões, pois apesar de serem diferentes em parâmetros físico-químicos, hidrologicamente operam juntos. Em 2022, ocorreu a quarta maior cheia da história, um ano após a primeira, em 2021, registrada com 30 metros. Mesmo após tal evento extremo, o nível do rio baixou em alta velocidade, chegando a isolar comunidades no município de Tefé. Apesar de gerar impactos nos meios fluviais de transporte e pesca, a vazante não foi considerada extrema quando comparada aos dados de monitoramento, segundo Luna Gripp. “Os eventos extremos estão ficando cada vez mais frequentes, isso é um dado estatisticamente relevante, não só a nossa análise, mas diversos artigos científicos já vêm trazendo essa informação de que realmente os eventos extremos de inundação gradual na Amazônia estão cada vez mais frequentes e maiores em magnitude”, ressalta.
Francimar Souza, 36, parceiro de Nilton Bacry, enxerga que o governo não tem um olhar atento sobre as condições dos pescadores a partir das dificuldades que estão se agravando, com os eventos extremos e a busca por peixe em outras regiões que geram conflitos.
“Nossa classe está bem lá embaixo. Eles [o governo] tratam a gente bem pouca coisa, porque a gente não tem legislação. Tem muita gente que critica nossa categoria, a gente não tem valor, não dão valor às coisas que a gente faz”, explica.
Conforme o pesquisador Jansen Zuanon, especialista em peixes na Amazônia,o aumento de eventos extremos de grandes secas como mortandade, estresse dos animais com a alta temperatura, falta de oxigênio e predação, e de grandes cheias como a mortandade de vegetação e perda da qualidade da água pela decomposição, dos locais de refúgio e fontes de alimento, impacta também sobre as populações humanas.
“Se as populações dessas espécies comerciais que já são pressionados pela pesca começam também sentir os efeitos de secas e cheias extremas, isso significa uma menor quantidade de peixes chegando até as feiras de mercados, ou seja, isso pode afetar a segurança alimentar não só das populações ribeirinhas, mas também das populações humanas na cidades que dependem dos peixes que chegam até os mercados”, frisa o pesquisador.
Desmatamento também vem causando a morte das espécies
A Amazônia Real teve acesso a uma pasta com todos os boletins de ocorrência e ofícios já feitos pedindo retirada de madeireiros ilegais e frear o desmatamento nas margens do igarapé dos Reis, em Iranduba, no Amazonas, incluindo um abaixo-assinado de moradores locais. Em 2019, um ofício encaminhado à Superintendência do Patrimônio da União no Amazonas (SPU-AM) denunciava e alertava sobre a floresta virar pasto. “Estes acontecimentos vinham ocorrendo anos atrás, mas, tinha parado porque havíamos feito denúncias, este ano voltaram a fazer novamente com mais intensidade, principalmente derrubando as seringueiras para azimbre. informamos que estes desmatamentos estão ocorrendo na APA Área de Preservação Ambiental Ilha do Careiro Lago Reis, solicitamos providências urgentes antes que seja tarde demais”, diz o documento.
Sem nenhuma ação concreta dos órgãos ambientais, a área agora encontra-se descampada. “por que não tem controle? porque logo, o prefeito é fazendeiro aí se sabe que onde tem quase todos os prefeitos fazendeiros, eles não vão controlar uma coisa que eles também estão fazendo, desmatando, fica difícil”, explica Francisco Ferreira de Oliveira, 57, presidente da Associação de moradores do lago. “A gente tem medo de começar um desmatamento maior aqui, mas não está [pior] porque ele [o vereador] não pode fazer isso, a gente está em cima, porém logo no começo o negócio foi feio. Isso aqui é tudo do vereador Almir Pinheiro, isso é tudo campo por trás”, denuncia.
Sem apoio dos órgãos de fiscalização, nada freia a chegada do agronegócio e o desmatamento para venda de madeira ilegal. “A gente tenta um controle, mas não tem. Fizemos várias denúncias, só que o que acontece é o seguinte, a lei acontece, mas é muito devagar. A Polícia Ambiental veio aqui umas duas vezes, mas não resolveu nada. Quando eles vem, [os madeireiros] vão embora, quando eles saem, entram de novo aqui”, explica Francisco Oliveira.
Sem perspectiva de melhora e apoio, Francisco deixou a liderança da associação em 2022 e pretende não retornar mais ao posto.
Justiça Climática?
Enquanto Nilton e Francimar navegam o barco pelo paraná que liga o lago ao rio Amazonas, contemplando uma vista infinita de sacolas de plástico engatadas nas árvores junto a dezenas de lixos, eles afirmam que se enxergam distanciados de debates sobre o clima que só ouvem falar na TV, como a Conferência das Partes (COP). Nilton chega a se excluir da luta pelo clima por considerar que não será ouvido devido sua baixa escolaridade.
“O pior é que elas [as pessoas] não sabem o que está acontecendo. Elas falam porque elas ouvem os outros falarem, mas elas não vivem dentro daquilo ali, porque para falar de uma coisa você tem que conhecer. A questão da nossa Amazônia é isso, as pessoas ouvem o que falam por aí, mas elas não estão aqui para realmente entender”, conclui. Em 2022, as decisões tomadas por parte de empresários e governantes na COP 27 preveem o uso do mercado de carbono com a ideia de “pagar” para poluir, dinheiro proveniente de países ricos e poluidores. De olho na Amazônia, os territórios tradicionais e de povos originários são vistos como uma das principais fontes para gerar créditos de carbono, sem autorização das populações.
“As pessoas estarem decidindo pela gente é que é difícil, porque hoje a gente sofre mais por parte dos governos, principalmente agora. Eu creio que a gente tem condições para chegar e debater porque, por exemplo, uma pessoa que está lá em Brasília, ela não sabe o que se passa aqui. Se tivermos esse espaço, se a pessoa passar a conhecer, a ouvir, vai ser diferente. As pessoas vão procurar valorizar mais o pequeno” afirma Nilton.
“Eu creio que a gente tem condições para chegar e debater porque, por exemplo, uma pessoa que está lá em Brasília, ela não sabe o que se passa aqui. Se tivermos esse espaço, se a pessoa passar a conhecer, a ouvir, vai ser diferente”
Entre os desafios de ficar por dentro do assunto na Amazônia, está a falta de acesso a diferentes meios de comunicação já que a jornada de trabalho fica cada vez mais longa. “Os debates de mudanças climáticas não chegam até a gente, principalmente porque nós chegamos hoje da pesca e daqui a três dias nós já estamos saindo de volta de novo, então nós não temos quase contato com informação”, explica Francimar Souza.
Via Amazônia Real