
‘Coração de Lutador’: The Rock vence fora do ringue no drama de MMA
Entre vitórias e derrotas, a biografia de Mark Kerr revela o lado mais sombrio do esporte para além do octógono
Por Hyader Epaminondas
Nos últimos anos, Dwayne “The Rock” Johnson parecia prisioneiro da própria imagem, sufocado pela sombra dos próprios sucessos. Em seus papéis mais recentes, surgia sempre como uma versão hipertrofiada de si mesmo, um herói de ação sem criatividade, construído para flexionar músculos diante da câmera e oferecer um carisma automatizado.
Sua atuação se resumia a contrações faciais coreografadas, como se até o piscar de olhos tivesse sido esculpido em pedra. Hollywood o devorava como mito, mas lentamente esquecia que, por trás da superfície rochosa, ainda existia um ator pulsando, em busca de espaço para respirar.
Entre os ex-lutadores que migraram para o cinema, Johnson é, de longe, o mais popular. Assim como John Cena e Dave Bautista, que deixaram o octógono e os ringues para conquistar Hollywood. A diferença é que seus colegas encontraram um equilíbrio mais consistente, escolhendo projetos que desafiam suas capacidades e revelam novas camadas a cada papel.
Cena, transitando entre comédias, blockbusters e seu papel em “Pacificador”, vem se mostrando um ator dramático em constante evolução a cada novo episódio da série. Bautista, por sua vez, construiu trajetórias notáveis em papéis intimistas, como os de “Blade Runner 2049” e “Glass Onion”, sempre em busca de trabalhos que testam seus limites e o tornam mais completo do que eram no filme anterior.
Johnson, até agora, parecia preso a interpretações previsíveis, personagens que exigiam pouco além da presença física. Porém, com “Coração de Lutador”, produzido pela A24 e dirigido por Benny Safdie, ele rompe com esse ciclo. Aqui, ele assume o shape de Mark Kerr, um lutador de MMA cuja vida oscilou entre a glória no octógono e as batalhas mais cruéis fora dele, ligadas ao vício em analgésicos, oferecendo finalmente um desafio à altura de seu talento latente.
E logo na sua abertura, com um filtro de programas antigos e imagem meio borrada, o que se vê na tela é o próprio The Rock retornando às suas origens no esporte para se reencontrar artisticamente, oferecendo uma performance que redimensiona sua trajetória e o recoloca ao lado dos colegas como um ator em evolução, não apenas uma estrela de bilheteria.
Em órbita ao redor da gravidade de Kerr, Emily Blunt surge como âncora silenciosa, a gravidade que mantém o marido inteiro mesmo quando ele ameaça se despedaçar e, ao mesmo tempo, é ela que o tira de órbita. Sua atuação é como a luz filtrando através de janelas empoeiradas, sutil, mas impossível de ignorar, um agente narrativo para revelar as fissuras e vulnerabilidades que Johnson carrega por dentro.
Cada olhar de Blunt é um sinal que orienta pelo caos emocional do casal problemático, cada expressão contida é uma corda tensionada que segura o drama antes que ele se desmorone. Ela não apenas contrasta com a força física de Kerr, mas a complementa, transformando a tela em um duelo íntimo entre o corpo que luta e a alma que observa, lembrando que, por trás de qualquer grande atleta, há relações e emoções que sustentam, moldam e desafiam sua existência.
O Mark Coleman vivido por Ryan Bader surge como o terceiro ponto de vista narrativo do filme, como um reflexo brutal da era em que o MMA ainda era um território selvagem, menos espetáculo televisivo e mais sobrevivência pura, um rival e ao mesmo tempo companheiro de trincheira de Kerr. Sua participação é como um soco seco: curto, direto, sem adornos, mas essencial para lembrar que esse universo não é feito apenas de glórias individuais, e sim de uma geração inteira marcada pelo preço que o esporte cobrava de cada lutador.
Quando a Força Encontra a Fragilidade: O Desafio Que Revela o Ator Por Trás da Estrela
A escolha desse papel tem um peso simbólico inegável. Antes da fama global, Johnson foi atleta de futebol americano, fracassou, se reinventou no wrestling e depois explodiu no cinema. Sua história é a de um homem que nunca desistiu de lutar, mesmo quando a vida parecia empurrá-lo para a lona. Interpretar Kerr, um ícone destruído pelos vícios e pela pressão da fama, acaba funcionando como um metacomentário sobre encarar seus próprios fantasmas. Há uma identificação íntima, uma reverberação biográfica que torna cada gesto e cada silêncio ainda mais poderosos.
Sob a direção de Safdie, que já havia tirado o melhor de Adam Sandler em “Joias Brutas”, revelando uma intensidade que muitos não imaginavam que o astro da comédia podia alcançar, Johnson encontra o espaço ideal para se despir da persona de superstar. Safdie sabe capturar o exato enquadramento do caos humano e a tensão que se esconde em olhares e silêncios. Sua câmera busca as fissuras, não a superfície, e transforma o corpo escultural de The Rock em palco para a vulnerabilidade: cada fibra se tensiona como se refletisse a luta interna, cada músculo se estica com o peso da angústia que ele carrega.
Filmado com uma câmera em constante movimento, que acompanha o protagonista como um olho clandestino, o filme assume a textura de um documentário. Os filtros retrô e os closes desfocados expõem a fragilidade do ícone: o herói invencível das bilheteiras dá lugar a um homem que sangra, falha e teme. Só ao longo da trama entendemos o peso dessa estética, quando Johnson se redescobre ao iluminar o passado de um dos pilares do UFC.
A granulação escolhida pelo diretor intensifica essa intimidade crua, onde as imagens se assemelham a fitas emboloradas de VHS, como registros encontrados por acaso, mais próximos de uma memória do que de uma encenação. Essa textura transforma lembrança em matéria e nos faz sentir como se estivéssemos diante de algo proibido, um recorte de vida que não deveria ser visto, mas está ali para ser reforçado sem disfarces.
E o simbolismo do octógono em “Coração de Lutador” é evidente, já que ele obviamente não está aqui representado para ser somente uma arena esportiva, mas uma metáfora da própria vida, onde o adversário mais duro não se mede em força física, e sim em silêncio, solidão e vícios que corroem. A câmera não glamouriza o MMA: ela registra o suor, o cansaço, as fissuras no corpo e na mente em busca da maximização da aura do esporte.
Johnson se entrega a isso sem receio de quebrar a armadura que construiu ao longo de décadas. Pelo contrário, ele atravessa essa armadura em direção a um renascimento. Ele usa a força que o consagrou, mas permite que a fragilidade fale mais alto. O choro contido, a pausa desconfortável, a explosão de raiva que nasce da impotência, tudo revela um intérprete em plena entrega, alguém disposto a se desfazer do mito para mostrar o homem.
“Coração de Lutador” atravessa com todo o cuidado do mundo a história de Mark Kerr para se tornar um espelho da própria trajetória de The Rock, um relato sobre um artista que ousa enfrentar a caricatura que o aprisiona e encontra, no cinema autoral, a chance de se reimaginar. O filme é uma vitória dentro e fora do ringue, talvez o capítulo mais significativo da carreira de Dwayne Johnson e um lembrete de que, mesmo os ícones mais sólidos, precisam se despir de seus pilares mais firmes para provar que ainda são de carne, sangue e alma.