COP29 expõe o impacto devastador do militarismo na crise climática
Forças armadas globais são responsáveis por 5,5% das emissões de carbono, mais do que aviação e transporte juntos.
Por Nicole Grell Macias Dalmiglio
Na COP29, realizada em Baku, Azerbaijão, no dia 16 de novembro de 2024, a conferência “PBV: COP da Paz – Desmilitarizar pela Justiça Climática” trouxe à tona uma mensagem contundente: o militarismo, longe de proteger o planeta, é um dos maiores motores da destruição ambiental e social. Realizado na área C da Blue Zone, o evento reuniu especialistas, ativistas e representantes de comunidades diretamente afetadas para denunciar os impactos ambientais, econômicos e sociais da militarização global, expondo as contradições de um sistema que privilegia armamentos em detrimento de soluções climáticas.
O impacto militar na crise climática foi colocado sob os holofotes na COP29 de forma contundente. Karen Hollows, da organização Peace Boat Ecoship, denunciou a negligência sistêmica com que o papel das forças armadas é tratado nas discussões climáticas globais. “Enquanto setores como a aviação e o transporte marítimo são alvo de regulação, as forças armadas, que poluem mais do que ambos juntos, permanecem intocadas”, afirmou Karen, apontando para a incoerência de deixar um dos maiores emissores globais fora do debate climático.
Ellie Kinney, vice-presidente da Campanha pelo Desarmamento Nuclear e integrante do projeto Military Emissions Gap do Observatório de Conflitos e Meio Ambiente, reforçou a crítica com dados alarmantes: as forças armadas globais são responsáveis por 5,5% das emissões de carbono no mundo, o que as colocaria como o quarto maior emissor global, caso fossem um país. No entanto, essas emissões são sistematicamente ignoradas. “Estamos lidando com números estimados porque os dados reais são ocultados. A ausência de obrigatoriedade na declaração das emissões militares à ONU é uma escolha política que prioriza a opacidade em detrimento da sobrevivência planetária”, afirmou Ellie.
Para ela, a omissão deliberada desse setor não é apenas uma falha técnica, mas um reflexo de como o sistema internacional se recusa a responsabilizar a indústria bélica, mesmo diante de uma crise climática que exige ações radicais e transparentes. “A falta de transparência em um setor tão destrutivo é uma afronta à urgência da crise climática”, concluiu. A crítica não poderia ser mais clara: enquanto o militarismo continuar nas sombras, qualquer compromisso climático será inevitavelmente insuficiente.
Além das emissões diretas, Kenny destacou os impactos indiretos dos conflitos, que são ainda mais devastadores. A guerra na Ucrânia, por exemplo, gerou emissões equivalentes às de um país do tamanho da Holanda em apenas dois anos, enquanto a destruição e reconstrução de Gaza podem liberar mais carbono do que 135 países emitem anualmente. Esses números impressionantes são acompanhados por tragédias humanas profundas: vidas perdidas, comunidades desarraigadas e infraestrutura essencial devastada. “Sem dados claros e precisos, perpetuamos um ciclo de destruição ambiental e perda de vidas humanas sem nenhuma responsabilização”, afirmou Kenny.
Ela também criticou a ausência de um marco internacional para medir essas emissões e responsabilizar os países. Para Kenny, essa lacuna não é apenas uma falha técnica, mas uma decisão política que beneficia interesses militares e industriais. “Estamos permitindo que guerras destruam ecossistemas e dizimem vidas humanas sem nenhuma consequência real”, reforçou.
A hipocrisia do sistema internacional também foi alvo de sua crítica. “Enquanto setores como a aviação e o transporte são rigidamente regulamentados, as emissões e os impactos humanos das guerras continuam ignorados”, denunciou. Para Kenny, a justiça climática não pode ser alcançada enquanto os conflitos armados forem tratados como uma exceção às responsabilidades ambientais. “Precisamos incorporar os custos reais das guerras ao debate climático e responsabilizar os responsáveis por essa destruição sistêmica”, concluiu.
Deborah Burton, da Tipping Point North South, expôs a hipocrisia dos países desenvolvidos. Ela revelou que o gasto militar global alcançou um recorde de US$ 2,24 trilhões anuais e continua a crescer, enquanto nações ricas alegam não ter recursos para cumprir suas promessas climáticas. “O aumento dos orçamentos militares em plena crise climática é uma afronta à lógica. Esses bilhões poderiam financiar transições justas e adaptações climáticas, mas, em vez disso, financiam destruição e lucro corporativo”, afirmou. Burton também ressaltou que os maiores beneficiários desse sistema são as empresas de armamentos, que faturaram cerca de US$ 600 bilhões em 2021. “Enquanto essas empresas prosperam, milhões vivem na miséria causada pelos conflitos que elas ajudam a perpetuar.”
Hamza Hamouchene, pesquisador-ativista argelino e membro fundador da Campanha de Solidariedade à Argélia (ASC) e da Justiça Ambiental do Norte da África (EJNA), trouxe uma perspectiva devastadora sobre o papel dos combustíveis fósseis na perpetuação da violência. “O carvão e o petróleo não apenas destroem o clima, mas financiam genocídios como o que ocorre em Gaza”, denunciou. Ele pediu um embargo global contra Israel e uma mobilização internacional para interromper o fornecimento de combustíveis fósseis para fins militares. “Não haverá justiça climática enquanto ocupações e massacres forem financiados pela exploração de recursos naturais.”
A situação no Sudão também foi abordada por Tasneem Elfatih, a pesquisadora sudanesa relatou os impactos combinados da guerra e das mudanças climáticas em seu país. Segundo ela, milhões de pessoas foram deslocadas por conflitos e enchentes, enquanto o financiamento climático foi interrompido devido à instabilidade política. “Estamos esquecidos pela comunidade internacional. Não há apoio, não há financiamento, não há visibilidade para o sofrimento do povo sudanês”, afirmou. Tasnim pediu que o financiamento climático considere a vulnerabilidade de estados frágeis e exigiu maior atenção global à crise em seu país.
Karina Lester, originária do povo Yankunytjatjara Anangu e embaixadora da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN), trouxe um relato comovente sobre os impactos dos testes nucleares realizados na Austrália nas décadas de 1950 e 1960. “As cicatrizes deixadas pela indústria nuclear em nossas terras e em nosso povo ainda estão presentes. O militarismo não apenas destroi o meio ambiente, mas também as culturas e os modos de vida de comunidades inteiras”, disse. Ela apelou por solidariedade global e maior investimento em iniciativas de paz, especialmente para os povos indígenas, que continuam a sofrer as consequências do militarismo.
O encerramento ficou a cargo de Yoshioka Tatsuya, Presidente do Conselho e Fundador do Peace Boat e integrante da Parceria Global para a Prevenção de Conflitos Armados (Global Partnership for the Prevention of Armed Conflict, GPPAC), que reforçou a necessidade de abolir armas nucleares e priorizar modelos de segurança humana. “A militarização não nos protege. Ela perpetua a crise climática e aumenta os riscos existenciais para toda a humanidade. Precisamos redirecionar recursos para a construção de um mundo sustentável e pacífico”, afirmou.
Os palestrantes foram unânimes em suas demandas: incluir emissões militares nos compromissos climáticos, redirecionar 20% dos gastos militares globais para ações climáticas, estabelecer um marco internacional para medir emissões de conflitos e abolir armas nucleares. “Sem paz, não há sustentabilidade. E sem sustentabilidade, não há paz”, resumiu Yosh.O evento “PBV: COP da Paz – Desmilitarizar pela Justiça Climática”, realizado na área C da Blue Zone, foi mais do que uma discussão. Foi um grito por justiça e uma denúncia do papel destrutivo da militarização na crise climática. Desmilitarizar não é apenas uma necessidade; é uma questão de sobrevivência.