COP 26: “Não há respostas suficientes para o enfrentamento da crise climática que vivemos”
A COP26 (Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), realizada em Glasgow no início de novembro, na Escócia, houve uma intensa mobilização social nas atividades paralelas. Milhares de pessoas marcharam na cidade nórdica para manifestar sua insatisfação com o modelo de desenvolvimento global e as decisões tomadas pelos países na conferência.
Apesar da restrição à participação da sociedade civil na COP26 (Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), realizada em Glasgow no início de novembro, na Escócia, houve uma intensa mobilização social nas atividades paralelas. Milhares de pessoas marcharam na cidade nórdica para manifestar sua insatisfação com o modelo de desenvolvimento global e as decisões tomadas pelos países na conferência. Com expressiva participação da juventude, foi possível deixar o recado por fora da versão oficial.
Essa foi a impressão de Maureen Santos, ativista socioambiental que participou da COP26. Ela é coordenadora da FASE, e também da Plataforma Socioambiental do BRICS Policy Center, think tank do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. É membro da articulação da sociedade civil Grupo Carta de Belém, que aborda questões socioambientais por meio da crítica aos instrumentos de mercado.
Na entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ela fala sobre as falsas soluções apresentadas pelos governos e corporações, e sobre a importância da agroecologia para uma perspectiva de justiça socioambiental. Critica também o foco das soluções nos mercados de compensações financeiras em carbono, e a preocupação com a privatização das florestas e impactos dessas medidas nos territórios dos povos e comunidades tradicionais afetados.
Qual foi a atmosfera que você percebeu na COP e quais as suas impressões a partir do que ficou decidido lá?
A COP26 teve como objetivo central fechar o livro de regras do Acordo de Paris, que é o novo acordo vinculante que substituirá o Protocolo de Kyoto, que está terminando seus trabalhos. Paris foi assinado em 2015 e já entrou em vigor, só que os artigos precisavam de mais elementos para a implementação. Paralelo a isso, a agenda da COP tinha objetivos trazidos via presidência do Reino Unido, compartilhada com a Itália, para que os países trouxessem mais ambição e avançassem em outras agendas. Como por exemplo, o debate sobre compromisso com o financiamento climático, que existe desde 2009, no sentido de como aportar recursos de países do Norte aos em desenvolvimento para implementarem esforços de redução de emissão de gases de efeito estufa. Essa foi a negociação sobre mitigação, então existe um montante de US$ 100 bilhões anuais desde 2020 que efetivamente não se sabe de onde vai sair.
O Acordo de Paris foi criado com dois objetivos globais: um de mitigação, que aprovou o aumento da temperatura média global em 2ºC com esforços para 1,5ºC, e outro de adaptação só que sem objetivos concretos e metas para os países atingirem globalmente. Novamente não conseguiram fechar esse goal de adaptação e criaram um Plano de Trabalho (GT) para avançar nos próximos dois anos. Quanto à meta de longo prazo, que se refere às emissões líquidas zero (Net Zero) e outras metas. O evento oficial visava fechar três artigos do livro de regras, porque todo o resto já havia sido concluído, então eles chegaram num consenso sobre a revisão das metas nacionais. O Acordo de Paris não é igual ao Protocolo de Kyoto, que tem uma meta obrigatória para todos, no caso de Paris existem as NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas) que de forma voluntária, cada país entrega quanto, quando e como vai cortar suas emissões. Isso já foi entregue e revisado pelos países, só que no artigo 4º falava que de cinco em cinco anos os países teriam que revisar, mas vários entregaram metas só a partir de 2030. Foi acertado que todos irão manterão a revisão de cinco em cinco anos.
E os debates sobre mercado de carbono, que se destacaram nas discussões?
O artigo 6ª sobre os mecanismos de mercado e não mercado, por exemplo, tem uma abordagem de transferência de emissão de um país para outro. Se a China, por exemplo, não consegue atingir sua meta prevista em sua NDC, ela pode comprar créditos das metas de países que tem sobrando. Esse artigo também aborda benefício do setor privado em relação a esse mercado de carbono via projetos de certificação e outros mecanismos, que já existiam no Protocolo de Kyoto e foram incluídos com algumas mudanças no Acordo de Paris. O Join Implementation e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo foram apropriados para o Acordo de Paris com nova roupagem, e estava bem difícil ter consenso sobre as novas regras. Parte expressiva da sociedade civil possui historicamente crítica ao mecanismo de crédito de carbono como a solução para a crise do clima, porque adia as ambições e soluções. Você tem uma NDC que já é voluntária e diz o que vai fazer, mas mesmo assim tem flexibilidade para comprar do outro. Além dos impactos nos territórios, que são muito complicados.
O mercado de carbono é propagado como uma grande solução para que os recursos fluam do Norte para o Sul Global, e já vimos nas duas últimas décadas que não é verdade. Para os territórios aceitarem esses projetos, têm uma série de regras, metodologias, cálculos de carbono e quando isso chega na floresta tem um grande impacto. Existiu toda uma pressão da Coalizão de Florestas Tropicais na COP, grupo negociador do qual o Brasil não faz parte, de incluir a compensação florestal dentro da definição dessa transferência de mitigação de um país para o outro. Isso é muito grave, porque alivia a necessidade urgente de os países reduzirem seu corte de emissão e mudarem a sua economia para outra forma de desenvolvimento. Usam as florestas como uma moeda de troca e de privatização, e esses projetos podem chegar a trinta anos e vão comprometer os povos nesses territórios. O assédio a essas populações vai aumentar muito e as regras e processos no direito privado têm um equilíbrio de forças totalmente desigual. Acabou que isso não entrou no texto final da COP 26, felizmente, mas a pressão vai continuar, pois no caso dos projetos privados há bastante pressão, inclusive de ONGs ambientalistas com interesse em vender carbono.
Como isso chega para a agroecologia?
Os movimentos e práticas agroecológicas obviamente oferecem maior proteção e conservação da biodiversidade, da água, do equilíbrio climático e socioambiental. Isso faz parte da essência e de como a agroecologia entende a agricultura e as relações ecológicas que existem na natureza. Só que existem algumas vertentes que acham que a agroecologia também é boa para captar carbono. Com isso, pode acabar perdendo a lógica do ser e existir da própria agroecologia ao se submeter aos mecanismos desiguais promovidos pelo sistema capitalista e contribuir para mais opressão e poluição onde a emissão vai continuar, já que o comércio de carbono pressupõe a compensação. O poder hegemônico está se esverdeando com esses mecanismos de mercado vendidos como solução para a crise do clima, quando na verdade vem criando uma distração às soluções de fato.
Quais outros temas importantes foram abordados na COP?
Outro artigo também abordado no livro de regras tratou da transparência para, por exemplo, garantir que o país que reduziu suas emissões não vendam uma parcela disso como crédito para o outro debitar de suas metas. É necessário estabelecer critérios para não ter a dupla contagem e outras questões, e também foi criado outro GT para tratar cooperação de não mercado, onde víamos algum potencial para trabalhar políticas públicas sem ser via precificação do carbono. Ligar isso a políticas de valorização dos territórios e práticas das comunidades e povos tradicionais, e ao mesmo tempo garantir o direito às suas terras. Isso não aparece na negociação, mas pode ter alguma potencialidade ainda que pouca gente olhe para esse artigo e pressione. Porque acaba ficando junto ao mercado de carbono e confunde um pouco por conta da própria lógica do sistema, se não vai virar algum tipo de compensação mesmo que não seja monetária.
Como foram as atividades do lado de fora na Cúpula dos Povos?
Muito bacana, mesmo com todas as restrições e o distanciamento. Foi espalhada em vários lugares, então não dava para você ter uma noção do todo. Acabei participando de mais atividades virtuais, porque na época da inscrição não estava confirmada minha ida, mas cheguei a participar de duas presenciais e foi bem interessante interagir com as pessoas. No dia de ação global nunca tinha visto uma marcha tão grande, nem aqui na Rio+20 que houve uma super expressiva por justiça climática. A polícia disse que tinha 100 mil pessoas, mas parecia muito mais porque não vi o início nem o final e andei 2h30 pela lateral. A população abraçou bastante a marcha, tinha muita família, um processo muito legal.
E essas metas que a sociedade civil aponta como falsas soluções, saiu algo concreto?
As metas de redução de emissões de metano ou os compromissos com as florestas apontadas nas declarações assinadas nos primeiros dias são adicionais, os países declaram esforços porpor fora do regime. Teve uma meta de redução do metano em 30% até 2030, por exemplo, e o Net Zero a grande maioria dos países incluiu nas suas NDCs e entrou de certa forma no pacote, mas ainda é um horizonte distante. A própria compreensão do que é a emissão líquida zero é bastante controversa. Quando a emissão é removida, não necessariamente é via redução de emissões de carbono na fonte. Você não está deixando de emitir, está removendo da atmosfera para fazer essa comparabilidade e essa remoção geralmente é através de compensação florestal. Mesmo que recupere a cobertura florestal nas florestas que temos do mundo, não vai remover mais do que 25% das emissões globais, segundo o IPCC. Não tem floresta suficiente para essa proposta, além de ser muito duvidoso jogar esses cortes para daqui há 30 anos: cria um compromisso para outras gerações, porque as pessoas atuais não estarão mais nesse processo. Não tem nada concreto para enfrentar o problema.
Como foi a atuação do Brasil no evento e como é seu comportamento ambiental em relação aos demais países?
Emitimos bastante por conta do desastre que é a política ambiental brasileira, então você tem um aumento devido às queimadas e ao desmatamento. A participação do governo dessa vez foi diferente do que aconteceu em Madri, onde chegaram causando com o ministro Ricardo Salles fazendo o possível para ser o mais desagradável e com o negacionismo muito forte na sua fala política. Haja vista a fala do Bolsonaro na ONU na véspera e vários sinais que nos mostravam esse caminho. Houve uma mudança em termos de postura e de tom, e não tendo o presidente lá melhora bastante. O ministro novo, ainda que seja braço direito do Salles, não é tão articulado: por um lado parecia que estava fazendo um portfólio para possibilitar trabalhos futuros, e por outro, existia um consenso no governo (não na ala ideológica) de que o Brasil, principalmente por conta do agronegócio e das exportações, precisava ter uma postura menos imatura. Porque ficamos com essa pecha de vilão em Madrid, então ele fez de tudo para ser mais flexível nas negociações.
O governo anunciou muitos resultados antigos e segurou a liberação dos do desmatamento. Como foi logo antes do final da COP 26, quase não teve repercussão interna. Entregou também uma meta nova, que mal tinha sido conversada dentro do governo. Nada que chame muita atenção, porque realmente é bem a prática desse governo. Mas no geral eles conseguiram ficar com uma imagem um pouquinho melhor, ainda que muita gente soubesse o que está por trás desse governo Bolsonaro. O setor da economia verde que tem proximidade com o governo conseguiu de alguma forma moldar a fala política lá na COP.
Quais as expectativas em termos práticos daqui para frente?
Foram assinadas declarações além das expectativas, como a sobre redução de metano que pode ter impactos importantes para o agronegócio brasileiro. Assinou a sobre florestas, que geralmente o Brasil é muito resistente, mas todas não são declarações vinculantes do ponto de vista de legislação e estão por fora do regime. É quase uma intenção, então o Brasil ganhou mais assinando Isso criou um espaço de mais interlocução com outros países. Lembrando que o Itamaraty é um organismo de Estado, então tem funcionários que já estavam e vão continuar na negociação independente desse governo. Isso deu uma margem de manobra para a tarefa de negociar o acordo.
Você comentou sobre uma quantidade expressiva de pessoas participando, há um sentimento de maior conscientização da sociedade civil sobre esse tema?
Mesmo com muitas restrições para o credenciamento e participação na COP, havia a importante presença de muitos movimentos, como os povos indígenas, do movimento, principalmente da juventude, que é bem forte na europa, e do movimento negro do Brasil que pela primeira vez teve uma participação mais ampla. A participação da população local foi um sinalizador interessante ao ver muita gente na janela com bandeiras e outras formas de expressão durante a marcha. As pessoas muito simpáticas e interessadas em ver o que estava acontecendo e conversando nas ruas. No último dia oficial aconteceu uma assembleia da sociedade civil dentro da COP, uma sala para 700 pessoas que ficou lotada, muita gente como eu não conseguiu entrar. Dali saímos em marcha com cerca de 2 mil pessoas deixando o recado: o espaço não está dando a resposta suficiente para o enfrentamento da crise climática que vivemos. Do lado de fora foi feita uma assembleia com as pessoas que não tinham credenciamento com falas políticas, e mostrando a mobilização e crítica aos esforços dos países no enfrentamento à crise climática.