Contra pandemia, Yawanawa fecham o rio Gregório e fazem ‘lockdown’ na floresta
Para descartar qualquer possibilidade de o coronavírus entrar em suas terras, os Yawanawa tomaram uma decisão radical: bloquearam o rio Gregório; ninguém sai, ninguém entra.
Por Fábio Pontes para Mídia NINJA.
A Aldeia Sagrada é a última entre as oito do povo Yawanawa dentro da Terra Indígena do Rio Gregório, no município de Tarauacá, no Acre. Encontra-se distante e isolada do restante de um mundo que sofre, a cada dia, com as consequências da pandemia do novo coronavírus, entre elas a fila de corpos de suas vítimas fatais. O isolamento geográfico na Floresta Amazônica agora representa uma vantagem para os Yawanawa e outros povos indígenas. Afinal de contas, o distanciamento social é a principal recomendação das autoridades mundiais de saúde para se evitar o contágio.
Muitos indígenas, contudo, precisam ir às cidades para resolver problemas e comprar suprimentos. Estas idas e vindas aos centros urbanos são vistas como perigosas diante do risco de entrarem em contato com alguém infectado e, sem saber, voltar para as aldeias com o vírus no organismo – o que seria uma tragédia para estas populações, já marcadas por um passado de mortes em massa provocadas por doença e as violentas “correrias” dos tempos dos seringais na Amazônia.
Para descartar qualquer possibilidade de o coronavírus entrar em suas terras, os Yawanawa tomaram uma decisão radical: bloquearam o rio Gregório; ninguém sai, ninguém entra. O “lockdown” da floresta ocorre nos acessos às duas últimas aldeias: a Nova Esperança e a Sagrada, localizadas já no Alto Rio Gregório, próximo às cabeceiras. Usando troncos de árvores, os indígenas ergueram uma cerca de uma margem à outra do rio, impedindo a passagem das embarcações.
São quase 370 pessoas vivendo na Nova Esperança – que é a aldeia central e a mais populosa – e a Sagrada. Eles decidiram reforçar as medidas de isolamento, visando, sobretudo, a proteção dos mais antigos e dos portadores de doenças crônicas. Das duas comunidades para rio acima só há muita floresta virgem, com registro da passagem de índios isolados alguns anos atrás. A região também fica próxima à fronteira com o Peru.
“Para nós, perdermos nossos velhos é como perder nossos arquivos sagrados. Nós vamos queimar nossos museus. Vamos perder nossa memória, ficar um povo sem história”
diz Biraci Yawanawa, o Bira, liderança máxima da Nova Esperança e Aldeia Sagrada. Os idosos estão entre as principais vítimas fatais da Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Bira reconhece que o lockdown do rio Gregório terá impactos sérios na vida das duas comunidades, como a dificuldade de acesso a combustível para os geradores usados para fazer funcionar as bombas dos poços com água potável e a compra de munição usada na caça de subsistência. Outra dificuldade será no acesso a ferramentas e insumos para o preparo dos roçados. Com a chegada dos meses do “verão amazônico”, as comunidades tradicionais da Amazônia se preparam para preparar o solo da agricultura.
Em entrevista por WhatsApp (há acesso à internet na Aldeia Sagrada), Bira diz que, com o rio Gregório fechado, os Yawanawa vão reaprender o modo de vida dos ancestrais que viviam exclusivamente na e da floresta.
Práticas como a caça e a pesca serão feitas com mais intensidade nestes dias de distanciamento do “mundo civilizado”. Dessa forma estará garantida a segurança alimentar dos Yawanawa, além de assegurar que os efeitos da pandemia do coronavírus fiquem apenas nas notícias que recebem via redes sociais nas telas de seus celulares. A liderança também comentou sobre o atual momento vivido pelos povos indígenas com o governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
Leia a entrevista:
Como foi essa decisão do povo Yawanawa de fechar o rio Gregório?
Bira: Não diferente de outros povos indígenas que nós estamos vendo o resultado da pandemia, como no Amazonas e em Roraima, onde já chegou essa doença, nós também estamos vulneráveis. No nosso caso é mais delicado porque vivemos na cabeceira do rio, sem nenhum acompanhamento de médico, sem assistência. Se um vírus desse chegar aqui vai acabar com o nosso povo, principalmente os que estão no grupo de risco. Nós temos muitos diabéticos em nossa aldeia, pessoas com problemas de pressão alta, com asma. Nós temos nossos velhos e nossas velhas. Para o mundo dos brancos eles podem não representar nada, mas os velhos, para nós, são arquivos vivos, são nossos museus da nossa essência, da nossa cultura. Essa é uma situação muito séria que pode provocar um colapso dentro da nossa terra. A única coisa que eu, enquanto liderança, poderia fazer é dizer: Não! Basta! Vamos fechar nosso rio. Não sobe [o rio] mais ninguém. Decidimos fechar o rio por pelo menos 30 dias, até o fim de maio. Se nossa família de outras aldeias também não adotar essa medida séria, nós vamos ficar por tempo indeterminado, até que haja uma solução para essa doença, uma vacina.
Como será ficar todo este tempo sem poder ir à cidade? Muitos itens alimentares vocês precisam buscar lá, como o feijão, o arroz, açúcar, café. Como garantir a segurança alimentar nas aldeias?
Bira: Sei que podemos passar por muitas necessidades porque já estamos acostumados a obter nosso material, nosso instrumento de trabalho. Já estamos na época de fazer os roçados. Não vamos poder comprar as ferramentas, além da munição para poder caçar, a gente trazer alimento para casa, gasolina que compramos para puxar água nos poços que precisam do gerador. Tudo vai faltar, eu sei disso. Mas meus ancestrais já viveram assim no passado e tenho certeza que vou sobreviver com o meu povo, e sem essa doença aqui dentro. Ela não vem sozinha, alguém tem que trazer. Portanto vamos fechar a nossa casa. Não sai ninguém, não vem ninguém. Nós vamos ficar assim até termos a segurança de poder voltar a receber outras pessoas.
Os Yawanawa foram pioneiros em desenvolver o turismo dentro das aldeias. Como está essa atividade agora?
Bira: Nós, Yawanawa, sempre vivemos por conta própria. Nós não temos projetos com governo federal, estadual ou municipal, com ONGs. Sempre toda vida foi isso, receber grupos de pessoas, Nós criamos o Festival Yawanawa, criamos as Vivências atraindo pessoas do mundo inteiro, do Brasil. Com isso temos comprado as nossas necessidades, temos montado a nossa estrutura. Mas nós suspendemos tudo isso por tempo indeterminado. E se isso [Covid-19] não tiver cura, nós não vamos ter mais [o turismo]. Mas eu estou feliz porque pelo menos agora nós vamos poder voltar para dentro de nossa casa, estudar nossas medicinas, valorizar nossos remédios da floresta. Vamos ficar mais tempo nas aldeias para cuidar do nosso povo, viver em família.
Para o povo Yawanawa, qual a importância de se proteger os mais velhos?
Bira: Para nós, perder nossos velhos, é como queimar nossos arquivos sagrados. Vamos queimar nossos museus, vamos perder nossa memória, ficar um povo sem história se nossos velhos morrerem. Essa doença tem matado muitos velhos. E para proteger nossos velhos, a nossa história, nós tomamos essa decisão. Ela pode ser radical, mas é o único instrumento que eu tenho para garantirmos um novo amanhecer depois da Covid-19.
Este isolamento mais radical vai forçar, digamos assim, os Yawanawa a retomar seu modo de vida ancestral em relação à segurança alimentar. Sem poder ir à cidade, terão que reforçar a prática da caça e da pesca. Os mais jovens certamente serão os mais impactados. Como a comunidade lidará com isso?
Bira: Como diz um tio meu, não há mal que não traga um bem. Esse momento difícil que a humanidade está passando nos faz conectarmos com a nossa essência. Nós somos um povo conhecedor de muita medicina. Quando apareceu esses remédios da indústria da farmácia, dos hospitais, nós esquecemos todo o nosso conhecimento. Viramos preguiçosos de nosso saber da floresta. Agora precisamos nos reconectar com o nosso saber, nosso conhecimento, com a nossa ciência. Para mim é um momento de repensar toda a nossa história. Amanhã não será mais o mesmo dia de hoje para toda a Humanidade. É um tempo de reconectar com nosso mundo espiritual. Eu estou num lugar chamado Aldeia Sagrada, onde houve o primeiro contato do Yawanawa com o homem branco. A minha geração foi de muito sofrimento, de ter que trabalhar para o seringalista, depois ser evangelizado pelos missionários protestante, depois ter de lutar pelo direito à terra. Hoje nossos jovens não têm mais isso. Eles estão vendo, sentindo os efeitos desta pandemia, o susto, o medo, o pânico. Os jovens Yawanawa estão vivendo a segurança que a nossa floresta oferece. Nós vivíamos aqui recebendo gente do mundo inteiro, e muitas das vezes viajando por todos os continentes. Mas agora tenho que parar para pescar, para plantar. Agora é um tempo de voltarmos para casa.
O senhor mora numa das regiões mais extremas e longínquas do país. É guardião de uma imensa área de floresta intacta. Desde a Aldeia Sagrada, qual a avaliação o senhor faz das atuais políticas (ou a falta delas) do atual governo brasileiro para os povos indígenas?
Bira: Este é um governo que eu não sei nem assim comentar, comparar com outros presidentes, nem com os presidentes da ditadura. Nem os presidentes da ditadura foram tão carrascos como este atual governo. Isso ocorre descaradamente, assumido internacionalmente. Estamos vendo a aceleração no desmatamento, a invasão das terras indígenas, os assassinatos de lideranças indígenas importantes do Brasil. Nós estamos aqui simplesmente protegendo um bem da humanidade, deste país, e nós estamos sendo assassinados por isso. Não somos reconhecidos por isso. Nós não temos um único programa social voltado para a dignidade dos povos indígenas, não temos um programa de saúde, de respeito, que nos dê segurança e atenção. Nós não temos nada. Somos tratados como miseráveis, infelizmente. Mas nós somos os guardiões que guardamos este tesouro que é a floresta, e ela pertence ao Brasil. Somos brasileiros que cuidamos do Brasil e não somos respeitados.