Construção do Porto Sul na Bahia põe comunidades em risco e ativistas se mobilizam contra projeto
Comunidades baianas temem que o plano de embarque de minério de ferro do complexo Porto Sul, construído na China, afete uma economia tradicional e sustentável
por Victor Uchôa para Diálogo Chino
No litoral sul da Bahia, cerca de 400 quilômetros abaixo de Salvador, existe uma região que abriga 80% do que ainda resta de Mata Atlântica no Nordeste brasileiro. Ali, o conjunto que une florestas, mar, rios, lagoas e vastos manguezais dá lugar a uma imensa biodiversidade de fauna e flora, fazendas de cacau com produção de chocolates orgânicos que viajam o mundo inteiro e um depósito pesqueiro de onde mais de 10 mil pessoas retiram o sustento.
No coração desta região fica a cidade de Ilhéus. E é bem ali, no distrito de Aritaguá, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Lagoa Encantada, que está em curso a implantação do Complexo Portuário e de Serviços Porto Sul, um empreendimento que, desde 2007, inflama debates entre representantes da sociedade civil, Ministério Público, Governo da Bahia e empresas privadas.
A construção do porto será tocada pela Bahia Mineração (Bamin) junto com um consórcio chinês formado pelas empresas China Railway Group Limited e China Communications Construction Company. A obra deve durar quatro anos, com investimento previsto de 2,5 bilhões de reais.
Para entender o Porto Sul, entretanto, é preciso se afastar do litoral e percorrer aproximadamente 450 quilômetros Bahia adentro, até a cidade de Caetité. É no Alto Sertão que a Bamin – cujo controle é da cazaque Eurasian Resources Group (ERG), envolvida em ruidosos casos de corrupção – pretende explorar uma mina de minério de ferro descoberta em 2006.
Desde então, o governo baiano defende que, para garantir a produção e o escoamento do minério é necessário erguer um tripé: mina-ferrovia-porto. O objetivo é que dali o minério seja destinado ao mercado siderúrgico chinês.
É daí que nasce a ideia de construir a Ferrovia de Integração Oeste Leste (Fiol), passando por Caetité e chegando até Ilhéus, onde o Porto Sul ocupará 18 milhões de metros quadrados divididos entre o alto mar e um retroporto na parte continental.
Depois de apresentado o projeto, lá se vão 13 anos de licenças concedidas e derrubadas, frágeis análises de impacto ambiental, mudança de localização do Porto Sul e obras atrasadas ou jamais iniciadas.
De um lado do debate, governo e Bamin mantêm o discurso de que os equipamentos levarão empregos e desenvolvimento para a região. De outro, representantes da sociedade civil apontam que, ao causar danos irreversíveis numa área de reserva final da Mata Atlântica, as obras vão arruinar uma engrenagem que alia produção cacaueira sustentável, agricultura familiar, ecoturismo e pesca artesanal.
“O que está em jogo é o tipo de desenvolvimento que se quer para a região. Nosso papel, em pleno século 21, é produzir riqueza para outros países? Por que não melhorar as estradas vicinais, qualificar as pessoas para a agricultura sustentável, a pesca, o turismo e até mesmo as indústrias de baixo impacto, como de informática, que já temos aqui?”, questiona Rui Rocha, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) em Ilhéus e diretor do Instituto Floresta Viva.
Porto Sul: uma conta que não fecha
Rocha desafia a lógica do apoio do governo ao megaprojeto, em parte justificado pela expectativa de que 400 empregos diretos sejam criados. No entanto, Rocha argumenta, mais de mil empregos seriam perdidos nas fazendas que formam a Rota do Chocolate e teriam de ser desapropriadas pelas obras do Porto Sul e da ferrovia. “A conta não fecha”, conclui.
Há anos atuante no debate sobre os projetos, a empreendedora social Maria do Socorro Mendonça corrobora a análise de Rocha e critica a forma como as licenças ambientais foram concedidas.
“Foi tudo analisado de forma separada, o que não mostra o tamanho real do problema. Como é que pode sair uma licença para o porto antes de ter a da ferrovia? E a liberação da mina sem saber como iria escoar? Foi tudo na base da pressão”, diz.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Governo da Bahia afirmou que o Ibama, agência federal de proteção ambiental, condicionou a liberação de licenças à “execução de 39 programas ambientais na área de fauna, flora, socioeconomia, meio terrestre e aquático”. Não ficou claro, no entanto, de que forma exatamente esses programas amenizarão os impactos à economia cacaueira e pesqueira da região.
Cacau ou minério de ferro?
Nascida em Ilhéus com “muita honra”, Socorro Mendonça aponta outro potencial problema no projeto: a vida útil da mina de Caetité, razão de existir do Porto Sul.
Pelas estimativas divulgadas pela própria Bamin, com produção de 20 milhões de toneladas/ano do minério já beneficiado, a operação no Sertão vai durar aproximadamente 20 anos.
“O cultivo de cacau é centenário e a pesca artesanal tem milhares de anos. A região tem potencial para desenvolver turismo científico e de bases comunitárias, que ficam para várias gerações. Mas a prioridade é para um projeto que tem data para acabar”, lamenta Mendonça.
O que poderia dar fôlego ao Porto Sul seria sua utilização pelo agronegócio, mas, segundo Alan Juliani, presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho da Bahia (Aprosoja-BA), isso só deve ocorrer quando (e se) a Fiol chegar ao oeste do estado, que concentra a produção do setor. Mas esta expansão ainda não tem previsão para acontecer.
“Com a ferrovia saindo de Caetité, não serve para gente. Se for para levar até lá pela estrada, é melhor o caminhão ir para (Porto de) Aratu, porque ele volta com adubo e fertilizante. Mas, com a ferrovia chegando em Barreiras, aí pode ser útil, até para tentar baratear o frete”, afirma, citando o próximo trecho planejado da Fiol, que não tem previsão para ser licitado.
O Porto de Aratu a que Juliani se refere fica próximo a Salvador e tem a maior movimentação de cargas da Bahia. O terminal já é alimentado pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), que sai de Minas Gerais e passa a pouco mais de 100 quilômetros de Caetité.
Críticos questionam a necessidade de ligar a Fiol a Ilhéus, em vez de conectá-la à FCA para que o minério chegue até Aratu — eliminando a necessidade de um novo porto.
Segundo Rui Rocha, ao longo dos anos, o governo argumentou que a FCA está obsoleta e que a profundidade de Aratu (20 metros) não comportaria os navios que serão carregados com minério.
O calado do Porto Sul, entretanto, terá a mesma profundidade. Além disso, um estudo encomendado pela VLI, concessionária da FCA, estima que um investimento de 500 milhões de reais seria suficiente para revitalizar sua malha ferroviária, deixando-a apta para escoar a produção de Caetité.
O governo não explicou o motivo da escolha de investimento no Porto Sul. Em vez disso, afirmou em nota seu interesse em desenvolver a região sul do estado. “Os estudos de projeto e análises ambientais sempre demonstraram a necessidade de desenvolver a economia das regiões baianas e a descentralização da Região Metropolitana de Salvador”, diz a nota.
Andamento
Mas os projetos continuam a andar, e o conflito entre governo e ativistas contrários ao porto parece próximo do fim, com pouca chance de concessões às comunidades tradicionais e ao meio ambiente.
R$ 3,4 bilhões é o custo potencial do Porto Sul (R$)
Estatal do governo federal responsável pela construção de ferrovias, a Valec marcou para o próximo mês de março a licitação para conclusão do trecho da Fiol entre Caetité e Ilhéus, que está com 73,6% das obras concluídas. Entre o que já foi gasto e o previsto, o investimento no trecho será de R$ 3,4 bilhões.
Em maio de 2019, Governo da Bahia e Bamin assinaram um acordo para que, quando finalizado, o terminal seja operado de forma compartilhada entre os dois entes. A capacidade de armazenamento e transporte prevista para o Porto Sul é de 41,5 milhões de toneladas de minério por ano.
Em outubro do ano passado, foi homologado um Termo de Compromisso Socioambiental firmado entre Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público da Bahia (MP-BA), Governo Estadual, Bamin e Município de Ilhéus.
O termo determina que a Bamin vai aportar 45 milhões de reais para custear medidas de prevenção a danos ambientais evitáveis e mitigar impactos não evitáveis na região do Porto Sul.
Entre as medidas previstas, estão o apoio e estruturação das Unidades de Conservação (UC) já existentes na área e o aprimoramento do sistema de monitoramento e controle ambiental da região, com aquisição de licença de uso de imagens de satélite de alta tecnologia e emissão de alertas de supressão de vegetação em tempo real.
O Diálogo Chino solicitou um posicionamento da Bamin sobre as críticas ao projeto, além do estágio de implementação das medidas de mitigação de impacto ambiental, mas não houve retorno até o fechamento da reportagem.
Sem informar quantas fazendas serão desapropriadas, o Governo baiano apenas declarou que o processo está em curso. Também não há um levantamento preciso de quantos pescadores serão impactados pelo projeto. Enquanto isso, os ativistas seguem lutando para tentar amenizar os impactos das obras.
“Eu não vou ficar na frente de trator, mas vamos seguir acompanhando de perto, fiscalizando as medidas condicionantes”, conclui Maria do Socorro Mendonça. “Não é dizer não ao porto, é dizer sim ao Sul da Bahia sustentável.”
Protesto
Em defesa da vida, das comunidades, da cultura tradicional e do território do Sul da Bahia, ativistas e povos indígenas realizaram ontem o “Manifesto Cultural PacíficoEXPRESSO 22222”, uma caminhada a favor de um desenvolvimento sustentável e contra a implementação do Porto Sul na região. A ação foi realizada simbolicamente realizada no 2 de fevereiro, dia de Iemanjá.