“A semente é o primeiro elo da cadeia alimentar e incorpora milênios de evolução e milhares de anos de melhoramento realizado por agricultores, bem como a cultura de guardar e compartilhar livremente os materiais genéticos. É a expressão da inteligência da terra e da inteligência de comunidades agrícolas ao longo dos séculos.

Vandana Shiva
Física e filósofa, ecofeminista e ativista ambiental indiana

Foto: Reprodução / Governo do Estado de Santa Catarina

Por Eliana Conde Barroso Leite 

Já conhecem o milho preto, o milho vermelho ou milho pintado? É uma boa notícia saber que as sementes crioulas entraram definitivamente na vida moderna. Elas têm sido trazidas à luz em sua potência alimentar por agricultores, organizações não governamentais, pesquisadores e ativistas da agrobiodiversidade. É animador saber que elas vêm se difundindo cada vez mais na sociedade. Afinal, é preciso antes conhecer para preservar.

Mas o que são sementes crioulas e qual a sua importância? São materiais genéticos cultivados durante séculos, por povos tradicionais, adaptados a condições ecossistêmicas locais, resistentes e produtivos, que representam a segurança alimentar das comunidades que os protegem. Porém, muito mais do que isto, asseguram para o futuro a segurança alimentar de toda a humanidade.

O caso do milho crioulo de Ibarama (RS) ilustra bem: Cassol avalia que “a semente do milho crioulo garantiu a sobrevivência da humanidade até o início do século XX, pois não existiam as sementes híbridas”. Ao surgirem os híbridos, os produtores passam a comprar anualmente as sementes e todo o pacote tecnológico agroquímico a elas associado.

Na verdade, as empresas detentoras da tecnologia do milho híbrido obtém uma “patente branca” sobre o material genético, pois a forma de obtenção do híbrido só é conhecido por elas. Isto acaba por romper com a prática cultural dos agricultores familiares, que possuem tradição de guardar as suas sementes de um ano para o outro.

As sementes crioulas têm sido objeto de tecnologias sociais importantes, como os bancos de sementes comunitários. Constitui esta tecnologia uma verdadeira resistência ao padrão fordista da agricultura convencional, que tem provocado preocupante erosão genética com perda de preciosos bancos de germoplasma locais.

Os bancos de sementes comunitários surgiram na década de setenta, com incentivo da Igreja Católica junto às Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, em diversas paróquias e dioceses do Nordeste. Em diversas partes do mundo existem iniciativas semelhantes, sobretudo em regiões de conflitos armados e catástrofes ambientais, como Etiópia e Colômbia, de acordo com Paula Almeida e Ângela Cordeiro.

A grande importância dos Bancos de Sementes Comunitários é a conservação da biodiversidade, variabilidade genética dos cultivos agrícolas e a diversidade local. Um estudo na Paraíba revelou que em seis comunidades do agreste que cultivavam três espécies de feijão foram encontradas 67 variedades de gãos destas espécies! O estudo também foi importante por focar em uma lista de variedades que se encontravam em situação de risco de desaparecimento.

Grosso modo, uma variedade de feijão é um material genético que se distingue por suas características morfológicas e bioquímicas, sendo que uma das características de mais fácil visualização deste conceito é a cor do grão (feijão-preto, feijão-vermelho, feijão roxinho etc), sabendo-se que existem por sua vez inúmeras variedades de feijão preto, vermelho, rajado etc, e ainda dentro destas variedades, as raças. As espécies vegetais e animais comestíveis, suas variedades e raças, e ainda, seus parentes silvestres, compõem a agrobiodiversidade.

As variedades crioulas são plantas geneticamente dinâmicas e de alta mutabilidade que faz com que se adaptem a diversas condições ambientais e possuam resiliência à mudanças climáticas.

Neste sentido, vale a pena conhecer o importante trabalho “Conservação e Uso de Recursos Genéticos para a alimentação e a agricultura no Brasil”, de Abreu, Pádua e Barbieri, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa.

O documento alerta que em 2023 deverá ser divulgado o terceiro Relatório sobre a Situação dos Recursos Genéticos Vegetais Mundiais para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Os relatórios nacionais seguem a orientação da FAO.

O trabalho destaca que no Brasil encontramos centenas de espécies que são parentes silvestres de cultivos, destacando-se o algodão (Gossypium spp.), arroz (Oryza spp.), mandioca (Manihot spp.), amendoim (Arachis spp.), pimentas (Capsicum spp.), abacaxi (Ananas spp.), maracujá (Passiflora spp.), batata (Solanum spp.) e batata-doce (Ipomoea spp.). O Brasil é o centro de origem de Gossypium mustelinum, endêmica, e muito ameaçada, registrando-se apenas cinco populações, algumas delas contando apenas 400 indivíduos adultos. Parentes silvestres do amendoim estão no Cerrado, Pantanal e Caatinga.

Registramos em território nacional três parentes silvestres de arroz (O. glumaepatula, O. grandiglumis e O. latifolia), nos biomas Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal. As espécies silvestres de arroz  encontram-se em área de fronteira agrícola, podendo a sua expansão ter impacto sobre estas populações. Temos ainda inúmeras espécies nativas de importância alimentar como pequi e coquinho-azedo no Cerrado, mangaba no Semiárido, castanha-do-brasil na Amazônia, pinhão e butiá na região Sul.

Muitas variedades crioulas/tradicionais que são conservadas em bancos comunitários de sementes são trocadas em festas e feiras de sementes crioulas, importantes espaços de intercâmbio!

 

Locais onde ocorrem feiras de sementes crioulas, de 2012 a 2019. Fonte: Embrapa, 2022

 

Locais onde foram identificados guardiões de sementes de 2012 a 2019 (Conservação in situ – no seu habitat e manejo on farm – plantio contínuo de variedade local pelo próprio agricultor). Fonte: Embrapa, 2022.

 

 

Locais onde foram identificados bancos comunitários de sementes de 2012 a 2019. Fonte, Embrapa, 2022.

 

O documento destaca a atuação da Articulação do Semiárido Paraibano, que envolve mais de 3 mil organizações como sindicatos rurais, cooperativas, associações de agricultores e ONGs, nos estados da Paraíba, Sergipe, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão e Minas Gerais. A ASA engloba uma rede de 230 bancos comunitários de sementes, sendo referência nacional. No Território da Borborema (12 municípios da Paraíba), existem 60 bancos comunitários de sementes atendendo a 4.308 famílias de agricultores.

Existem ainda inúmeros bancos de germoplasma pertencentes a centros de pesquisa que conservam recursos genéticos em todo o território nacional – conservação ex situ.

Os pesquisadores apontam lacunas e necessidades para a conservação da agrobiodiversidade, passando por uma efetiva política nacional de recursos genéticos; inventários nacionais de ocorrência e status de conservação de parentes silvestres das plantas cultivadas, incluindo os conservados no Sistema Nacional de Unidades de Conservação e em terras indígenas; políticas públicas de proteção aos guardiões de sementes, inventários dos recursos genéticos vegetais para alimentação mantidos em sistemas agrícolas tradicionais em povos indígenas e comunidades tradicionais; mapeamento de instituições, entidades e redes envolvidas com a conservação de recursos genéticos; proteção das variedades crioulas/tradicionais, de modo a garantir sua integridade genética, evitando cruzamento com variedades comerciais e/ou transgênicas; ampliação do consumo de Plantas Alimentícias Não Convencionais – PANCs (espécies alimentícias subutilizadas), entre muitas outras recomendações.

A megadiversidade brasileira ainda está muito pouco conhecida ou subtilizada, Porém o consumo de plantas subutilizadas ou PANCs vem crescendo nos últimos anos, como é o exemplo da taioba, maxixe, caruru, bertalha e ainda, a ora-pro-nóbis, planta de elevada importância regional (Minas Gerais), tendo o consumo destas espécies detectado pelo IBGE no censo de 2017.