Por Laura Süssekind

Valentina Homem é uma diretora, roteirista e produtora brasileira reconhecida por seu trabalho diversificado no cinema e nas artes visuais. Com formação em Cinema e Artes da Mídia pela Temple University, nos Estados Unidos, onde Valentina também atuou como professora assistente e adjunta. Foi inclusive durante um dos exercícios de uma aula de roteiro da universidade, que Valentina escreveu o conto em 2012, que, em 2024, nasceu e estreou sob a forma de curta-metragem no Festival de Cannes, o intitulado “A menina e o pote”.

Valentina baseou-se em experiências autobiográficas e universais para desenvolver o conto que, em meio a metáforas e performance, atravessou diversas experimentações artísticas, dentre vídeo instalações com peças de teatro, até dar a luz a uma animação rica em símbolos que enraizaram a menina na cultura ameríndia. O curta-metragem estreou em Cannes e foi selecionado também para o Festival de Annecy, o maior festival de cinema de animação do mundo, também na França.

Em um bate-papo conosco sobre o festival, Valentina descreveu a experiência em Cannes como intensa e marcante, especialmente ao ver seu filme dialogando com outras obras selecionadas, todas caracterizadas por suas narrativas verdadeiras e profundamente humanas de cada artista. Pessoas escreveram para ela sobre o impacto do filme, incluindo uma revista francesa que o incluiu na lista dos dez melhores curtas do festival. Essas respostas, bem como entrevistas e trocas com outros cineastas, mostraram a Valentina como seu filme tocou profundamente diversas pessoas.

Ela conta que a primeira reação marcante ao filme veio da própria curadoria do festival. Após ser incluído na lista de pré-seleção, Valentina recebeu um e-mail comovente de Juliette Canon, chefe de programação de curtas, reconhecendo o valor do seu trabalho, que o comitê achou o filme belíssimo, com visões poderosas. Juliette escreveu: “Através de suas diferentes escolhas de representação, o filme não é apenas destinado a ser belo, mas, acima de tudo, político.”

Para produzir o curta, Valentina contou com a consultoria da antropóloga indígena Francy Baniwa, e a colaboração de Nara Normande, Tati Bond e Eva Randolph. A história tem referências à cosmologia Baniwa e algumas influências da mitologia Yanomami.

Durante o processo, Valentina enfrentou feedbacks duros, especialmente devido às especificidades do filme, que se baseava na cosmologia ameríndia, levantando dúvidas sobre sua capacidade de tocar audiências fora do Brasil. No entanto, Valentina persistiu e acreditou no potencial do curta, e receber a validação da curadoria de Cannes foi muito importante para ela, evidenciando que, apesar das diferenças culturais, os curadores conseguiram enxergar a essência e a mensagem do filme mesmo no outro lado do mundo.

“Eu sinto que A Menina, como os outros curtas que estavam na seleção, são filmes que você consegue ver através dos filmes, ver quem é que está fazendo esses filmes, ver o lugar de onde essas pessoas estão vindo. Eu até falei isso no meu discurso lá, que senti que a gente estava sendo acolhido ali por uma equipe de curadoria que escolhia os filmes com coração” contou Valentina, sobre Cannes. “Eu achei muito tocante e profundo ter essa sensação de que a Menina estava ali junto com outros filmes que eu sentia que eram filmes com alma, filmes com pulso, filmes com entranhas, filmes que me faziam acessar essas pessoas que tinham feito eles, as suas culturas, suas histórias.”

Dia 18 de Junho, Valentina lançou seu aguardado longa-metragem “Um dia antes de todos os outros”, no 13º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Um projeto que começou como uma adaptação teatral de um projeto de Jô Bilac e evoluiu ao longo de anos de desenvolvimento criativo e superação de desafios. A diretora compartilhou os bastidores da produção, destacando a colaboração intensa com as atrizes, Clarissa Pinheiro, Marianna Bittencourt e Elvira Helena, e a abordagem híbrida que combinou técnicas teatrais com um estilo documental de filmagem, que reflete o background de Valentina e de Fernanda Bond, codiretora e coroteirista do projeto.

Ela contou: “Enfim, foi um processo muito colaborativo, muito orgânico e muito peculiar, assim, de formato de produção, que não tem nada a ver com o que é feito no cinema em geral, em que teve esse processo de criação dramatúrgica muito próximo do teatro e, ao mesmo tempo, um processo de filmagem muito próximo do documentário. Porque a gente priorizou passar algumas semanas com as atrizes, fazendo dramaturgia, gravando 100% dos improvisos, depois transcrevendo e estruturando o roteiro a partir disso.

Valentina fala, com orgulho, sobre a produção em seu Instagram: “Um projeto que teve a sementinha plantada em 2011, enfrentou muitas barreiras, nadou contras as duras correntes da ausência de políticas públicas e da pandemia, se transformou muito e só se tornou possível porque um bocado de gente maravilhosa e guerreira acreditou na nossa loucura de filmar um longa-metragem em quatro dias com um orçamento de menos de 100 mil reais.

Durante nosso bate papo, ela destacou o quão gratificante foi assistir a reação do público ao filme. Apesar de ter assistido ao longa diversas vezes durante a produção, a experiência na sala lotada foi completamente única e superou suas expectativas. “Ver as pessoas rindo, envolvidas, muito emocionadas no final, vindo conversar com a gente, chorando, muito tocadas e atravessadas. Foi uma experiência mágica.”

Sobre a mistura de cinema e política, Valentina diz ser impossível separar sua vida e seu trabalho da política. Destaca que o cinema e o fazer arte, por si próprios, são políticos. “Fui criada por uma mãe feminista, então nos anos 2000, meus projetos estavam intimamente ligados ao movimento feminista, explorando essas temáticas. Depois disso, meus filmes assumiram uma abordagem política de outro lugar.”

“‘Um Dia Antes de Todos os Outros’ foi um filme que, para mim, foi um gesto político (…) Só foi possível por conta de uma rede de afetos, um capital afetivo e um capital humano e de muitos talentos de pessoas que chegaram junto para fazer. Não é o ideal (orçamento de somente 90 mil reais), mas foi um gesto político, porque em pleno governo Bolsonaro a gente tinha esse dinheiro e, ou a gente devolvia, ou fazia alguma coisa com ele. E eu banquei isso, a produtora do filme bancou junto comigo e a gente se arriscou, todo mundo se arriscou junto, e é lindo que o filme tenha dado certo.”

Sobre a recente PL 1904, Valentina comenta: “A questão do aborto também é um tema que está na minha vida desde sempre por conta do ativismo da minha mãe, e que vem sofrendo dentro do crescimento do conservadorismo político brasileiro e do mundo, mas no Brasil, principalmente, tem sofrido ataques muito importantes. Então, acho que a questão do aborto tem que, sim, mais do que nunca, estar presente no audiovisual e no cinema.”

Sobre seus próximos projetos, a diretora conta que está planejando um filme que explora a história de seus pais em Moçambique, incluindo um arquivo visual significativo e uma reflexão sobre utopias passadas e futuras. O documentário híbrido se chama Debaixo do Embondeiro. “Embondeiro é uma palavra moçambicana que significa baobá, a árvore de baobá, que tem a ver com uma história que meus pais viveram na África nos anos 70,” explicou. Seus pais foram viver em Moçambique para testemunhar o processo de revolução socialista do país e escreveram um livro sobre essa experiência. O filme parte desse livro e dos registros visuais que os dois têm da época. A diretora parte para Moçambique em Julho para dar seguimento ao projeto.

Outro filme em produção é um longa de ficção chamado Cavalo, que Valentina está desenvolvendo ao lado de Juliana Lapa, artista e desenhista, e personagem da qual as histórias serão contadas na narrativa. O filme se passa num bairro de Olinda, onde ela viveu e no qual seu pai mora até os dias de hoje. “Coincidentemente, Juliana, de quem eu tinha ficado amiga, foi morar nesse bairro, no mesmo sítio, no condomínio em que meu pai mora. O filme parte de algumas experiências que ela teve nesse bairro, morando nessa casa, a partir da chegada de um cavalo que ela adotou,” descreveu Valentina.

Uma parte do filme será em animação, com desenhos profundos, feitos pela própria Juliana. O projeto está na segunda etapa de desenvolvimento de roteiro.

Valentina se formou em jornalismo nos anos 90, época em que havia poucas escolas de cinema no Brasil. Seu primeiro filme, “Avó”, um documentário experimental de seis minutos, surgiu de uma aula de edição na faculdade. O filme foi inspirado pela relação de sua avó com sua cuidadora, Sônia, que desafiava a ideia de que pessoas nessa condição são “vegetais”. Essa história dialoga muito com a personagem da Marli, no filme Um dia antes de todos os outros. Para Valentina, o cinema é uma forma de se aproximar de realidades específicas e memórias pessoais, construindo espaços onde as relações e histórias se desenrolam e entrelaçam. Ela citou Naomi Kawase ao descrever o cinema como um espaço para potencializar as relações e a capacidade de sonhar e entranhar diversas realidades.

“O cinema é uma forma de se aproximar de determinadas realidades, se aproximar de determinadas memórias, é uma forma de construir espaços onde as coisas acontecem. (…) Tem a ver com a nossa necessidade, a necessidade que eu sinto de me aproximar de uma possibilidade de sonhar, de sonhar outros mundos, de projetar novas realidades”, descreve.

Finalizando, Valentina explica: “para mim, o cinema está muito vinculado ao meu próprio viver, é o meu viver. Ele não é simplesmente o meu ofício, ele não é a minha profissão, ele é a forma como eu vivo, está muito colado na maneira como eu vivo, com o que eu vivo. Eu estou vivendo e estou pensando nos filmes, estou fazendo os filmes, isso está me transformando enquanto ser humano. Então tem a ver com isso, o viver é o fazer cinema, de forma muito orgânica para mim.”