Por Nara Almeida

“Nunca faço filmes adaptados; escrevo meus próprios roteiros. Investigo, questiono e depois escrevo, e tento permanecer fiel ao mundo rural de onde venho, bem como à África e aos aldeões”. O cinema de Safi Faye parte do seu interior, de suas vivências como mulher africana. Cineasta e etnóloga senegalesa, foi movida pelo desejo de reverter o olhar limitado e eurocêntrico imposto ao continente, tornando-se a primeira mulher africana a realizar um filme e a traduzir a subjetividade e a complexidade do povo negro.

Nascida em 1943, em Fad’jal, um vilarejo nos arredores de Dakar, no Senegal, Safi Faye conhecia com intimidade a vida rural, os camponeses e suas lutas. Assim, entrelaçava sua origem às obras, amplificando vozes historicamente silenciadas.

À frente do que ficou conhecido como a era de ouro do cinema senegalês, Safi buscava reafirmar a identidade de um Senegal livre das garras coloniais. Justapondo documentário e ficção, suas produções transbordam força política e ilustram, com soberania, a realidade e as feridas abertas do pós-colonialismo. As narrativas orais dos griôs ganham corpo nas imagens, revelando os conflitos geracionais, os apagamentos e os dilemas entre tradição e modernidade. Além disso, em todos os planos, a figura feminina ocupa o centro — e o amor surge como fio condutor.

Sua história com o cinema começou de forma inusitada. Em 1966, conheceu o renomado diretor francês Jean Rouch, precursor do movimento cinéma-vérité, quando trabalhou como guia no 1º Festival Mundial de Artes Negras, em Dakar. Na época, estava se formando como professora, e seu jeito singular e intelectual cativou Rouch, que a convidou para atuar em seu filme Petit à petit: lettres persanes (1968). “No final do festival, ele me disse: ‘Gostaria de fazer um filme com você’. Eu disse: ‘Um filme? Eu sou professora!’ E ele respondeu: ‘Veremos’”, relembrou em entrevista de 2006.

A experiência foi decisiva para o início de sua jornada como cineasta. O modo como o diretor retratou a realidade africana a incomodou. A representação distorcida despertou o desejo de estudar sua cultura e buscar autonomia para representar o lugar de onde vinha.

Em 1972, mudou-se para a França para estudar etnologia na École Pratique des Hautes Études e, ao mesmo tempo, cinema na École Nationale Supérieure Louis Lumière. Ainda na faculdade, produziu seu primeiro curta, no qual também atuou: “Eu não sabia tudo, mas não estava mais com medo daquele equipamento imponente. E, desde então, fui a primeira mulher africana a ousar fazer cinema”, declarou em entrevista gravada em 1998, Leçon de Cinéma avec Safi Faye.

A formação em etnologia tem um papel permanente na composição de seus filmes. Safi Faye incorporava o olhar duplo que carregava sobre a África: de um lado, sua visão de mundo como africana; de outro, a perspectiva analítica adquirida na universidade. Com esse conhecimento aprofundado, buscava mostrar que o continente era muito mais do que os etnólogos europeus enquadravam como exótico. Convertia esse olhar duplo em imagem, sem se preocupar com a compreensão da sociedade ocidental.

Seu primeiro longa-metragem, Kaddu Beykat (1975), marcou seu nome na história como o primeiro filme africano dirigido por uma mulher a ser distribuído comercialmente. Foi censurado no Senegal por criticar políticas agrícolas. Um romance epistolar dedicado ao espectador, retrata a dinâmica social do campo afetada pela cobrança de impostos excessivos. “Foi censurado porque, pela primeira vez, dei voz às pessoas que sofriam de fome e as deixei falar no filme. O governo tinha o monopólio da agricultura e não queria que suas políticas e a fome fossem criticadas”, afirmou em entrevista concedida em 1997.

O título Fad’jal (1979) marcou o reconhecimento internacional da cineasta ao ser o primeiro longa africano selecionado em Cannes. Filmado em sua aldeia natal, o documentário celebra o rito da colheita, a tradição oral e a memória coletiva.

Mossane (1996), seu último longa e o único totalmente ficcional, enfrentou problemas com o lançamento devido a fraudes e à perda de direitos. A trama aborda o despertar da sexualidade, a feminilidade e o embate entre amor e pressão financeira. A protagonista, Mossane, tem 14 anos e recusa um casamento arranjado. Sua beleza se torna objeto de disputa entre familiares, pretendentes e forças ancestrais.

O cinema africano é, antes de tudo, resistência. Safi Faye faleceu em 2023, aos 79 anos, deixando um legado poderoso: a união entre inovação estética e abordagens sociais atemporais, eternizadas por suas lentes, tem um valor imensurável e dimensão revolucionária. Apesar de sua relevância histórica, boa parte das produções africanas permanece de difícil acesso, o que revela as barreiras impostas por um sistema excludente. Relembrar e celebrar sua trajetória como parte central da cinematografia africana é também um gesto que muda tudo.

Sua grandiosidade não está apenas no fato de ser uma mulher negra dirigindo filmes, mas na coragem com que recusa que a história de seu povo seja narrada por outros. Seu cinema permite que as pessoas falem por si.