Conheça o professor indígena que atravessava igarapé com a água no pescoço para atender alunos
Saiba o que mudou na vida dessa comunidade escolar depois que essa imagem viralizou nas redes sociais
Por Glycya Makuxi, bolsista do Guardiões da Amazônia*
Uma foto do professor Telmo Makuxi atravessando um igarapé com a água no pescoço para garantir que os alunos tivessem suas atividades impressas, viralizou internacionalmente em 2020, depois que o Levante Indígena noticiou seu esforço heroico.
Alvo de comoção mundial, a foto rendeu uma impressora para a escola. Foi a única coisa que mudou de lá para cá. O professor, que à época atuava como gestor da Escola Estadual Indígena Presidente Afonso Pena, na comunidade Matiri (RR), conta que assim como em 2020, as aulas seguem remotas no período chuvoso. E era assim mesmo antes da pandemia.
Com a falta de infraestrutura adequada para acesso dos estudantes, as aulas seguem através de apostilas impressas. “Sem infraestrutura adequada que garanta o trânsito dos alunos, não conseguimos mudar essa realidade”. O professor explica que a escola teve até que criar um calendário próprio, com aulas remotas entre a segunda quinzena de maio e a primeira quinzena de agosto, porque os alunos não conseguem chegar até à escola nesse período. “Os igarapés estão transbordando e nós não queremos correr o risco que aconteça algo aos estudantes ou aos professores”.
Falta iniciativa política para mudar essa realidade. “Não mudou nada porque o poder público, o governo do estado não melhorou as pontes, não fez as estradas. A única coisa que nos atenderam depois que o vídeo circulou nas redes sociais, foi que ganhamos uma impressora. Assim, temos uma impressora que pode reproduzir as atividades na própria escola e também atender os nossos alunos”. A escola atende cerca de 88 estudantes de cinco comunidades indígenas: Matiri,Cachoeirinha, Japó, Nova Canaã e Sucubeira.
Quando a foto viralizou, a falta de impressora e energia 24 horas para imprimir as atividades remotas, fez com que Telmo e mais cinco professores percorressem frequentemente um trajeto de cerca de 30 km de moto, bicicleta e a pé, em meio a igarapés cheios e estradas de chão inundadas.
Desafios da educação na TI Raposa Serra do Sol
Ao comentar quais são os principais desafios para garantir que crianças e adolescentes indígenas tenham acesso à educação, Telmo Makuxi destaca que “os desafios foram e são até hoje, o comprometimento do governo do estado com a educação escolar indígena”.
Ainda que a comunicação institucional destaque um ou outro benefício, como apoio com material didático – item essencial -, é preciso investimento em infraestrutura.
“Ainda que muitas ostentem o nome do governo, como escola estadual, muitas foram construídas pela comunidade. Eu sempre tenho dito que a escola deveria ser escola da comunidade e não escola estadual do governo”, desabafa.
Telmo relata que é motivo de muito temor às comunidades, que o garimpo siga avançando sobre o território. Ele se preocupa com o futuro dos jovens.
“Nós precisamos que o governo brasileiro procure fazer aquilo que está escrito na Constituição Federal, que é defender, proteger e fiscalizar as terras indígenas. Depois de homologada, nós precisamos que ela seja fiscalizada para que outras pessoas não venham invadir as nossas terras, porque elas estão ocupadas de uma forma que não tem mais espaço”, desabafa. Vale ressaltar, os territórios ocupados pelos povos originários do Brasil funcionam como um escudo contra o desmatamento e reservatórios de CO2.
“Nós precisamos que ela continue da forma que está, sem invasores porque causa muitos problemas. E nos últimos meses nós estamos tendo problema com a questão dos garimpos ilegais, onde entram pessoas que não são autorizadas e aí levam consigo vários problemas para as comunidades. Através dela a nossa juventude acaba se perdendo, como nós estamos ouvindo e vendo na rede nacional e nos meios de comunicação. O garimpo nunca traz benefício”.
Pela ausência do estado na proteção dos territórios, Telmo diz que os indígenas precisam resistir e protegê-los eles mesmos. “Nós queremos que a nossa terra continue sendo fiscalizada, mesmo que o governo federal não faça isso, mas os povos indígenas estão fazendo. E, muitas das vezes quando os povos indígenas querem fiscalizar suas terras, o governo do estado e os órgãos parlamentares não são de acordo que nós mesmos fiscalizando nossas áreas, nossos territórios, e isso é um dos problemas que nós temos enfrentado, mas nós não vamos desistir, nós vamos continuar reivindicando e fazer com que pessoas respeitem as nossas áreas assim como nós respeitamos as áreas deles”.
Ele também espera que as comunidades indígenas sejam consideradas na formulação de políticas públicas.
“Eu só espero que toda nossa atividade, nossa luta, venha a ser de fato reconhecida pela sociedade brasileira. Que a gente também seja contemplado com políticas públicas de educação, uma política de saúde, uma política de território, uma política verdadeira e não uma politicagem como se vê hoje. E que façam emprego correto dos recursos, para que a gente também possa sonhar com um futuro promissor para a nossa juventude, para os nossos filhos e nossos netos”.
Biografia do professor, ativista e liderança indígena
Em 01 de dezembro de 1972, nascia uma das personalidades mais importantes da Educação Escolar Indígena em Roraima, o líder Telmo Ribeiro Paulino, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, pertencente ao povo indígena Makuxi, filho de pajé e parteira. Telmo Makuxi foi alfabetizado na época das palmatórias, e, aos 12 ou 13 anos atuou como agente indígena de saúde em sua comunidade, levando-o a auxiliar de enfermagem no antigo Hospital Coronel Mota em 1991.
No ano de 1993, com apenas 18 anos, se voluntariou ao primeiro trabalho como professor na escola estadual Bernardo Sayão, comunidade Maracanã no município de Uiramutã.
“Eu comecei a trabalhar na educação em 1993. O estado não tinha professores, não tinha indígenas com formação, pelo menos com ensino fundamental. Então, foi o momento em que o estado procurou pessoas que estavam estudando, pra poder exercer essa função de professor”.
A partir da sua luta por uma educação de qualidade, o professor logo se destacou e em 2007 foi eleito coordenador do Conselho de Professores Indígena da Amazônia – COPIAM. No mesmo período foi membro da Coordenação Geral das escolas indígenas – CGEEI-MEC, passando para o Conselho Nacional de Educação Escolar Indigena – CNEEI. Já em 2011 e 2012, foi eleito como Coordenador Estadual da Organização de Professores Indígenas de Roraima – OPIR.
“No Conselho dos Professores Indígena da Amazônia, eu tinha o papel de articular na Amazônia brasileira, verificar como anda a educação escolar indígena e de que forma os municípios, estados estavam trabalhando, de que forma estava sendo atendida. Pra que a gente pudesse levar essa demanda ao Governo Federal, ao Conselho Nacional de Educação, dizer que nós precisamos de fato que aconteça o que nós discutimos muito, o que o governo coloca nas suas propagandas, que educação é prioridade. Após isso, estive na OPIR, que também defende uma política de educação escolar indígena, onde foi implementadas várias conquistas da organização, não só na minha gestão mas na gestão de vários outros professores que me antecederam. O objetivo sempre foi defender a educação escolar indígena de qualidade para o nosso povo”.
Atualmente o professor atua como gerente de projetos pedagógicos no Centro Estadual de Formação dos Profissionais da Educação de Roraima – CEFORR, indicação do movimento indígena de Roraima.
Educação Escolar Indígena em Roraima
O professor indígena ajuda a entender os desafios da educação escolar indígena. “Ela é um complemento daquilo que nós chamamos e conhecemos como educação indígena. É aquilo que a educação indígena não trabalha lá na sua base, na sua comunidade, lá na sua família. Ela (EEI), busca fazer com que a escola em si faça o ensino da língua e da questão cultural”, descreve o professor.
Em Roraima, a história da Educação Escolar Indígena – EEI se confunde com a da Igreja Católica, pois ambas tiveram missões religiosas como ponto de partida. Afinal de contas, não teriam como catequizar os indígenas sem que fossem alfabetizados em português, e, se possível, abandonando suas línguas maternas.
Através da análise intercultural de Maria Auxiliadora de Souza Melo (2000), a história da EEI em Roraima iniciou no ano de 1909, a partir da instalação de escolas pelos missionários beneditinos, a ação recebeu o nome de Missão Surumu. Além disso, houve também a criação do internato da fazenda nacional São Marcos, desenvolvido pelo Serviço de Proteção aos Índios – SPI, para que os indígenas servissem de mão-de-obra. Tais ações duraram até o ano de 1948, quando houve a instalação da Missão Consolata, que adotou maneiras diferentes de ensino, levando em conta as primeiras iniciativas sem sucesso de seus antecessores, com o tempo passaram a incentivar a formação de indígenas para que retomassem as escolas já instaladas.
“A educação escolar indígena em Roraima surgiu por uma necessidade, nos anos anteriores as comunidades eram atendidas com escolas e professores dentro de fazendas. Houve uma caminhada muito grande, uma necessidade grande de se criar escolas dentro de comunidades, mas pra criar escolas precisavam ter indígenas com formação. Então, as nossas lideranças apesar de, na época analfabetos, foram sábios em começar a discutir aquilo que eles queriam como educação indígena, que respeitassem os seus direitos e a escola ensinasse a sua língua, começaram a discutir e apresentar proposta pro governo”, relata o professor Telmo Makuxi.
Já a partir da década de 1970, quando o movimento indígena ganhava força na reivindicação de direitos, a EEI passou por diversos desafios e conquistas na luta pela sua autonomia, mais precisamente, do sonho de uma educação indígena específica, diferenciada, bilíngue, multilíngue e administrada por indígenas.
“A cada ano que passava havia uma pressão e aos poucos foram tendo essa conquista de ter escolas na comunidade, de ter professores indígenas na comunidade, de conseguir fazer com que os indígenas fizessem cursos de formação, no ensino médio profissionalizante que é o magistério, e aí foram avançando, o movimento foi avançando em relação a isso. Então a educação indígena tem várias conquistas não foi porque os governos deram aos povos indígenas mas foi uma luta imensa de povos indígenas, e, o governo se sentindo pressionado, vendo que eles tinham direito garantido na legislação, na constituição, na LDB, tiveram que atender”.
Telmo encerrou a sua participação com uma mensagem. “Se não houver respeito, a sociedade nunca vai conseguir compreender, nunca vai conseguir respeitar nenhum tipo de sociedade, nenhum tipo de povo. Então que todos possam ter esse respeito e que possa de fato estar juntos, independente de cor ou raça, mas que somem para que ambos os lados possam se ajudar, buscar defender os nossos direitos coletivos como brasileiros”, diz o heroico professor e guardião da Amazônia.
Fontes: Metamorfose do saber Macuxi/Wapichana, de Maria Auxiliadora de Souza Melo e G1 Roraima