Conheça João Maia, o único fotógrafo cego a cobrir uma Paralimpíada
João Maia está nos seus 3º Jogos Paralímpicos e apresenta sua exposição fotográfica itinerante em SP até 08/09.
Por Paty Zupo, para Cobertura Colaborativa Paris 2024
Prestes a embarcar para Paris, o fotógrafo João Maia concedeu uma entrevista especial à Mídia Ninja/NEC, onde compartilhou sua trajetória e falou sobre respeito, inclusão e expectativas para as Paralimpíadas. João também convidou os leitores para sua exposição fotográfica “Fotografia Cega”, inaugurada no último dia 15 e aberta até 08 de setembro, com entrada gratuita, na Unibes Cultural, Rua Oscar Freire, 2.500 (estação metrô Sumaré – Linha 2-Verde).
Durante os Jogos, haverá outra exibição de fotos no Instituto Louis Braille, com imagens escolhidas pelos alunos da Escola de Economia de Sorbonne sob a orientação de Felipe Pimenta (@meolympian). Quem estiver por lá, não perca a visita!
Entrevista com João Maia
O que te move a fotografar?
Minha vida mudou totalmente através do esporte. Nunca havia feito atividade física quando enxergava, e foi aos 33 anos, após minha visão se comprometer, que comecei a praticar esportes. Com isso, consegui uma bolsa para a universidade, fiz novos amigos e viajei pelo Brasil. Cheguei à seletiva do Circuito Caixa Paralímpico; não fui um atleta de alto rendimento, mas fui um atleta. O que me move a fotografar é a oportunidade de registrar atletas que são invisíveis no dia a dia. Fotografar é dar visibilidade e inspirar crianças, mostrando que, mesmo com deficiência, é possível ser um atleta de alto nível.
Ao fotografar paratletas, sinto que estou no meu lugar: o de fotógrafo. Minha fotografia é uma crônica visual, capturando momentos efêmeros e compartilhando emoções, sons e toques. Para a sociedade, ver precede o ato de fotografar, mas a imagem que paralisa é determinada pela percepção e sentimento.
Capacitismo
Em nossa conversa, João Maia abordou o uso comum do termo “superação” quando se refere a pessoas com deficiência (PCD). Ele destacou a importância de entender que tais expressões podem ser problemáticas. João explicou:
“Não somos coitados nem super-heróis; somos seres humanos com defeitos e qualidades. Assim como qualquer outra pessoa, uma pessoa com deficiência pode ter falhas ou se tornar um criminoso. A sociedade precisa compreender que não somos diferentes, apenas temos limitações, assim como todos têm. Essas limitações não nos impedem de trabalhar, ser felizes ou praticar atividades como a fotografia. O que me motiva a fotografar é levantar a bandeira da inclusão e do respeito, além de mostrar a importância do esporte paralímpico não apenas para os atletas com deficiência, mas para todos. Quero inspirar crianças, mostrando que, assim como aqueles atletas, elas também podem alcançar seus sonhos e ser o que quiserem.”
Ele prosseguiu falando sobre o desconforto com a palavra “superação”:
“Esse termo incomoda muito quem tem deficiência. Ele transmite a ideia de que somos super-heróis, como se o simples fato de sair de casa ou pegar um ônibus fosse uma grande conquista. Quando digo que moro sozinho, lavo o banheiro, varro a casa e preparo comida, e as pessoas respondem com ‘nossa, que superação!’, eu fico incomodado. Para mim, essas são atividades normais. Viajar para o Chile sozinho para dar uma palestra, por exemplo, não é superação, é apenas uma experiência comum. A palavra ‘superação’ é mal utilizada e muitas vezes reforça uma visão errada sobre a vida das pessoas com deficiência.”
Sobre sua trajetória na fotografia, João contou que seu interesse começou na adolescência, nos anos 90. Ele teve contato com fotógrafos locais que tiravam fotos em preto e branco e revelavam imagens em pequenos laboratórios. A fotografia era um verdadeiro tesouro na época, capturada em momentos especiais como formaturas e comunhões.
“Eu sempre me interessei por fotografia. Meu irmão me deu uma câmera de plástico com filme de 12, 24 ou 36 exposições. Era uma época de grande expectativa, pois esperar a revelação das fotos poderia levar 20 ou 30 dias. Quando comecei a estudar fotografia, aprendi sobre ISO, abertura e diafragma, e compreendi o que era realmente a fotografia.”
João explicou que, apesar de não ter condições de adquirir uma câmera profissional na época, ele se dedicou a aprender com manuais e a fotografar eventos familiares. Quando se mudou para São Paulo no final de 1995, comprou sua primeira câmera e começou a fotografar de maneira mais séria, inclusive realizando cursos livres de Fotografia.
“Quando me tornei uma pessoa com deficiência, eu já sabia fotografar, mas busquei garantir meu diploma com uma pós-graduação em Fotografia. Isso é importante, pois hoje, quando sou apresentado em palestras, sou mencionado como ‘João Maia, pós-graduado em Fotografia’. O processo foi lento, começando com a aceitação de minha nova condição e continuando com a prática da fotografia.”
João finalizou falando sobre sua atuação no esporte paralímpico, lembrando de uma experiência marcante. “Comecei a fotografar meus colegas em competições e fui a todas que pude até conseguir uma credencial para estar nas pistas. Participei do projeto SUPERAÇÃO, no ginásio de esportes do Ibirapuera, onde fotografei ao lado de Victor Young, outro colega com deficiência. Eu sou o único fotógrafo cego no mundo, e tenho muito orgulho disso.”
O Convite
João Maia, o caçula de uma família de dez filhos, enfrentou desafios desde a infância. Nascido em Bom Jesus do Piauí, ele se destaca como artista negro e cego, desafiando convenções. Mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades e trabalhou como carteiro na capital paulista. Aos 28 anos, recebeu o diagnóstico de uveíte bilateral, que resultou em cegueira total em um dos olhos e visão reduzida a apenas 15 cm de luminosidade no outro.
Sua reabilitação ocorreu através do esporte, onde conquistou medalhas como corredor em competições importantes, como os Jogos Regionais e seletivas Paralímpicas. Patrocinado como atleta, João entrou em contato com o Movimento Paralímpico, onde encontrou uma nova paixão: a fotografia. Ele descreve o momento em que percebeu seu verdadeiro lugar no mundo:
“Foi um momento de realização. Estava fotografando e percebi que estava entre meus amigos atletas, no ambiente que eu sempre quis estar. Eu sentia que tinha potencial ali, mesmo quando parecia que fotografar estava longe do meu alcance. ‘É aqui que eu devo estar, este é meu lugar’, foi uma descoberta emocionante,” relatou João.
Ele compartilha uma experiência marcante em relação à sua fotografia:
“Estava fotografando e a reação das pessoas ao ver minha bengala, meu cartão de visita, era sempre de surpresa. Lembro de um episódio engraçado em que tive que alugar uma lente. Tive receio de que não me alugassem a lente por achar que eu poderia derrubá-la por ser cego. Quando finalmente consegui, o dono da locadora ficou impressionado com minhas fotos e me convidou para ir ao Rio. Fui para os Jogos do Rio 2016, conheci a jornalista Luciane Tonon, que na época trabalhava no Guia do Deficiente. Ela me entrevistou, e nossa amizade cresceu desde então. Quando surgiu a chance de ir para Tóquio, convidei-a e ela aceitou. Juntos, conseguimos patrocínio da Fundação Dorina Nowill, da qual sou conselheiro. Em Paris, estarei como embaixador da fundação. Luciane idealizou o projeto ‘4 sentidos e uma visão’, que realizará exposições itinerantes e acessíveis das minhas fotografias durante as Paralimpíadas. O Centro de Apoio ao Deficiente Visual (Cadevi) transmitirá muitos eventos com audiodescrição em seu canal de rádio web.”
Sobre a conciliação entre a fotografia e a torcida, João explicou:
“Eu tenho muitos amigos competindo, então é muito emocionante, mas preciso manter uma postura profissional. Existe um protocolo e sempre há alguém observando. Eu torço, mas de forma contida. Entre as modalidades, tenho uma preferência especial pelo Atletismo e por todos os esportes que envolvem deficientes visuais.”
Divisão de Modalidades para Fotografia
João Maia detalhou a organização da cobertura fotográfica durante os eventos:
“Luciane está coordenando uma planilha para todos os locais que vou cobrir. Para alguns esportes muito populares, há um sorteio para a designação dos fotógrafos. Na natação, por exemplo, a cobertura segue a ordem de chegada, exceto nas finais, que também são definidas por sorteio. Fotógrafos das grandes agências, como a France Press (FP), têm acesso aos melhores locais, enquanto fotógrafos independentes ficam em posições menos privilegiadas, os chamados ‘poleiros’. As grandes agências são vistas como fontes de notícias para o mundo todo, o que influencia a alocação dos espaços. Dada a intensidade da cobertura, é mais eficiente passar o dia inteiro em um único evento esportivo devido ao tempo significativo gasto em deslocamentos. Quando possível, é mais vantajoso se concentrar em um evento específico, a não ser que seja uma partida única, como um jogo de Goalball do Brasil, que permite a flexibilidade para cobrir outra modalidade.”
Logística e Chegada em Paris
Sobre a logística da viagem e o planejamento ao chegar em Paris, João compartilhou:
“Viajo para Paris em um voo direto a partir de São Paulo, acompanhando o presidente da Fundação e sua esposa. Ao chegar, encontrarei minha equipe e pegaremos as credenciais pessoalmente, em vez de recebê-las no Brasil. Receberemos crachás oficiais com QR code, coletes e outros brindes. A organização é altamente eficiente. Teremos vale-transporte e, no Japão, por exemplo, até recebemos vouchers de táxi. O colete de imprensa garante um tratamento adequado. Cada país organizador define suas próprias regras, e a logística é meticulosa, com uma equipe de voluntários animada. Ao chegar em Paris, pretendo me integrar à comunidade local e procurar nordestinos para compartilhar rapaduras que trouxe especialmente para eles. Vamos nos hospedar em um Airbnb, pois os preços dos hotéis estavam muito altos. Optamos por esta alternativa para maior conforto, permitindo preparar nossas próprias refeições e fazer café. Os custos aumentam consideravelmente durante grandes eventos. Nossa equipe, composta por seis pessoas – três fotógrafos e três jornalistas – enfrentará a barreira linguística com a ajuda de um tradutor eletrônico, que pretendo comprar na 25 de Março, em São Paulo.”
Fotografando
João Maia se inspira no fotógrafo cego esloveno Evgen Bavcar, que, assim como ele, perdeu a visão na infância e se tornou referência na fotografia. Bavcar, conhecido por suas obras em alto contraste preto e branco, usou grandes holofotes para ajudar a controlar o foco e a distância de seus objetos. Seu trabalho explora as distâncias físicas e metafóricas entre ele e suas imagens, como ele explica em uma entrevista à revista Trópico.
João também aborda sua prática fotográfica com uma perspectiva poética, citando Clarice Lispector:
“Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida” (Um sopro de vida, 1978).
“Quando chegamos ao estande de credenciamento da Canon, podemos escolher o equipamento que quisermos, emprestado. Em Tóquio, a Canon lançou a R5 e a R6, e este ano deve lançar uma nova câmera. Eu escolhi a 1Dx Mark II, uma câmera excelente para jornalistas. Levo meus próprios equipamentos, mas sempre pego algo emprestado. Sou bem conhecido na Canon e faço muitas amizades. Andar com uma câmera e uma bengala atrai a atenção das pessoas, e frequentemente dou entrevistas nos bastidores”, conta João.
Sobre seu assistente, Marcelo Magushi, João esclarece:
“Marcelo não poderá me acompanhar desta vez devido ao novo trabalho no serviço público. Meu novo assistente não é fotógrafo, então frequentemente peço ajuda a outros profissionais para ajustar o equipamento. A camaradagem entre os fotógrafos é grande, e todos são muito solícitos.”
A Exposição Fotográfica
No final de julho, João Maia participou do programa “Domingão com Huck” da Rede Globo com Marcelo Magushi. O objetivo era arrecadar fundos para futuros projetos, incluindo sua exposição itinerante. João destaca: “Meu sonho sempre foi ter uma exposição. Fui convidado para participar da exposição ‘20 anos extraordinários da Caixa Econômica, patrocinadora oficial do movimento paralímpico.”
Além dos custos da exposição “4 sentidos 1 visão”, os fundos serão utilizados para oficinas sensoriais, palestras educativas e o lançamento de uma autobiografia. O objetivo é promover a inclusão, valorizar o esporte paralímpico e sensibilizar a sociedade sobre diferentes formas de percepção e interação com o mundo.
Para colaborar, acesse: https://benfeitoria.com/projeto/fotografiacega ou faça um PIX para João Maia pelo celular 11 982564769 em nome de fotografia cega.
João conclui convidando todos para visitar a exposição, que ficará aberta até 08/09/2024, e para assistir aos Jogos Paralímpicos.
“Estou feliz por dar esta entrevista e espero que ela ajude a ampliar a divulgação do esporte. Agradeço a você e à Mídia Ninja. Estou animado e confiante de que nosso trabalho terá grande impacto.”
João Maia já está em Paris, e convido todos a acompanhar seu trabalho e seguir suas redes sociais (@fotografiacega_). Agradecemos a João e desejamos sucesso na cobertura dos Jogos e na exposição.