Conheça Icá Iuori, voz preta e queer que está redesenhando o cinema brasileiro
Artista transforma o audiovisual em um espaço de afeto, resistência e reimaginação de novas narrativas
Por Christina Gonçalves
Icá Iuori é natural da capital de São Paulo. É cineasta, ator, arte-educadore, artista da cena e comunicadore. Cresceu em um bairro extremamente comercial; a maioria das atividades de lazer que encontrava era jogar videogame, assistir TV e ir ao cinema. Por conta disso, o audiovisual entrou na sua vida como uma forma muito forte de lazer. “Eu era um consumidor ávido. Lembro de, na adolescência, ter épocas em que eu ia ao cinema todo dia depois da escola. O vício era tanto que eu via o catálogo completo da semana, além de bolar esquemas mirabolantes para entrar por trás, já que o dinheiro que meus pais me davam só dava para pagar uma ou duas sessões”, conta.
Aos 16 anos, entrou na escola de teatro e fez seu primeiro curso de cinema, que abriuram suas primeiras portas profissionais. Desde então, não parou mais. Fez peças de teatro, dança, performances, documentários amadores, atuou em curtas e séries. Passou também a trabalhar por trás das câmeras nas áreas de roteiro, direção, produção e edição. O cineasta ressalta que, em paralelo ao trabalho, o estudo abriu caminhos. Formade em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, tem mestrado em Cinema de Ficção pela Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba, além de formações diversas em teatro, dança e cinema ao longo de sua trajetória. Hoje, é co-fundadore da Madrugada Filmes, produtora que atua em São Paulo desde 2020, e trabalha em programas de internacionalização do cinema na APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro).
Para o artista, o curta-metragem “Semana que vem, te prometo Palmares!” foi um grande divisor de águas em sua carreira. É um curta de ficção científica que conta a história do dia em que Zumbi e Dandara dos Palmares viajam no tempo e reencarnam nos corpos de um jovem casal negro dos dias atuais.
“A passagem desse curta pela New Filmmakers Los Angeles em 2023 me marcou muito, por ter sido minha primeira vez em Hollywood por meio de um trabalho meu no audiovisual. Eu lembro que, na época, isso aumentou muito minha autoestima enquanto criadore”, continua.
O comunicadore destaca que, seja qual for a indústria — de alimentos ou cinematográfica — os desafios são estruturais e variam de acordo com classe, raça, gênero, sexualidade e território de origem da pessoa. “Eu sinto que, no início, tive dificuldades e falta de autoestima para me colocar nas funções que desejava desempenhar, como roteiro e direção, e acabei ficando com o que sobrava e que ninguém queria fazer.” Isso deixou uma marca grande em Icá.
“Se eu não me colocar e me posicionar, estou dando espaço para que outros me coloquem no lugar que acham que eu mereço. E, infelizmente, na nossa sociedade, pessoas como eu não podem ter seu valor dado por terceiros, porque a regra dentro do status quo é que pessoas como eu merecem migalhas”, completa.
Icá só voltou a trabalhar com roteiro, direção e produção cinco anos depois, ao co-fundar a própria produtora. “Eu reconheço que isso só foi possível porque, durante esses cinco anos, segui criando uma autoestima enquanto artista e criador; e, de fato, quem me deu isso foi o teatro e minha experiência com o grupo coletivA Ocupação”, relata.
Para o artista, ocupar espaços de liderança no audiovisual foi um processo longo de autoestima e amor próprio, construído através de muito estudo de produções intelectuais e artísticas de pessoas que pensam identidades racializadas e identidades queer. Foi através desse processo que começou a ficcionalizar e teorizar sobre sua própria experiência, para então conseguir se amar. Para Icá, o autoamor é um ato coletivo.
“Estar na Madrugada Filmes, que é uma produtora composta de pessoas pretas e queer como eu, é literalmente transformar esse ato coletivo em estrutura para contar histórias”, relata.
Criar a Madrugada o libertou de esperar que grandes produtoras o notassem. “Estar na Madrugada era estar com cineastas que reconheciam meu valor, sem levar em conta nepotismo ou conta bancária”, completa.
Com a produtora, Icá conta que pôde criar um sistema próprio de validação, que até hoje o deixa livre para criar, independentemente de como o mercado o enxerga.
O comunicadore diz que representatividade é uma armadilha, uma ilusão. “Quando contamos histórias, estamos lidando com matéria humana. A humanidade é sobre variação. A nossa perfeição está em não sermos iguais”, diz.
Por isso, acredita que o que existe de fato é identificação — uma arma poderosíssima que, quando usada de forma consciente, pode construir imaginários e transformar pessoas.
Segundo Icá, a luta para que mais pessoas racializadas e queers protagonizem filmes, dirijam, roteirizem, produzam, filmem e editem não pode estar ligada apenas à representatividade. “Falar que eu quero que tenham mais diretores negros para que eu me sinta representade nos filmes deles soa egoísta e até idealista. Pelo contrário, é capaz que eu vá ver o filme de diretores negros e não me sinta representade por nenhum deles”, comenta.
Mas o ator acredita que, de maneira geral, quando se fala desses direitos, as pessoas se apegam muito ao discurso da representatividade porque ele é mais palatável e fácil de articular do que discussões baseadas em leis, direitos constitucionais e dados estatísticos sobre a economia nacional e sobre grupos marginalizados. Por isso, acredita que é preciso focar menos em postos criados para representatividade e mais em carteiras de trabalho assinadas, escalas de trabalho humanizadas e relações de trabalho menos coloniais.
Projetos futuros
Icá Iuori contou que está desenvolvendo alguns projetos de coprodução entre Brasil e Estados Unidos, nos quais busca falar sobre comunidades latinas e afro-diaspóricas. Também está com projetos voltados para a indústria de filmes verticais. “Eu acredito que a inovação é algo que se faz no dia a dia, e que é importantíssimo abraçarmos como forma de transformação da indústria”, diz.
Para finalizar, o multiartista fez questão de deixar três conselhos:
O primeiro é estudar: “Não importa se você vai fazer uma faculdade, um curso técnico, um curso online, ou se vai ler um livro, sei lá, mas estudar é muito importante. Para mim, o conhecimento é o primeiro passo para qualquer tipo de libertação.”
O segundo conselho é não ter vergonha ou medo de tentar: “Criar é errar. Então, esquece qualquer ideia de perfeccionismo ou cenário ideal para começar a criar. Crie o que você puder, com o que você tem.”
No terceiro e último conselho, parafraseou uma frase de Maria Thaís Lima, professora de teatro: “Você pode até seguir sozinho, mas em grupo você vai mais longe.” É aquela história do peixe que nada bem sozinho, mas que, no cardume, pode cruzar o oceano. “Cinema é uma arte coletiva. Então, ter humildade, saber abrir mão, ter escuta e estar aberto durante o período de criação é algo muito valioso”, finaliza.



