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Conheça Gabriel Faryas, ator de ‘Ato Noturno’, filme selecionado para o 75º Festival de Berlim
Longa estreia mundialmente nesta quinta-feira (13), integrando a Mostra Panorama, dentro do importante evento alemão
Por Laura Süssekind
“Ato Noturno” estreia no 75º Festival de Cinema de Berlim trazendo Gabriel Faryas, um artista que, desde os palcos de Porto Alegre, marca com sua performance. Em entrevista exclusiva, ele revela como sua formação teatral e parcerias criativas se fundiram para construir personagens intensos e reais, abrindo caminho para uma trajetória que chega ao cenário internacional.
O filme, dirigido por Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, estreia no festival europeu nesta quinta-feira, dia 13. Com uma visão que transita entre o corpo e a alma, Gabriel compartilha como a experimentação, as parcerias criativas e o autoconhecimento se transformaram em combustível para dar vida a personagens intensos e reais. Segundo o ator, tais pontos contribuíram para que “Ato Noturno” fosse uma obra singular, pronta para conquistar até o público internacional e reafirmando a força do cinema brasileiro no cenário mundial mais uma vez.
Cine NINJA: Você se formou em Teatro pela UFRGS e tem forte ligação com a cena teatral de Porto Alegre. Como essa formação e experiência influenciaram sua atuação no cinema?
Gabriel Faryas: No teatro há um trabalho de expansão dos nossos sentimentos, para que eles cheguem até a pessoa da última fileira da plateia. No cinema, essa energia toda se mantém, porém de maneira bem mais internalizada na grande maioria dos trabalhos. Sinto que esse caminho que você vai desenvolvendo no teatro (de uma entrega mais corporalizada, expansiva) potencializa a presença diante da câmera (que é mais ebulitiva). Na própria faculdade, tive professores que exercitavam a atuação para essas diferentes linguagens. É um trabalho magistral realizado por muitos professores do Teatro da UFRGS, pois alguns se atentam à realidade do mercado e acabam exercitando atuações tanto para teatro quanto para cinema ao longo da formação. Tudo isso em uma universidade pública de muita qualidade formativa e em um prédio que passa longe de ter as condições mínimas para todos possam pesquisar arte ali dentro. Foram seis anos de uma forte formação, criativa e bastante exigente.
E sobre trabalho técnico, de construção de personagem pro teatro, de desenvolvimento da presença cênica e de tudo mais que envolve a criação de um espetáculo… Passei por diretoras e diretores excelentes da cidade de Porto Alegre na minha trajetória. Brinco entre colegas-amigos-artistas que me sinto na obrigação de sempre fazer um trabalho ótimo, exatamente por ter tido a oportunidade de trabalhar com Roberto Oliveira, Elisa Heidrich, Inês Marocco, Celina Alcântara, Thiago Pirajira e agora mais recentemente Filipe e Márcio, enfim, profissionais com experiências distintas mas que me confiaram muitos saberes, técnicas, modos de criar que me formam hoje como artista.
CN: Você cofundou a Espiralar Encruza e já trabalhou com diferentes grupos teatrais. Como essas colaborações impactaram sua construção como artista?
GF: Aos poucos fui me experimentando com alguns professores, me interessando por seus interesses.. Fui encontrando outras pessoas que se interessam pelo meu modo de criar. E assim, desde princípios de minha adolescência, venho fazendo parcerias – algumas mais duradouras e outras mais esporádicas – com grupos da cidade e nesse trânsito me fazendo gente e me fazendo artista também.
A Espiralar Encruza é considerada uma rede exatamente por ser composta por pessoas que já estavam próximas, colaborando com projetos entre si, dentro e fora da faculdade de teatro. Ela exemplifica bem esse modo transitório pelo qual minha formação como artista se dá. Por ela criamos performances, filmes, peças teatrais, enfim, exemplifica muito bem essa necessidade de sempre oxigenar as ideias, ir de um lado pro outro, perceber de outra perspectiva o mesmo fazer, voltar… Uma rede sustenta pessoas, ideias, projetos, trabalhos, muito do que quisermos, etc. E sempre trançada pelo ar, pelo espaço. Essa imagem da criação como uma rede me contempla. Põem em metáfora aquilo que preciso fazer para criar, põem em imagem o meu método de trabalho e também do espaço ao qual sou cofundador.
CN: Em relação ao seu espetáculo solo “Corpocidade”, como foi o desafio de apresentar um espetáculo solo? Você teve alguma inspiração específica nesse processo?
GF: A minha inspiração central para a criação deste espetáculo foi a vida mundana e como ela possui acontecimentos minúsculos e ao mesmo tempo arrebatadores. Desejava — e assim foi feito — criar um espetáculo sobre a perda de um objeto simples porém imensamente importante para o Guilherme, personagem principal da narrativa. Eu desejava criar um grande espetáculo sobre algo pequeno, encontrar o delicado e o monstruoso em uma peça de teatro, assim como são nossas cidades.
Por se tratar de um espetáculo onde o ator protagonista ou é o idealizador do projeto, ou seja, o discurso central da obra surgia de mim, foi impossível que muitos elementos conceituais não fossem criados por mim ou em parceria comigo. Isso demanda uma energia criativa, acredite, muito gostosa e muito cansativa. E também exercita algo muito lindo de se perceber: como as outras pessoas envolvidas no projeto alimentavam a ideia primária. O espetáculo foi ganhando corpo ao passo que o conceito sentar irradiado de mim ia ganhando outras pessoas, sobretudo meu querido diretor, Thiago Pirajira, que muita sabiamente ia alimentando de significado as imagens que geramos.
Um desafio bem mais difícil de superar foi o que aconteceu com a própria cidade/estado onde o espetáculo ia estrear. As enchentes aqui no RS começaram bem quando iniciariam os ensaios do solo. Eu estava fora do RS e assim fiquei por mais duas semanas – fazendo outras apresentações no nordeste e me hospedando na casa de um amigo em SC – antes de conseguir entrar de volta em Porto Alegre e começar a agilizar o que podia para ajudar as pessoas e me manter seguro. Eu tive que começar a trabalhar sozinho para que quando a equipe se agregasse eu já tivesse material concreto para nos debruçarmos. Era a solução possível, muitas das pessoas da equipe estavam literalmente secando suas casas. E aí encontrei outro desafio muito grande: trabalhar na sala de ensaio sozinho. Há uma parte essencial do trabalho de atores que se dá em solitude, no trabalho consigo, entendendo seus sentidos para aquilo tudo, porém chega um momento que você fica quase que gritando com as paredes para que seu som ressoe, retorne, tamanha é a falta que faz um olhar de fora, uma direção, um sonoplasta, uma produtora, uma cenógrafa, uma figurinista, uma iluminadora, uma pessoa. Foi quando o teatro começou a nascer, sinto eu, quando meu corpo começou a sentir falta de outros corpos ali para seguir criando.
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CN: “Ato Noturno” tem elementos de suspense erótico e discute identidade e performance. Como foi construir o Matias; dar vida a um personagem tão intenso?
GF: Foi um presente, quase que literalmente, pois o primeiro dia de gravação foi o dia do meu aniversário de 24 anos. Mas para além das coincidências, que foram inúmeras, posso compartilhar que o personagem é indiscutivelmente interessante. Me lembro de pessoas da equipe adorarem e não suportarem o Matias. Isso é fantástico. Ele possui a capacidade de ser leve em situações arriscadas para ele e também em ir com unhas e dentes para defender os seus. Tem fragilidades visíveis ao mesmo tempo que demonstra uma determinação invejável. É um dos personagens mais interessantes que já interpretei, de fato!
Um personagem que soma ao discurso central do filme, discurso esse que compactua muito com o que eu, Gabriel, acredito pro mundo. É tão raro atuarmos em um projeto que fomos convidados e termos total, total, total afinidade discursiva. Pois muitas vezes, como atores, temos a maleabilidade de camaleões em encontrarmos sentido em projetos que não nos identificamos muito. E tudo bem. Essa é a nossa profissão: inventar pontos de conexão. Mas quando temos um personagem rico para experimentarmos variadas intenções e tons, ao passo que você vai construindo uma obra que compactua, que corrobora, que soma ao que você acredita para o mundo.
CN: O filme lida com questões sobre desejo, repressão e a necessidade de se adaptar às expectativas sociais. Como você se conectou com essas camadas do personagem?
GF: Percebo que há a tendência de artistas, aos quais eu me incluo, que por motivos mercadológicos ou sinceros, desejarem fortemente a validação dos outros. Matias me fez acessar essa parte de mim. Em certo momento do filme, essa sensação, essa preocupação, vinha forte pra minha performance no set, pois o Matias estava assim. Estava nessa tensão interna que surge ao repararmos que às vezes o nosso desejo está na contramão do lado que estamos indo. Encontramos um ponto de contato entre eu e ele quase subcutâneo/subterrâneo. Quando a gente começa a acessar esses, digamos “defeitos”, que só falamos na terapia, é a primeira vez que você se dá conta que essa sua característica vai ajudar você a se conectar com o personagem e, com isso, encontrar a motivação que o personagem precisa. Seguir com os desejos do personagem a partir dessa fragilidade em comum. Para longe de uma certa romantização da dor ou da figura de guerreiros, sinto que o Matias me trouxe essa maneira astuta de lidar com esses pontos de tensão internos. Um personagem que nitidamente tinha seus pontos de fuga e sabia os acessar quando necessário.
E por se tratar de um suspense erótico, toda essa tensão (desejo – ação) que compunha o personagem ia se alastrando pelo set, de maneira não ingênua. Pois são características que dizem respeito a todos nós, em medidas diferentes. (…) Todos os personagens iam para lugares distintos ao longo da trama e até mesmo durante uma cena. Isso me fascinou no texto! E com isso, a relação com os outros atores ia se aprofundando muito também. Esse set foi um presente! Devido ao nosso trabalho intenso ao longo de 31 diárias criamos uma rede de amizades e parcerias que já perduraram de lá pra cá.
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CN: Houve algo no processo de filmagem, seja na direção, nos ensaios ou no set, que marcou particularmente sua experiência?
GF: Me lembro de após as gravações me sentir muito satisfeito em ter feito cenas com estados tão diferentes entre si. Com um amplo gráfico de atuação. Além disso, expandir seu corpo e seu repertório como ator também é simplesmente divertido. Matias exigiu uma grande versatilidade de sentidos na atuação exatamente por ser o protagonista da narrativa. Matias, assim como eu, é ator e então essa atmosfera do teatro, dos camarins, das cenas que aconteciam no palco e nesse backstage foram memoráveis. Camarim é lugar de muita confiança e confidências. Essa atmosfera, meio descolada e ao mesmo tempo intrínseca à realidade, dava uma vertigem interessante. A tensão entre alguns personagens era condensada num espaço minúsculo, isso tudo ia criando uma penumbra no set, nas cenas no teatro.
CN: Como foi trabalhar com Marcio Reolon e Filipe Matzembacher? A parceria deles trouxe algo novo para sua forma de atuar?
GF: Ambos diretores são professores, assim como eu. Tem esse lugar do pensamento que era fomentado até que o mesmo virava prática. Virava a cena. Isso me encantou muito. Várias das ideias, conceitos, técnicas que íamos esboçando pela palavra, tomavam corpo. Isso é fantástico demais de se realizar, dava uma sensação de total confiança.
Passar pelo trabalho com a dupla desse modo, protagonizando o longa, com certeza influenciou técnica e positivamente os trabalhos que tive logo em seguida, seja no teatro ou no cinema. E muito disso é ocasionado pelo fato do duo ser certeiro em suas colocações pro elenco. Tem uma delicadeza e força muito presentes nos direcionamentos deles para nossas performances. Uma delicadeza exatamente por saberem observar sutis possibilidades de interpretação de um gesto ou de uma micro reação, e com isso sugerirem um sentido inédito para nós todes ali em determinada cena, por exemplo.
E há também um outro elemento substancial no trabalho deles que é a força que ambos passam, esse apontamento que nos permite confiarmos e nos deixarmos arriscar, voltar, limpar, sujar a cena, enfim, viver ela. Para isso tivemos o cenário ideal: dedicação exclusiva para a gravação, construção de cenas com atores excelentes, todas as cenas carregadas de profundos sentidos criados em grupo, por mais que o texto já trouxesse tanto, havia um certo emaranhado de significâncias que o elenco era convidado a trazer para cena. Com isso, íamos lapidando cena por cena. Foi um trabalho artesanal, desses que tu vai fazendo e vai surgindo a fome. Digo que dava vontade de atuar assim: de boca cheia!
CN: O filme estreia no 75º Festival de Cinema de Berlim. O que essa seleção significa para você?
GF: Para mim significa permanência. “Ato Noturno” foi um dos doze primeiros filmes anunciados em todo o festival deste ano. Impulsionado também por outros filmes, isso evidencia que há uma permanência do Cinema Nacional no circuito internacional de filmes, e estamos falando de uma seleção que privilegia filmes com assinatura, com uma proposta relevante, autêntica. Isso revela que há uma permanência de um discurso vivo que mobiliza e interessa às pessoas. Significa que o desejo não está cem por cento pasteurizado. Significa que o que ferveu em mim durante as gravações vai ferver também em outras pessoas. Quero muito ver essa reação.
CN: Você já tem planos ou projetos futuros que pode compartilhar?
GF: Tenho sim e eles me empolgam. Um com certeza é escutar as reverberações do “Ato Noturno”, trocar sobre ele, encontrar os colegas de set. Outro plano que tenho é seguir com temporadas do meu espetáculo solo que conversamos anteriormente. Por fim, vou estrear com a rede Espiralar Encruza minha primeira direção no teatro. Vou dirigir o espetáculo “Molha”, também escrito por mim e criado especialmente para a Espiralar Encruza. Foi um texto escrito num momento de bastante concentração e, dois anos depois de seu primeiro tratamento, vamos iniciar o processo de criação. Além disso, possuo um set de gravação marcado e sigo fazendo testes, sempre em movimento. Estou contente como 2025 vem se desenhando.