Por Débora Anunciação

Aos 35 anos, Amanda Grimaldi consolida uma fase plural na carreira: atua na série “Raul Seixas: Eu Sou”, do Globoplay, movimenta a cena noturna com o duo Transpira e se lança na direção de filmes autorais pelo coletivo Lastikas.

Natural de Porto Alegre, Amanda estreou profissionalmente no teatro em 2013. Ganhou destaque com o longa “Macabro”, de Marcos Prado, que lhe rendeu a indicação como atriz coadjuvante em dois festivais. Também passou pelas novelas “Jesus” e “Gênesis”.

Amanda não vem de uma família com tradição nas artes, mas sempre foi incentivada pela família. Ela lembra com carinho das aulas de dança e de um ritual especial com a mãe: as visitas às videolocadoras nos fins de semana: “Habitei nesse universo das ficções e das narrativas desde muito cedo. Sempre gostei de histórias das pessoas, dos encontros, enfim, dos mistérios”, conta.

A curiosidade pela atuação surgiu aos 15 anos. Aos 16, ingressou em uma escola de teatro em Porto Alegre e, mais tarde, concluiu a graduação em atuação cênica na UniRio: “O teatro é quem me apresentou ao mundo. O teatro apresenta as possibilidades dos afetos, das paixões, das crises, e das emergências do mundo.”

“A gente cresce ouvindo que a gente tem que ser só uma coisa na vida.”

Mas Amanda não se prende a um único palco. Desde 2018, ela integra o duo feminino de DJs Transpira, ao lado de Camilla Molica – que também integra o elenco de “Raul Seixas: Eu Sou”, como uma das companheiras de Raul. Além de dividirem o comando da caixa de som, Amanda Grimaldi e Camilla Molica também dirigem juntas, sob a alcunha Lastikas. Atualmente, o duo está em processo de finalização de um filme para a “Yes I Am Jeans”, uma marca de jeans de São Paulo. 

“A gente cresce ouvindo que devemos seguir um único caminho e foi libertador me desvencilhar dessa ideia. Não sou menos atriz porque trabalho como DJ, não sou menos DJ porque sou diretora e também não sou menos diretora porque sou atriz”, afirma.

Na visão dela, as diferentes linguagens artísticas se entrelaçam de forma complementar. Ela conta que, quando surgiu a Transpira, ganhou também uma nova perspectiva sobre produção executiva, marketing, atendimento ao público e negociação. “Tudo isso me ajuda na minha carreira de atriz”, afirma. 

Ao mesmo tempo, a bagagem como atriz contribui para performances mais expressivas na discotecagem. “Transpira vai além da curadoria musical. Existe uma dramaticidade, uma atuação, uma performance.”

Na direção, a troca entre funções artísticas também é evidente. A experiência como atriz, segundo ela, faz toda a diferença em sua abordagem com o elenco: “Na verdade, todo diretor deveria ser ator. É um universo muito delicado, essa troca entre direção e atuação”, defende.

Para a artista, um bom diretor não pode se prender apenas à técnica ou ao olhar para a cena, mas precisa saber se expressar com clareza e cuidado. Ela destaca o impacto positivo quando encontra, no set, alguém que compreende a linguagem do ator: “Faz toda a diferença.” Até mesmo ser DJ influencia seu trabalho como diretora, acrescenta Amanda. A escolha de trilhas sonoras e referências musicais se torna uma ferramenta criativa desde as etapas iniciais de um projeto audiovisual. “Quando trago uma referência de trilha, já estou contribuindo com a construção da cena”, explica.

Foto: Brenda Quevedo
Foto: Brenda Quevedo
Foto: Brenda Quevedo
Foto: Brenda Quevedo
Foto: Brenda Quevedo

Transpira

Transpira nasceu em 2018, em um festival no Rio de Janeiro. A primeira apresentação deu origem a um “encontro criativo e muito potente”, diz Amanda. Desde então, a dupla compartilha o projeto que combina liberdade, expressão e companheirismo. “Somos duas mulheres realizando sonhos juntas e abrindo caminhos para nós mesmas.”

Para Grimaldi, a Transpira pode ser considerada um ato de representação feminina na cena musical da discotecagem, tendo em vista que os line-ups de festivais e eventos ainda são compostos, majoritariamente, por homens. “Fazer parte dessa cena é também poder inspirar outras mulheres para estarem ali, ocupando esse espaço (…) Enquanto mulher, temos que provar o nosso know-how e somos muito mais subestimadas tecnicamente que os nossos colegas homens. Além disso, os nossos corpos são mais sexualizados”, observa.

Os homens, segundo ela, têm maior acesso a oportunidades e reconhecimento profissional: “Também por trás disso está o fato de que os contratantes e idealizadores dos eventos também são, em sua maioria, homens”.

Ao falar sobre as festas, ela descreve: “Estamos ali, criando esse universo e expressando com os nossos corpos, extravasando na nossa performance, sendo quem a gente é, vestindo o que a gente quer. Isso comunica uma liberdade que também é um convite, principalmente para as mulheres ali da festa, que fazem questão de ocupar o front (referência à área em frente à cabine de som, geralmente ocupada por quem dança mais perto das DJs e protagoniza a pista).”

“Ninguém está livre.”

Na série biográfica “Raul Seixas: Eu Sou”, criada e dirigida por Paulo Morelli, Amanda Grimaldi interpreta Edith, o primeiro grande amor de Raul. Filha de pastor protestante, a personagem rompe com tudo que conhecia para viver uma história visceral ao lado do músico. Na visão da atriz, um dos grandes méritos da série que retrata a vida de Raul Seixas é não santificar o artista. “A série consegue desenvolver muito bem esse universo íntimo e apresentar Raul enquanto um homem, que vem de uma sociedade essencialmente patriarcal e machista.”

Para viver a personagem, Amanda mergulhou fundo na história do ícone do rock brasileiro. O que ela concluiu, porém, é que jamais o namoraria na vida real. “O que me faz tirar essa conclusão é ter tido esse contato com esse Raul profundo, desconhecido para mim (…) Ninguém está livre de se envolver em relações disfuncionais e assimétricas, até as mulheres mais letradas. A série mostra muito bem que as relações ali não eram equilibradas. Tinha essa assimetria muito clara, tanto na dimensão emocional, simbólica, e  na vida prática dos casais”, afirma.

Ela continua: “Posso estar sendo enviesada, mas não foi a Edith que rompeu a relação. O Raul rompe, por meio das escolhas dele. Os homens tendem a se beneficiar desse afeto que as mulheres depositam. Fomos ensinadas a ser grandes cuidadoras, mas esse afeto não é devolvido na mesma medida, e não tem relação que se sustente, pelo menos não para mim”.

“Eu conheço esse sentimento.”

Ao construir Edith, porém, a atriz não partiu de suas opiniões pessoais. “Por mais que a personagem tome decisões duvidosas, eu tenho que buscar justificativas para aquilo.” Apesar do esforço em se distanciar, ela admite que muitas experiências emocionais da personagem são familiares: “Me sinto sempre emprestando nas minhas construções o meu material íntimo, o meu arsenal simbólico, das minhas próprias experiências, para buscar ali uma empatia.”

No caso de Edith, isso foi ainda mais evidente: “Não foi um grande desafio lidar com esse contraste porque, na verdade, qualquer mulher, por mais letramento que tenha, já viveu uma relação mais disfuncional. Principalmente quando a gente é mais nova e tem mais dependência emocional, mais insegurança. Eu conheço esse sentimento de estar apaixonada por alguém descuidado.”

Sobre Raul, ela é categórica: “Eu não me casaria, não passaria uma vida com ele, mas certamente poderia me encantar pelo Raul, porque o Raul é essa figura apaixonante mesmo.”

Quando questionada se a personagem Edith tomaria as mesmas decisões nos dias atuais, ela acredita que sim, mas com algumas nuances. “Ela tomaria as mesmas decisões, tanto de se envolver com o Raul, de casar com o Raul, de ter filho com o Raul e também de terminar com o Raul.”

A diferença, segundo a atriz, estaria na forma de se posicionar. Ela acredita que Edith, como mulher de hoje, talvez tivesse outro tipo de presença na relação. “Talvez a coisa não chegasse à gota d’água sem antes os ajustes acontecerem de forma mais equilibrada.”

“Eu sou muito feliz com ela.”

Ao olhar para a própria trajetória, a atriz se emociona: “Tomar a decisão de seguir pelo caminho da arte enquanto profissão, seja qual for o segmento, é uma decisão no mínimo corajosa, porque fazer arte não é fácil, especialmente no nosso país (…) A Amanda que escolheu o teatro lá atrás, me emociona. Eu sei o tanto que essa garota teve que construir seu espaço. Abrir caminhos, desbravar muita coisa, fazer sua própria rede, correr atrás dos seus próprios projetos”, conclui.