Por Lohuama Alves

Poucos autores da cena contemporânea brasileira têm sido tão contundentes em expor as contradições do país quanto Alexandre Dal Farra. Dramaturgo, diretor e escritor paulistano, ele construiu uma carreira marcada pelo desconforto. Não pelo desconforto gratuito, mas por aquele que provoca reflexão, que tira o espectador da zona de conforto e o coloca diante de dilemas que atravessam a política, a religião e a identidade brasileira.

Dal Farra é conhecido por obras como a trilogia Abnegação. Ao longo de mais de uma década de trabalho, seus textos conquistaram prêmios e circularam por todo o país, além de festivais internacionais, sempre carregados por uma marca: expor as fissuras da sociedade brasileira sem cair em discursos fáceis.

Sua produção transita entre temas sensíveis — racismo, fanatismo religioso, autoritarismo — com coragem estética. Obras como Branco: o cheiro do lírio e do formol discutem a branquitude em uma sociedade racista, enquanto Vissura, criada em parceria com o diretor Pedro Vilela, em Portugal, investiga a adesão de brasileiros imigrantes à extrema direita europeia.

“Não gosto de um teatro que tenta se limpar, que finge estar livre das violências da sociedade. Eu acredito que o palco é o espaço onde tudo aquilo que a gente esconde possa aparecer. Porque o que é reprimido, o que você tira da frente, continua lá — e volta de algum jeito”, afirma o dramaturgo.

Formado inicialmente em música, Dal Farra migrou para o teatro após um convite para direção musical. O que era uma experiência pontual virou paixão quando percebeu o potencial da escrita dramatúrgica para provocar e mexer com o público. “A primeira cena que escrevi teve uma reação que nenhuma música minha tinha provocado. Percebi que ali havia uma outra pulsação”, conta.

A política sempre atravessou sua obra, mas sem as obviedades que frequentemente marcam o campo artístico progressista. “O teatro virou um espaço muito frágil. Muitas vezes vamos ao teatro para ouvir o que já sabemos: que racismo é ruim, que desigualdade é ruim. Mas é justamente por vivermos numa sociedade desigual, racista e opressora que precisamos olhar para dentro e entender o que existe de perverso em nós mesmos”, dispara.

No curta Boca Dura, Dal Farra leva para a tela um almoço em família que descamba em violência, revelando os conflitos geracionais, religiosos e de gênero em um núcleo evangélico na periferia brasileira. O protagonista é um jovem trans que retorna à casa da família. A tensão cresce em uma espiral sufocante. “Eu tenho um interesse antigo pelo universo evangélico, principalmente porque ali existe um engajamento político, moral e existencial muito potente”, explica. Para o diretor, é um erro olhar para esses espaços com preconceito. “A direita consegue engajar nesses territórios como a esquerda já não consegue há muito tempo. E eu gosto de olhar para esse mundo com curiosidade. As pessoas estão escolhendo aquilo por algum motivo.”

A crítica social também aparece em projetos internacionais, como a peça Vissura, criada em Portugal em parceria com o diretor Pedro Vilela. No espetáculo, Dal Farra aborda o crescente apoio de brasileiros emigrados à extrema direita europeia. “São justamente brasileiros que menos usufruem do Estado de bem-estar social. A solução da extrema direita é mentirosa, mas parte do diagnóstico é real: essas pessoas se sentem enganadas, marginalizadas”, analisa.

Desde seu trabalho com o Tablado de Arruar, companhia teatral criada nos anos 2000, Dal Farra se propõe a tensionar a visão confortável de seu próprio campo político.

O dramaturgo defende um teatro que provoque transformação interna no espectador, em vez de apenas confirmar crenças já estabelecidas. “O que me interessa é um teatro que escancara aquilo que a gente não quer ver, que confronta. Meu objetivo nunca foi pregar verdades, mas gerar reflexão”, afirma. Sua inspiração vem de rituais antigos de expurgo, como descreve ao citar um documentário sobre cerimônias em que os colonizados encarnavam seus algozes para exorcizar a opressão vivida. “É isso que eu busco: expurgar aquilo que está em mim, no público, na sociedade. Não quero colocar essas coisas no mundo — quero tirá-las do mundo.”

Com Boca Dura, Alexandre Dal Farra se reinventa nas telas, mas sem abrir mão de sua marca autoral: confrontar o espectador, provocar reflexão e recusar respostas fáceis. “A gente vive numa sociedade tão brutal que ninguém sai ileso. O palco e a tela precisam ser o espaço onde a gente olha para o que há de mais incômodo em nós mesmos”, finaliza.

O curta circula por festivais e ainda não tem previsão de estreia comercial. Mas, como tudo que leva a assinatura de Dal Farra, promete causar incômodo — e, sobretudo, pensamento.

Foto: Divulgação
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