Por Laura Süssekind

Adélia Sampaio não é apenas uma cineasta talentosa. Como a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, sua trajetória desafiou preconceitos raciais e de gênero em uma indústria majoritariamente branca e masculina, numa época em que isso era considerado quase inadmissível. Aos 80 anos, Adélia continua atuante, produzindo documentários e participando de debates sobre cinema e sociedade, reafirmando sua crença no poder do audiovisual como uma ferramenta de impacto social.

O interesse de Adélia pelo cinema começou cedo. Aos 13 anos, ela teve seu primeiro contato com ele e, ao sair de uma sessão, declarou à irmã que um dia veria um filme seu na tela. Determinada a transformar esse sonho em realidade, em 1968, mudou-se para o Rio de Janeiro e conseguiu um emprego como telefonista na Difilm, uma produtora associada ao movimento Cinema Novo, onde trabalhou com cineastas renomados como Glauber Rocha. Ali, ela aprendeu sobre os bastidores do cinema e assumiu diversas funções, como maquiadora, continuísta, montadora e produtora, até conquistar a posição de diretora.

“Eu fui realmente a primeira mulher negra que se enfiou lá no set, mas o set era todo composto pelos negros, que a gente chamava ‘o pessoal da pesada’. Todo mundo dizia, ‘não pode dar o cargo de diretora de produção para uma mulher porque o pessoal da pesada não vai receber ordem de mulher’”, contou em entrevista para Marco Zero.

Ela foi a primeira a defender que o maquinista e o eletricista eram figuras importantes no set e deviam ter acesso ao roteiro também. “A partir disso eu comecei a conversar sobre a possibilidade da gente inaugurar um sindicato de técnicos do cinema e a gente conseguiu fundar, até hoje ele existe. Com isso, eu acabei sendo eleita ‘a rainha da pesada’ e a ‘pesada’ deixou de ser uma coisa pejorativa e passou a ser uma coisa muito legal para os técnicos, eles passaram a ter consciência da importância do que eles faziam para o cinema”.

Sua estreia como cineasta aconteceu em 1979 com o curta “Denúncia Vazia”. Entre as décadas de 1970 e 1980, dirigiu outros curtas que abordavam questões sociais com sensibilidade, como “Agora um deus dança em mim” e “Na poeira das ruas”.

Em 1984, Adélia Sampaio marcou a história ao lançar “Amor Maldito”, o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra no Brasil e também o primeiro filme latino-americano a abordar uma relação amorosa entre duas mulheres. Inspirado em fatos reais, o longa retrata a história de Fernanda e Sueli, cujo romance é interrompido por uma tragédia seguida de um julgamento permeado de preconceitos. Todo o processo do filme foi um grande desafio, em especial no que diz respeito ao lançamento. Devido a todo o preconceito da época, ela precisou aceitar estrear o filme na categoria pornô para que entrasse em cartaz em alguns cinemas de São Paulo.

E mesmo durante a produção, ela precisou contar com apoio de colegas para levar o filme a frente, já que não havia financiamento. “Eu realizei todos os meus trabalhos com um ajuntamento de pessoas porque acredito que cinema é isso: a arte do coletivo”, declarou Adélia sobre sua abordagem.

Foto: Arquivo Pessoal

Adélia continuou sua trajetória como diretora dos documentários “Fugindo do Passado” (1987) e “AI-5 – O Dia que não existiu” (2001), codirigido com o jornalista Paulo Markun. Como produtora, participou de obras como “Parceiros da Aventura” (1980) e “O Segredo da Rosa” (1974).

Adélia é, além de um símbolo que fez história no cinema nacional com sua arte, um símbolo de resistência inquestionável. “Algumas pessoas diziam: ‘O dia em que você alisar o cabelo vai melhorar muito a tua vida’. Mas eu respondia: ‘Então, meu amor, eu vou ficar na pior’”.

Recentemente, foi reconhecida na Mostra Sétima Arte Feminina, em Recife, e na 6ª Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio, que carrega seu nome em homenagem, e celebra seu pioneirismo e o talento de mulheres negras no audiovisual. O evento, realizado na Universidade de Brasília entre os dias 4 e 11 de novembro deste ano, exibiu filmes, mesas de debate e uma cerimônia de premiação no Anfiteatro 10, no campus Darcy Ribeiro.

A curadoria, composta por Edileuza Penha de Souza, Maíra Zenun e Melina Bonfim, selecionou 24 filmes que abordam questões fundamentais das mulheres negras em diferentes regiões do Brasil. Entre curtas, médias e longas-metragens, a Mostra destaca narrativas que valorizam o afeto, o protagonismo negro e a resistência.

“Se levou cem anos para surgir uma cineasta negra, daqui para frente, serão milhões. A gente vai falar de nós de uma forma objetiva e, por certo, orgulhosa”, declarou Adélia, que esteve presente na abertura oficial do evento na Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Seu legado vai além dos filmes que dirigiu com seu olhar único para o audiovisual. Adélia abriu caminhos para mulheres negras e cineastas LGBTQIAPN+ no Brasil, inspirando novas gerações a contar histórias que promovem mudanças. Adélia Sampaio desafiou as estruturas de uma indústria excludente e deixou uma marca eterna no cinema nacional. Sua trajetória deve ser mais reconhecida, recontada milhares de vezes, para relembrar a todos que o cinema, mais do que entretenimento, é uma das mais poderosas ferramentas de transformação e resistência.

Sobre o avanço em relação à consciência negra, mas ainda longe de atingir o ideal, Adélia concluiu: “A gente tem que ter consciência e falar sobre isso sempre, entendeu? Pegar um menino que está entrando na emissora que é preto e e dizer para ele, ‘olha, não tripudie, para você estar aí muita gente já foi tripudiado, então, o que você tem que fazer é convocar a sua turma para invadir esse espaço porque esse espaço também é do negro’. Precisamos conversar com a meninada e mostrar para eles qual é a força que cada um deles tem”.