Como são feitos os cartazes oficiais de uma Olimpíada?
O papel importante das artes visuais nas Olimpíadas
Por Aline Gomes
É muito comum que as peças de teatro, óperas, espetáculos de dança ou filmes tenham o seu pôster oficial. Um cartaz que servirá de divulgação e também será responsável pela identidade da obra. Os Jogos Olímpicos também possuem sua arte oficial, afinal, também se trata de um espetáculo.
Embora os Jogos Olímpicos Modernos tenham iniciado em 1896 em Atenas, foi somente em 1912, na edição de Estocolmo, na Suécia, que se concretizou a ideia de uma arte visual que representasse o evento mais importante do mundo esportivo. A partir desse ano as cidades-sede passaram a ser responsáveis pela organização e promoção da publicidade de cada edição dos Jogos.
A confecção de um pôster olímpico oficial geralmente ocorre por um concurso que pode ser aberto a todos, a artistas do país anfitrião ou a artistas específicos pré-selecionados pelo Comitê Organizador das Olimpíadas.
Olhando para a trajetória inicial das composições visuais desses cartazes, é possível identificar um protagonismo do corpo masculino, o que certamente reflete a tardia participação das mulheres nos Jogos. O pôster das Olimpíadas de Estocolmo (figura 1) foi realizado por Olle Hjörtzberg (1872-1959). O artista sueco retrata corpos masculinos jovens, com músculos salientes e bem demarcados.
No livro A Century of Olympic Posters a pesquisadora Margaret Timmers afirma que projeto o original deste pôster trazia os atletas nus, mas eles foram substituídos por esta versão que vemos aqui, na qual foram adicionadas flâmulas estrategicamente colocadas para esconderem o genital masculino. Mesmo assim, o cartaz foi impresso em 16 idiomas e três formatos, mas não foi distribuído em alguns países onde se considerou que a imagem poderia ser muito ousada.
No mesmo ano das Olimpíadas na Suécia, um pequeno jornal humorístico local publicou uma edição especial sobre os jogos olímpicos e apresentou duas caricaturas do cartaz oficial. Na primeira versão (figura 2), o homem que estava no primeiro plano da arte oficial é retratado com um corpo rígido de musculatura saliente, com pêlos nas pernas, nas axilas e no peito. As pernas ganham angulação distorcida, os pés com dedos desproporcionais, grandes e animalescos, ultrapassam o enquadramento da obra. Com um cigarro na boca e segurando uma grande folha cobrindo o genital, o atleta não é mais referenciado por elementos que remetem às esculturas clássicas, ao contrário, são características que o aproximam do homem comum. O segundo plano é ocupado por homens, também de corpos disformes e de posturas exageradas, com bandeiras emaranhadas que eliminam a possibilidade de alguma identificação regional.
Nesta mesma edição do jornal, outra caricatura foi publicada (figura 3). Nela observamos apenas as pernas masculinas com músculos irregulares e volumes exagerados. Diferentemente do pôster oficial, nesta sátira um dos rapazes exibe seu perfil e podemos observar suas nádegas perfeitamente onduladas. As bandeiras são substituídas por ondas invertidas, estas localizam-se na parte superior da imagem e quebram-se na altura dos quadris. De alguma forma, as pernas expostas e a espuma das ondas remetem às cenas dos cabarés franceses do século XIX, tema tão bem explorado por Henri Toulouse Lautrec, por exemplo (figura 4).
Nas primeiras edições dos pôsteres oficiais dos Jogos Olímpicos predomina a imagem da juventude, do físico perfeito, masculino e branco. Essa cultura visual se alinhava aos debates sobre os cuidados com o corpo, preocupação muito presente no século XIX. Era nesse mesmo período que a mensagem de Pierre de Coubertin, o fundador dos Jogos Olímpicos modernos, propagava sua mensagem através das olimpíadas: “O esporte precisa ser visto como um produtor de beleza e uma oportunidade para a beleza. Ele produz beleza, pois cria o atleta que é uma verdadeira escultura viva”.
Cem anos atrás, o cartaz oficial das Olimpíadas de Paris de 1924 (figura 5) pode ser representante exemplar do ideal de Coubertin. O pôster apresenta um grupo de jovens, nus na parte superior do corpo, com o braço direito elevado, palmas das mãos direcionadas para o mesmo lado e olhares para diagonal. Todos apresentam a mesma estrutura corporal e são individualizados por pequenos detalhes como cabelos, narizes e bocas. Por outro lado, a semelhança entre os corpos unifica o grupo e os tornam um importante exemplo do discurso da cultura física massificada, muito utilizado por diversos governantes.
O gesto repetido e sincronizado é laureado pela nação francesa que os acompanha no segundo plano com as cores da bandeira e pelo brasão no canto esquerdo inferior do cartaz. A presença do discurso dos ideais olímpicos foi um importante potencializador de movimentos nacionalistas. Não por acaso que, em 1981, no filme Carruagens de Fogo (1981), um importante personagem do filme, o técnico de atletismo Sam Mussabini, interpretado pelo ator Ian Holm, aparece em frente ao pôster oficial dos Jogos de 1924.
Com o passar dos anos, os pôsteres refletiram as mudanças dos estilos visuais na arte. Foi o caso das Olimpíadas de Munique em 1972, na Alemanha. O Comitê de designer dos jogos de Munique decidiu criar uma publicação em série, assim surgiu o The Edition Olympia, que consistia em cinco séries contendo sete pôsteres em cada. Artistas conhecidos e novos talentos foram convocados para elaborar a arte de cada cartaz. Os artistas estavam livres para escolherem seus temas, mas eram encorajados a incorporar os ideais dos Jogos Modernos. A partir dessa proposta, os pôsteres Olímpicos exploraram outras formas visuais. Corpos de atletas pretos passaram a protagonizar as cenas, deixando de lado as posturas esculturais da antiguidade grega e destacando partes isoladas do corpo.
Como no caso do pôster feito pelo artista britânico Allen Jones (figura 6) que, combinando o figurativo com o abstrato, fragmentou dois pares de pernas de atletas, aparentemente fundidas, mas em oposição dinâmica. Ou no caso da arte do americano Ronald Brooks Kitaj (figura 7), que retrata apenas as partes do corpo que emergem de um nadador, lembrando as exigências excruciantes que os Jogos impõem ao corpo humano.
É interessante notar os desdobramentos políticos de alguns cartazes dos jogos. Em 1968, o pôster das olimpíadas do México teve a colaboração de dois artistas: o mexicano Eduardo Terrazas e o americano Lance Wyman. A dupla desenvolveu uma arte em preto e branco, inspirados nos padrões Huichol, arte originária dos povos que habitam o centro-leste do México (figura 8). O evento esportivo teve muitas críticas em relação ao orçamento financeiro pela população, dez dias antes do início dos jogos, protestos liderados por estudantes mexicanos manifestaram esse descontentamento.
Um dos cartazes distribuídos durante as manifestações reproduziu o símbolo oficial dos jogos que figurava no pôster. A arte feita pelo artista Adolfo Mexiac (figura 9) subverte os elos do logotipo olímpico em uma corrente que posicionada na boca de um homem, é trancada por um cadeado com a inscrição: “feito na América”, uma referência aos laços políticos do presidente mexicano Gustavo Díaz Ordaz com a América do Norte.
Os cartazes oficiais do Jogos Olímpicos no século XXI experimentam novas possibilidades, nota-se uma certa liberdade expressiva dos artistas convocados que passaram a apresentar composições menos arraigadas ao discurso do vigor físico e diversificaram formas e conteúdo. Nos jogos do Rio de Janeiro de 2016, as obras foram produzidas por 12 artistas brasileiros: Alexandre Mancini, Antônio Dias, Beatriz Milhazes, Claudio Tozzi, Ana Clara Schindler, Gringo Cardia, Gustavo Greco, Gustavo Piqueira, Guto Lacaz, Juarez Machado, Kobra e Rico Lins, além da artista colombiana Olga de Amaral.
Ao escolher um conjunto de cartazes e não apenas um único pôster como identidade do evento, as possibilidades artísticas se expandem. Como na obra de Claudio Tozzi (figura 10) que orquestrou formas geométricas com cores vibrantes que sugerem movimento e dinamismo. Ou a artista colombiana Olga de Amaral (figura 11), que apresentou um novo visual aos arcos olímpicos ao imprimi-los sob um design têxtil dourado.
Em 2024, os olhares do universo esportivo estão todos voltados para Paris. O cartaz oficial foi realizado pelo jovem ilustrador francês Ugo Gattoni (figura 12). O artista trabalhou com uma profusão de monumentos arquitetônicos franceses, ocupados por uma população de atletas e torcedores festivos. O enquadramento dá a sensação de observar um panorama da cidade visto do alto, onde tudo acontece ao mesmo tempo.
Os detalhes se apresentam em quantidade expressiva e, para isso, foi preciso aplicar dimensões diminutas nas figuras humanas. A arquitetura grandiosa da França é justaposta aos componentes da paisagem, rio, mar e montanhas são agrupados sem muita preocupação com a perspectiva. Tal arranjo da composição até remete O Jardim das Delícias Terrenas (1490-1500) de Hieronymus Bosch (1450-1516). No entanto, além do tema, as cores presentes no cartaz de Paris se distanciam das tonalidades do pintor do século XVI que, em seu tríptico, tratava de temas bíblicos. O que se encontra no dinamismo criado por Gattoni são situações que sugerem diversão, festividade e recreação. Não por acaso ele simulou a famosa brincadeira do ilustrador britânico Martin Handford, em Onde está Wally?, e espalhou discretamente na obra oito Phryjes, o mascote oficial das Olimpíadas de 2024.
Por fim, mesmo num olhar mais breve sobre a produção visual desses cartazes, notamos que, desde o pôster pioneiro dos jogos olímpicos de Estocolmo (1912), as imagens esportivas trataram de importantes questões da cultura visual. Pontuaram ideais sócio-políticos, hegemônicos e até maneiras de celebrar o atleta como verdadeiro herói. Muitos dos pôsteres se apresentam com o apelo publicitário, transformaram-se em elementos-chave de um sofisticado programa de identidade visual, partindo de produções artísticas sofisticadas e resultaram em rica narrativa visual que abordam, além dos ideais dos jogos, também nuances de seu tempo histórico.