Como o Marco Temporal varreu uma terra indígena do Censo
A situação, única entre todas as terras indígenas recenseadas no país, não se deve a um erro do IBGE, tampouco à inexistência do povo. Os Guarani de Araça’í existem e seguem reivindicando o pedaço de terra localizado entre Saudades e Cunha Porã.
A situação, única entre todas as terras indígenas recenseadas no país, não se deve a um erro do IBGE, tampouco à inexistência do povo. Os Guarani de Araça’í existem e seguem reivindicando o pedaço de terra localizado entre Saudades e Cunha Porã.
Matéria de Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca, Rafael Oliveira para Agência Pública
No extremo Oeste de Santa Catarina, 336 pessoas moram em uma área, de cerca de 3 mil hectares, que é uma Terra Indígena. Apesar de viverem lá, nenhuma delas se declara indígena. A informação é do Censo 2022, divulgado neste dia 7 de agosto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo apuração da Agência Pública, a situação, única entre todas as terras indígenas recenseadas no país, não se deve a um erro do IBGE, tampouco à inexistência do povo. Os Guarani de Araça’í existem e seguem reivindicando o pedaço de terra localizado entre Saudades e Cunha Porã. Mas, por conta do marco temporal, não estão vivendo em sua terra ancestral, como constatou o IBGE.
A terra se tornou um exemplo do que o marco temporal pode causar a indígenas: a portaria que declara o território foi anulada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em 2015. A decisão se baseou na tese que considera que só devem ser demarcadas as terras em que havia ocupação por indígenas na data de promulgação da Constituição de 1988.
Segundo a reportagem apurou, os guarani da Terra Araça’í hoje vivem “de favor” em outra área, de outro povo, chamada de Toldo Chimbangue, também no Oeste do estado.
Guaranis lutam há décadas por terra, ocupada por agricultores
Os Guarani de Araça’í vêm lutando pelo reconhecimento do seu território desde o século XX. A situação aprofundou-se nos anos 60, quando o estado de Santa Catarina promoveu um processo de colonização na região. Os descendentes dos pequenos agricultores, que receberam títulos de terra do governo estadual, na época, são quem disputa o espaço com o povo indígena até hoje.
“Para nós, indígenas, a terra tem muito significado. Ela, para nós, é mãe. Sem a terra, a gente não consegue ter uma saúde de qualidade, uma educação de qualidade, não consegue progredir. O nosso povo, até hoje, não tem uma terra demarcada aqui no estado. Ali [no território reivindicado] tem muitas histórias dos nossos antepassados que estão enterrados lá”, afirma o cacique do povo, Marcos Morais. Seu pai, que aos 102 anos segue aguardando a oportunidade de voltar para o território tradicional, foi expulso da área, ainda criança, e é testemunha do processo de esbulho sofrido pelo povo.
Ao longo das décadas seguintes à expulsão, os Guarani de Araça’í passaram a viver confinados em terras dos Kaingang, povo indígena que, historicamente, foi seu rival. Sem ter a sua demanda pelas terras tradicionais atendida, os Guarani de Araça’í decidiram promover uma retomada de seu território no ano 2000, quando cerca de 200 pessoas regressaram à região em que seus antepassados viviam.
Com o movimento, a Funai criou um grupo técnico para realizar os estudos antropológicos da área. Em 2005, quando o povo já havia sido, novamente, expulso do território, dessa vez pela Justiça Federal da região, o relatório de identificação e delimitação foi aprovado pelo órgão indigenista. No ano seguinte, eles promoveram nova retomada de suas terras, sendo, mais uma vez, expulsos por pressão de agricultores e políticos locais.
Apesar disso, a portaria declaratória — documento que reconhece os limites da área e o direito originário dos indígenas sobre ela — foi expedida pelo Ministério da Justiça em 2007. Ela estabeleceu cerca de 2,7 mil hectares (27 km²) como área dos Guarani de Araça’í. A área equivale a 27 km², aproximadamente o tamanho do centro da cidade de São Paulo.
A portaria foi derrubada e reestabelecida, algumas vezes, até a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) decidir anular, de vez, a declaração, em 2015, confirmando a decisão no ano seguinte.
Expulsos da sua terra, indígenas vivem de favor em área de ex-rivais
Desde então, com a indefinição sobre seu território, os Guarani de Araça’í têm vivido em uma porção de terra cedida dentro da Terra Indígena Toldo Chimbangue, em Chapecó, também em Santa Catarina. Atualmente, são pouco mais de 130 pessoas vivendo em, apenas, oito hectares — o equivalente a oito campos de futebol.
“No início teve muita resistência do pessoal Kaingang, porque é uma etnia totalmente diferente na cultura, na língua, na tradição. Aos poucos, a gente foi dialogando e eles foram entendendo, também, um pouco do nosso lado. É um povo que nos acolheu quando fomos expulsos, mas ainda há alguma divergência, por conta da cultura mesmo”, explica o cacique Morais.
“Nós temos aqui oito hectares, principalmente para ter a moradia mesmo. Não tem terra, não tem espaço para plantio. Nós não conseguimos ter uma escola diferenciada, não temos um posto de saúde, uma equipe de saúde para o próprio Guarani. As moradias são bastante precárias por não termos a terra. É muito sofrido”, diz.
O líder indígena, que aguarda o julgamento do marco temporal para, finalmente, ter suas terras demarcadas, defende que o governo de Santa Catarina corrija o erro cometido no século passado, oferecendo um novo pedaço de terra e reparação financeira para os pequenos agricultores que disputam o território.
Censo contou 1,6 milhão de indígenas no Brasil
Dados publicados pelo IBGE, nessa segunda-feira, mostram que o Brasil tem mais de 1,6 milhão de indígenas. Isso engloba pessoas que responderam ser da cor ou raça indígena ou que se consideram indígenas.
O número corresponde a 0,85% da população residente no Brasil. Dos 5.570 municípios brasileiros, a maioria (4.480) tem, ao menos, um morador indígena.
A demógrafa e antropóloga Marta Azevedo, que faz parte da Comissão Consultiva do Censo 2022, destaca que houve mudanças metodológicas da pesquisa em relação aos povos indígenas. Segundo ela, a consulta livre, prévia e informada dos povos permitiu que o instituto formulasse uma melhor definição de conceitos como “o que é um indígena” e “o que é uma localidade indígena”, um avanço em relação ao Censo anterior.
“Também houve um refinamento da malha digitalizada dos setores censitários com as terras indígenas. Ou seja, o perímetro dos setores censitários do IBGE está ‘casando’ com a área das terras indígenas declarada pelo Ministério da Justiça”, explica Azevedo, que já foi presidente da Funai. De acordo com a demógrafa, isso não ocorreu em 2010, e é possível que um mesmo setor censitário da pesquisa anterior incluísse um pedaço de terra indígena e uma fazenda, por exemplo. Além disso, ela aponta que é difícil comparar as duas pesquisas porque, em 2010, houve muita imputação — quando se aumenta a amostragem disponível —, já que o IBGE não conseguiu visitar todas as aldeias.
O antropólogo Tiago Moreira dos Santos, que é analista de Desenvolvimento e Pesquisa do Instituto Socioambiental (ISA), também ressalta a dificuldade de comparação entre os dois levantamentos do IBGE. Segundo ele, por conta dos problemas logísticos da pesquisa da época, parte dos dados do Censo de 2010 sequer foram inseridos no banco de dados do ISA. Em especial, estão relacionados a terras que não estavam com o processo de demarcação concluídos e não tinham passado pela desintrusão de não indígenas.
Sobre o crescimento da população indígena captado pelo IBGE, Moreira destaca: “É um crescimento que se dá, também, pelo instituto conseguir mapear a presença de pessoas indígenas em vários contextos. E a gente vê essa emergência indígena [no sentido de emergir] apesar do contexto bastante anti-indígena dos últimos anos”, avalia.
De acordo com Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas da Diretoria de Geociências do IBGE, o mapeamento da população indígena pelo órgão estatístico “é um dado que, efetivamente, pode mudar o curso da atenção estatal aos povos indígenas”. Segundo ele, o Censo pode ajudar as instituições que trabalham com essa população, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), para orientar as suas ações e dimensionar a aplicação de recursos públicos.
Sobre o marco temporal
O marco temporal, tese abraçada por ruralistas, está em análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Tribunal está julgando um caso de repercussão geral para decidir se esse entendimento é constitucional e aplicável para todos os processos de demarcação.
Por enquanto, o placar está favorável aos indígenas, que tiveram votos contrários ao marco temporal do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, enquanto Nunes Marques divergiu. O julgamento está parado após pedido de vista de André Mendonça, que prometeu devolver o caso ao plenário antes da aposentadoria de Rosa Weber, que ocorrerá em outubro.
Paralelamente a isso, a Câmara dos Deputados aprovou, no final de maio, o Projeto de Lei 490/07, que institui o marco temporal na legislação brasileira, além de promover outras mudanças rechaçadas por lideranças indígenas. O projeto está em tramitação no Senado com o número 2.903/22 e deve ser apreciado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária nas próximas semanas.
Dados: Bianca Muniz