Matéria de autoria coletiva da CulinAfro

Existem momentos em que o povo brasileiro se une, em um só coro. É uma alegria torcer pela seleção, curtir um samba e sentar à mesa para comer. A comida, para nós, é muito mais do que o sustento do corpo: é memória, afeto e cultura. Nossa cozinha reflete uma história – não sem tensionamentos – de diferentes povos que viveram mediados pela colonização. E veja como esses saberes resistiram ao tempo, devido a muitas estratégias ancestrais…

O Guia Alimentar para a População Brasileira, que completou 10 anos, é bem mais do que um manual para promoção de saúde. Ele é um documento que reconhece e valoriza essa riqueza cultural, promovendo práticas alimentares que sempre foram a base da alimentação dos povos e comunidades tradicionais. Práticas que não só alimentam o corpo, mas também fortalecem identidades, memórias e modos de vida. 

Quer entender um pouco melhor? Vem com a gente nessa viagem ancestral!

Povos e comunidades tradicionais: o exemplo que o Guia nos lembra

O Guia ressalta que o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados deve ser a base da alimentação (Capítulo 2).

Muito antes de se falar em alimentos in natura e minimamente processados, povos indígenas, comunidades quilombolas e povos de terreiro já viviam essas práticas de forma cotidiana.

Nas comunidades quilombolas, a alimentação reflete uma profunda relação com a terra, o território e os saberes ancestrais, onde ninguém se sente “dono” da natureza, mas a olha com um profundo respeito.

Tem até um quilombola muito respeitado, chamado Nego Bispo – como ele mesmo se intitulava, “um lavrador de palavras” -, que encantou-se em 2023, porém deixou um legado muito importante sobre o modo de ver e viver dos quilombos. Ele falava sobre a importância de biointeragirmos com todos os elementos do universo de forma integrada. Biointeração, para ele, é “guardar o peixe nas águas, onde eles continuam crescendo e se reproduzindo”, é viver, conviver e aprender com a mata, com o chão, com as águas, com o vento, com a lua, com o sol, com as pessoas, com os animais. É transformar o trabalho em vida, arte e poesia. É transformar as divergências em diversidades. É retirar as notas pesadas do castigo do trabalho para fazer fluir, confluir a interação, a biointeração.

Nas comunidades quilombolas, é muito comum o cultivo da macaxeira, milho, feijão, frutas e hortaliças, mantendo uma alimentação diversificada e sustentável. O preparo artesanal da farinha, do beiju, do tucupi e outros derivados da mandioca revela o aproveitamento integral dos alimentos e uma conexão direta com a terra.

Encontramos a mesma dinâmica nos povos de terreiro, onde a alimentação transcende o aspecto físico, integrando dimensões espirituais e culturais. As comidas votivas, preparadas para os orixás, inquices e voduns, são símbolos dessa conexão. Elas utilizam majoritariamente alimentos in natura ou minimamente processados, como milho, feijão-fradinho, inhame, dendê e folhas, respeitando não apenas os ciclos naturais, mas também os preceitos religiosos que regem sua preparação. Observa-se, também, que a carne não tem uma centralidade dentro das comidas votivas dos terreiros.

Vemos que, diferente do que o racismo estrutural e muitas vezes científico coloca, a alimentação dos povos e comunidades tradicionais resguarda práticas promotoras de saúde e está alinhada com princípios importantes e conhecidos do Guia.

Comensalidade: a força do coletivo nos quilombos e nos terreiros

A alimentação, tanto nas comunidades quilombolas quanto nos povos de terreiro, é uma prática profundamente coletiva. A coletividade é um valor civilizatório extremamente importante para essas populações e está refletido em suas práticas cotidianas.

Nos quilombos, momentos como os mutirões de trabalho ou festas comunitárias culminam em grandes refeições, nas quais cada integrante contribui com alimentos ou trabalho. Essa prática de partilha fortalece laços sociais e valores como solidariedade e cuidado mútuo. Para o povo indígena Sateré Mawé, o puxirum é o trabalho coletivo de roçado, no qual se produz comida, vida e ideias.

Nos terreiros, a comensalidade se manifesta no que se chama de Ajeum (Ajèún), que significa “comer junto”. Após rituais ou celebrações, às refeições coletivas não apenas alimentam os corpos, mas também reafirmam o pertencimento e a união da comunidade. O Ajeum (Ajèún) reforça a ideia de que comer não é um ato isolado, mas uma experiência compartilhada, na qual o alimento é carregado de significados espirituais e culturais.

O Guia Alimentar dialoga diretamente com essas práticas. Ele destaca que realizar refeições em ambientes apropriados, com companhia, contribui para a saúde e para o bem-estar (Capítulo 4). Essa recomendação ressoa com as vivências tanto dos quilombos quanto dos terreiros, onde a alimentação é, acima de tudo, uma expressão de coletividade.

Alimentar-se é um ato cultural

Cada prato de comida conta uma história. A mandioca, cultivada também pelos povos indígenas, é essencial na alimentação de muitos quilombos, é símbolo de resistência e base de inúmeros pratos. Nos terreiros, o acarajé, feito de feijão-fradinho e azeite de dendê, não é apenas um alimento: é uma oferenda sagrada e um símbolo de ancestralidade africana.

O Guia Alimentar enfatiza que as práticas alimentares tradicionais são parte do patrimônio cultural brasileiro (Capítulo 1). Esse reconhecimento é essencial para valorizar tanto os saberes quilombolas quanto os dos povos de terreiro, que moldaram de forma profunda as identidades alimentares do Brasil.

Além disso, o Guia alerta para o impacto dos alimentos ultraprocessados, que muitas vezes substituem as comidas tradicionais. Ele aponta que esses produtos tendem a enfraquecer a cultura alimentar, os sistemas alimentares locais e as práticas culinárias (Capítulo 2). Evitar os ultraprocessados, como propõe o Guia, é também um ato de resistência cultural.

A CulinAfro vem se debruçando sobre essa temática, sobretudo no que se refere à alimentação escolar quilombola. É essencial que os cardápios dessas escolas considerem a dimensão cultural desses territórios e valorizem esses saberes que promovem saúde ancestralmente. Nossas pesquisas sobre o tema culminaram em Material Educativo orientador para agentes da alimentação escolar, que dará subsídios para que as tomadas de decisão sobre o tema possam considerar as dinâmicas desses territórios, que já são referência em promoção de saúde a partir de suas roças, terreiros e saberes populares. 

Sim, comida é cultura! 

Um documento que valoriza nossa história

Uma das grandes importâncias do Guia Alimentar é olhar para a alimentação com sensibilidade e respeito. Ele reconhece que a nossa comida carrega a história de povos que resistiram e perpetuaram formas únicas de se alimentar. Como ele bem demonstra e nós conseguimos perceber, a preservação da cultura alimentar brasileira está diretamente associada à promoção da saúde.

Ao completar 10 anos, o Guia Alimentar nos desafia a pensar: como estamos preservando essas práticas? Será que estamos conseguindo valorizar os saberes tradicionais e resistir às ameaças à nossa cultura alimentar? 

Porque, no fim das contas, comida é muito mais do que calorias e nutrientes. Como já vimos, é cultura, memória e afeto! É o que nos une como povo brasileiro e o que vai nos manter saudáveis em tempos cada vez mais difíceis. Como diz Ailton Krenak: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”

Que sigamos aprendendo com os povos e comunidades tradicionais, alinhados com o Guia e construindo nosso futuro. Nossa saúde agradece.

SOBRE A CULINAFRO

Autoras Pesquisadoras da CulinAfro: Ainá Innocencio da Silva Gomes, Camila Moreira Fonseca, Danielle Theodoro Canicio, Debora Silva do Nascimento Lima, Luana de Lima Cunha, Maria Lorrane Lopes Conde e Rute Ramos da Silva Costa. 

CulinAfro é um grupo de extensão e pesquisa CNPq do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Macaé (RJ), criado em 2014 pela Profª Dr. Rute Costa. Hoje o grupo atua nas seguintes linhas de pesquisa: Educação Alimentar e Nutricional em Afroperspectiva; Alimentação Escolar Quilombola e Culinárias Africanas. 

REFERÊNCIAS

BISPO, Antônio. Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília/ DF: INCTI/UNB, 2015.
Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia Alimentar para a População Brasileira Brasília: MS; 2014
Krenak, Ailton. Futuro ancestral. Companhia das Letras, 2022.