Como as enchentes do RS afetaram os atletas gaúchos que se preparavam para Paris 2024
Desistências forçadas, materiais danificados, centros de treinamento alagados e sonhos que foram adiados pelas chuvas.
Por Luiza Corrêa
O dia 27 de abril de 2024 marcou o início de um capítulo dramático e devastador para o estado do Rio Grande do Sul. Como efeito atrasado do El Niño, fenômeno climático que aquece de maneira anormal as águas do Pacífico na linha do Equador, chuvas torrenciais atingiram o extremo sul do Brasil. As inundações se confirmaram como as maiores desde a Enchente de 1941 e cidades gaúchas chegaram a ficar mais de 90% embaixo da água.
Todo o país se mobilizou para ajudar as pessoas que precisavam em forma de doações, rifas e vaquinhas. Atletas gaúchos do vôlei como Amanda Senn, levantadora do Pinheiros, e Pietra Jukoski, ponteira do Fluminense, juntamente com atletas de outras modalidades, equalizaram as vozes dos atingidos. Valquíria Dullius, central do Osasco, compartilhou a situação em que sua família se encontrava em Canoas, uma das cidades mais atingidas. Pedro Scooby, com um grupo de surfistas, auxiliou resgates de necessitados. Jogadores dos naipes feminino e masculino da dupla GreNal se prontificaram a ajudar em resgates, fazer e entregar comida.
O esporte gaúcho e o esporte brasileiro abraçaram o estado no momento em que ele mais precisou, sendo assim, esportistas que cumpriam o ciclo olímpico não ficaram de fora na hora de tentar voltar a situação para o mais próximo do normal possível.
A dupla brasileira de remo no skiff duplo peso leve, Evaldo Becker e Piedro Tuchtenhagen, decidiu abrir mão de disputar o último Pré-Olímpico da modalidade em Lucerna, na Suíça, para auxiliar nas buscas e, como Piedro, atleta do Grêmio Naútico União, disse ao veículo gaúcho Correio do Povo, serem úteis em vista do que acontecia no estado. Evaldo, remador pelo Flamengo, confessou ao Olympics.com que não foi uma decisão fácil, afinal eles haviam trabalhado muito para ter essa oportunidade. Contudo, também disse que era inviável ir para a Suíça no momento em que queriam servir e ajudar a população.
Importante frisar que, ao não comparecer ao Pré-Olímpico de Lucerna, a dupla não perdeu apenas a chance de garantir vaga em Paris, mas sim de garantir vaga em qualquer Olimpíada, visto que sua modalidade deixa de integrar o programa olímpico em 2028.
Não foram apenas os atletas que se desdobraram para trazer algum tipo de conforto e ajuda para os necessitados. As próprias agremiações se transformaram em abrigos prontos para dar um teto e cobertores para pessoas que haviam visto suas casas sucumbirem à água. A Sociedade de Ginástica de Porto Alegre, popularmente conhecida como SOGIPA, é um clube poliesportivo que se encontra na zona norte da capital gaúcha e virou um centro de acolhimento a desabrigados pelas chuvas. O clube abrigou pelo menos 470 pessoas atingidas pelas enchentes e mais de 60 animais de estimação.
Entre as centenas de voluntários estavam atletas e ex-atletas do clube, associados e não associados que ajudaram a alimentar, proteger e acalentar as vítimas durante um período tão difícil.
Marco Doval, vice-presidente de esportes do clube, comentou com o veículo Zero Hora sobre a condição de treinamento que seus atletas tinham naquele momento: “Graças ao esforço das comissões técnicas, os treinos para as equipes de alto rendimento, especialmente os atletas se preparando para os Jogos Olímpicos, foram mantidos. Aqueles que se sentiram aptos puderam treinar, com condições adequadas fornecidas.“
Jangadeiros, clube náutico também situado na capital que teve a sede bastante afetada por conta das tempestades, disponibilizou suas embarcações para que fossem realizados mais de dois mil resgates nos primeiros dias de enchente. Cristiano Tatsch, comodoro do clube, também à Zero Hora, se disse orgulhoso por notar que a formação de seus atletas – voluntários nos resgates – é integral.
“Não se trata apenas de estar pronto para uma Olimpíada, para competir com alto rendimento, mas de um espírito de união, integração e socialização que é ensinada desde os cursos de vela com as crianças.”
Viviane Jungblut, classificada para disputar a maratona aquática em Paris, falou ao Zero Hora sobre como foi dividir o tempo entre os treinos para as Olimpíadas e o trabalho como voluntária no Grêmio Naútico União. A nadadora viajaria para as seletivas de piscina, contudo achou melhor abraçar aquela rotina anormal e permanecer em Porto Alegre treinando e ajudando os afetados. Logo no primeiro final de semana de chuvas, a sede do GNU no bairro Moinhos de Vento, também na zona norte da capital, se transformou em um centro de coleta de alimentos e demais doações. Atletas e ex-atletas do clube se prontificaram em ajudar na triagem e recepção de donativos, também exercitando os valores olímpicos.
AJUDA DO COMITÊ OLÍMPICO DO BRASIL
Enquanto tudo isso acontecia, a rotina de treinamentos de alguns atletas, que se preparavam para Paris e para competições adjacentes, foi claramente afetada não apenas por estarem se voluntariando, mas também por questões logísticas em uma cidade alagada onde até canoas submergiram dentro de armazéns. Tendo em vista que a maioria dos centros onde poderiam manter suas atividades estavam ou sendo usados como abrigos ou estavam embaixo d’água, uma ajuda do COB foi necessária para que encontrassem outros lugares para seguir a preparação. Passagens aéreas, alimentação e hospedagem foram cobertas pelo comitê.
A já citada pela matéria, Viviane Jungblut, e o nadador Matheus Melech seguiram os treinamentos no Parque Aquático Maria Lenk, que integra o Complexo Esportivo Cidade dos Esportes no Rio de Janeiro. Os dois permaneceram no Rio antes de viajar com destino à Itália para a Copa do Mundo de Águas Abertas, onde a nadadora protagonizou uma dobradinha brasileira com Ana Marcela Cunha, onde a baiana ficou com o ouro e a gaúcha com a prata.
Também na capital carioca treinaram as ginastas Andreza Lima, Rafaela Severo Oliva e Luiza de Souza, que se preparavam para o Campeonato Pan-Americano de Ginástica Artística, que aconteceu na Colômbia. Andreza conquistou o bronze no individual geral e a prata na trave, ajudando o Brasil a sair da competição com 13 medalhas (seis ouros, cinco pratas e dois bronzes).
Medalhista de prata no Grand Slam de Tóquio, a judoca Jéssica Lima viajou a São Paulo para seguir treinamento para o Mundial de Judô de Abu Dhabi, onde disputou a categoria de 57kg e, infelizmente, foi eliminada na segunda rodada para a turca Bozkurt Hasret.
ESPÍRITO OLÍMPICO
É importante reforçar que todos os atletas olímpicos ou não afetados pelas chuvas, de maneira física ou de maneira psicológica, demonstraram extrema resiliência ao se colocarem na linha de frente de resgates e abrigos para servir à sua população. Esportistas de todos os estados viraram seus olhos ao Rio Grande do Sul para que pudessem, da maneira que os cabia, prestar sua solidariedade aos que precisavam. As doações e as rifas arrecadaram muito mais do que dinheiro para um estado afetado. Cada sinal de preocupação, tanto das pessoas, quanto das agremiações, reforçou ainda mais os valores olímpicos cunhados por Pierre Coubertin, idealizador dos jogos.
Igualdade, equidade, justiça, respeito pelas pessoas, racionalidade, compreensão, autonomia e excelência foram todas demonstradas por cada um que utilizou sua prancha, seu barco ou mesmo o seu tempo para que as vidas dos atingidos ficassem um pouco menos difícil.
Esportistas não são apenas peças em espetáculos de entretenimento, mas também modelos para qualquer fã de esportes. A excelência está presente muito além das quadras, piscinas, tatames, campos ou qualquer espaço geográfico que determine uma competição. A excelência está nas ações e essa situação climática também serviu para mostrar que o Brasil abriga, sim, atletas excelentes.