Como a desinformação digital desumanizou a crise humanitária Yanomami
Monitoramento do projeto Mentira Tem Preço mostra como influenciadores e jornalistas tentaram associar indígenas Yanomami ao garimpo ilegal e negar a identidade de uma comunidade
Monitoramento do projeto Mentira Tem Preço mostra como influenciadores e jornalistas tentaram associar indígenas Yanomami ao garimpo ilegal e negar a identidade de uma comunidade
Por Eduardo Geraque/InfoAmazonia
Era fevereiro quando a ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara alcançava comunidades indígenas Yanomami, em Roraima, em situação de crise humanitária. Àquela altura, as cicatrizes superlativas do garimpo do ouro pautavam a imprensa nacional e internacional. Mais de vinte mil invasores em um território protegido por lei, 1.226 hectares de floresta tombados, indígenas com dez vezes mais mercúrio no sangue do que o indicado pela Organização Mundial da Saúde, mulheres vítimas de violência sexual e mais de 500 crianças Yanomami mortas por doenças tratáveis. Nos canais de extrema direita no Youtube, porém, a cobertura era outra.
Monitoramento do Mentira Tem Preço mapeou vídeos em que influenciadores e jornalistas bolsonaristas discutem a crise humanitária em termos políticos. Quando as primeiras imagens de indígenas com desnutrição grave começaram a chegar na imprensa e nas redes sociais, o jornalista Alexandre Garcia havia dito em vídeo que não entendia o impacto do garimpo na fome dos Yanomami, já que “as árvores dão frutos, os rios dão peixes, a terra brota alimento, dá para criar animais”.
A reportagem do Mentira Tem Preço entrevistou Júlio Ye’Kwana, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kwana, pouco depois de ele retornar de uma missão em comunidades dentro do território Yanomami. Júlio presenciou o que Garcia não consegue entender. “Não conseguimos mais ter a nossa roça. A pesca e a caça também estão muito comprometidas”, afirma.
Se o caminho do garimpo deixa veias abertas na floresta e no tecido social, o do mercúrio, usado para separar o ouro depositado no leito dos rios, é silencioso. Quando esse metal tóxico contamina o rio, simultaneamente contamina peixes, terra para plantio e a saúde da população que depende do rio para viver.
“Por causa da contaminação por mercúrio, estamos vendo agora casos de má-formação nos bebês, o que não ocorria antes. Além disso, em algumas áreas, há registros de dezenas de casos de malária por semana, dentro de populações relativamente pequenas”, diz Júlio.
O mosquito transmissor da doença, que normalmente vive na floresta, com o desmatamento, passa a viver muito mais próximo das aldeias das etnias indígenas, causando a enfermidade. Adoentados, indígenas ficam de cama sem conseguir cuidar da plantação e, assim, sem ter o que comer.
A professora Márcia Oliveira, pesquisadora da Universidade Federal de Roraima e assessora da REPAM-Brasil (Rede Eclesial Pan-Amazônica), afirma que o garimpo prejudica as atividades agrícolas em razão do cerceamento de liberdade. “O confinamento violento por parte dos garimpeiros de comunidades inteiras está impedindo as atividades cotidianas dos indígenas, como também a caça. É por isso que você tem essa crise humanitária que vai continuar por muito tempo. A gente se pergunta agora como será a vida dessas crianças, até a fase adulta, que passaram por privação de alimentos por quase dois anos.”
A segunda tentativa da extrema direita foi culpar as vítimas pelo garimpo. Sem provas, o comentarista da Jovem Pan Jorge Serrão afirma que há “informações seguras” de que existe “grande quantidade índios Yanomami atuando no garimpo ilegal” em um vídeo que teve 83 mil visualizações. Mais adiante, explica um pouco mais a sua teoria: “Muitos desses indígenas que iam trabalhar no garimpo, eles acabavam abandonando suas famílias para procurar ouro”. A pesquisadora Márcia nega. “Os indígenas não fazem do garimpo seu meio de sobrevivência”, afirma.
A terceira tentativa da extrema direita foi dizer que a crise humanitária Yanomami, assunto que dominou o debate dentro e fora do país, só recebia tamanho destaque porque estavam instrumentalizando “a miséria” para prejudicar o ex-presidente Jair Bolsonaro, cujo governo é investigado sob suspeita de genocídio contra os Yanomami. Segundo o Tribunal Penal Internacional, genocídio é a “intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.” Marcos Serrano, que tem um canal que autodenomina de “humor e política”, mostra em um vídeo de cinco segundos (79 mil visualizações) a imagem de um indigena que veste uma camisa vermelha com a foto de Lula e diz: “Olha só quem é o Yanomami da Globo, está bem alimentadinho esse Yanomami aí, né?”.
O garimpo ilegal e a resistência indígena contra a atividade exploratória são parte da história da Terra Indígena Yanomami, demarcada em 1992. “A partir de 2016, especialmente depois de 2018, houve um aumento muito grande do garimpo no estado. Pelas investigações que fizemos, a atividade cresceu 520%, principalmente por causa do incentivo dado tanto pelo governo federal como pelo estadual”, diz Márcia, da Universidade Federal de Roraima.
Quando nenhuma das histórias anteriores tinham ganhado fôlego, foi a vez de dizer, sem provas, que os indígenas Yanomami não eram brasileiros. Dois dias depois de o Ministério da Saúde decretar estado de emergência para combater a crise dos Yanomami, o deputado federal e influenciador bolsonarista Gustavo Gayer – um dos que mais lucraram com fake news sobre a Covid-19 – afirmou que os indígenas subnutridos mostrados pela mídia eram imigrantes da Venezuela. “Essas pessoas que vocês estão vendo subnutridas são pessoas que estão fugindo da Venezuela”, diz, em um vídeo com mais de 230 mil visualizações – segundo o YouTube, o vídeo “foi removido pelo usuário que fez o envio”. Nesse mesmo vídeo, Gayer diz que essas “novas narrativas” estão sendo criadas para prejudicar a gestão Bolsonaro e enaltecer a de Lula.
A solução para a crise está na terra, mas não é ouro
De acordo com o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena), nos últimos quatro anos houve uma média de 24,6 óbitos por mês – que continuam ocorrendo –, principalmente por causa de doenças como a desnutrição e a malária. “O que essa operação de emergência fez foi descobrir como o buraco era grande. Estamos longe de resolver o problema. O pessoal do Ministério da Saúde está trabalhando bastante, mas ainda tem muito trabalho pela frente”, afirma Júnior Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kuana – que vive em Boa Vista (RR).
Para ela, o caminho da bioeconomia, ou seja, viver e sobreviver de produtos da floresta, como a produção de castanhas, é a principal saída que deve ser incentivada para a geração de recursos financeiros para os indígenas. “Existem modelos de sustentabilidade queestamos acompanhando que são promissores”, diz.
Como é feito o monitoramento
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pela InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. O monitoramento é feito a partir de palavras-chave relacionadas à justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em demais plataformas.
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço, realizado pela InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.