Por Paolla Miguel*

As feridas abertas do Brasil encontram na política um espaço muito propício para infeccionar e contaminar toda a sociedade brasileira. Esse fenômeno é muito bem ilustrado pelo racismo e tantas outras estruturas de poder opressoras que nos impedem de avançar como sociedade. Todas elas estão presentes na política, em maior ou menor grau. Nos parlamentos e governos, essas violências ainda fincam raízes, encontram um megafone para se legitimar, ganhar força e se estruturar.

Digo com muita firmeza: não há paz para mulheres negras na política. Somos apenas 16% das vereadoras eleitas em 2020. Apenas 18% de toda a bancada de deputadas federais. E, ainda assim, os lugares que ocupamos a base de muita luta despertam a ira de setores ligados à extrema-direita e ao ultraconservadorismo.

Na última semana, o mandato que represento realizou a destinação do valor de R$10.690,00 em emendas para um tradicional evento da cidade por meio da secretaria de cultura da minha cidade. Um festival muito ligado à juventude e com forte participação da comunidade LGBTQIAPN+, que acontece na cidade desde 2018, com diversas edições com caráter e apoio público. O evento teve 8 horas de duração, entre apresentações de dança, DJs e cantores. Já próximo do final, uma cena de 2 minutos absolutamente inadequada para o espaço e o local aconteceu no palco.

Apenas 2 minutos foram necessários para que nosso mandato sofresse um dos mais fortes e implacáveis ataques da extrema-direita de Campinas nas redes e em peças levianas perante o parlamento municipal. Nos acusaram de todo tipo de absurdos infundados. Manipulam imagens para apelar a um conservadorismo latente. Jogaram sua horda odiosa contra nós. Ao final, esse foi o estopim para um pedido de Comissão Processante que pode levar à cassação de uma parlamentar negra de Campinas, no interior de São Paulo.

Se você ainda não me conhece, sou Paolla Miguel. Filha da Neli, engenheira, nerd, vereadora em 1º mandato pelo PT em Campinas. Uma mulher negra e LGBT muito ligada às pautas que carrego no meu corpo. Represento primordialmente aquelas e aqueles que não têm voz nem vez. Ao contrário de muitos que andam entre os nobres, caminho entre os marginalizados. Estou ao lado da juventude negra nas periferias, da comunidade LGBTQIAPN+, das trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental, das famílias em luta pelo acesso à Cannabis Medicinal, das pessoas na interminável fila da habitação popular. Represento todas essas pessoas sendo uma mulher negra e LGBT. A primeira mulher LGBT a ocupar uma cadeira como essa em Campinas.

Por ser quem sou, já fui xingada na Câmara Municipal de Campinas de “preta lixo”. Inclusive, a criminosa era convidada do vereador da extrema-direita que iniciou o mais recente ataque contra nosso mandato. Por ser quem somos, nós vereadoras negras recebemos esses e muitos outros tipos de ataques orquestrados. Subvertem as normas para nos acusar de episódios infundados. Mentem para assassinar reputações. Manipulam para expurgar essas mulheres que nunca deveriam ter chegado ali. Mancham a reputação da nossa frágil democracia para tentar nos destituir de espaços que conquistamos com tanta luta. A mensagem é direta: não há paz para aquelas que ousam representar os excluídos.

Nós, que nunca tivemos uma vida das mais fáceis, resistimos e fazemos um trabalho necessário. E, cada vez mais, contamos com a solidariedade de mulheres e homens que conhecem muito bem as estruturas que estamos acessando e as forças que querem nosso fim. Contamos também com os movimentos sociais, com os partidos, com as pessoas organizadas em redes sociais e comunidades reais, nos bairros. Juntas, juntos e juntes formamos um tecido forte, resistente aos ataques, à sujeira, às manchas de um lamaçal de ódio e rancor.

Não há paz para mulheres negras na política, é verdade. Mas fomos forjadas na luta, estamos prontas para as batalhas e, tenho certeza, venceremos essa guerra com diálogo, convencimento e, se necessário, com as armas políticas, sociais e educacionais que recebemos daquelas que vieram antes de nós e estão hoje ao nosso lado.

Formemos os quilombos nessa política branca e excludente. Não há luta que uma mulher negra não esteja pronta para travar – e vencer.

*Paolla Miguel é engenheira, vereadora e presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara de Campinas