É guerra
Se, de um lado, a guerra do leste europeu pode deflagrar uma guerra nuclear, que extinguiria todas as formas de vida que conhecemos, o ataque às terras indígenas em andamento no Brasil também poderá resultar no fim da civilização
Por Suzi Huff Theodoro*
O planeta vive e acompanha em tempo real o desenrolar de uma guerra que tem como prioridade a ocupação de um imenso território. Mais do que assegurar o controle geopolítico de uma região, as motivações declaradas para sustentar a invasão estão relacionadas à retórica e a uma alegada estratégia de defesa dos interesses de um coletivo difuso. Em paralelo aos mortais combates travados nas batalhas, existe uma guerra de narrativas acerca dos métodos e das armas utilizadas para viabilizar o avanço sobre as regiões em disputa, bem como a submissão de uma população fragilizada, que se vê a mercê de inimigos fortemente armados. A área em disputa configura-se como uma gigantesca barreira que impede o avanço e o controle de grupos que disputam a hegemonia econômica. Trata-se de uma terra rica em recursos naturais e humanos, mas frequentemente tida como inóspita, por seus colossais obstáculos físicos. Mas ainda que o conflito tenha eclodido recentemente, o processo de ocupação é histórico, o que tem obrigado uma parte da população a migrar ou vaguear por outras terras.
Porém, a deflagração do embate, as ameaças de morte e os riscos de massacres eminentes resultaram em um grande movimento de resistência que insiste em defender as diferentes partes do território, mesmo diante de um inimigo incomensuravelmente mais potente, tanto em armas quanto em equipamentos de guerra. Com um território de cerca de 991.500 km2 , a área em conflito é maior que a grande maioria dos países dos cinco continentes e, por conta da diversidade de origens, etnias e das intempéries, sua população distribui-se de forma pouco adensada nas diferentes partes do território.
Até aqui, o leitor poderia inferir que esta narrativa refere-se ao conflito entre Rússia e Ucrânia. Porém, ao contrário da distante contenda travada na Europa oriental, os movimentos de guerra descritos estão acontecendo aqui mesmo no Brasil. Esse embate, além de estar muito próximo do cotidiano de todos os brasileiros, tem o potencial de influenciar diretamente a vida de todo o planeta.
O fato novo é que a guerra de lá destravou e reforçou aqui um ataque frontal às populações indígenas que vivem em territórios dispersos em todo País, mas que prioritariamente habitam a região amazônica. Esses territórios representam mais de 90% do total de todas as terras indígenas brasileiras. Para se ter uma ideia do que isto representa, a Ucrânia possui uma extensão territorial que equivale a pouco mais que 50% das terras indígenas amazônicas.
A conexão entre as duas situações não é direta. Mas foi a guerra na Europa oriental que escancarou uma das grandes fragilidades do Brasil e que se refere a sua enorme dependência na importação de insumos – em especial o potássio – para viabilizar o seu potente agronegócio. Essa suscetibilidade abriu caminho para que gestores que deformam o interesse público investissem na derrubada das restrições legais que impedem a expropriação e o avanço nos territórios indígenas. O objetivo prioritário dessa verdadeira guerra contra os territórios e seu povo – que, importa explicitar, não seria bem vindo e nem contaria com a farta solidariedade para imigrar para terras do norte global -, são seus fartos bens naturais (minérios, florestas, águas e terras). A busca pela posse e usufruto dessa última fronteira significa mais do que um projeto perverso de um governo, já que revela um silêncio conveniente e conivente dos países que se valem de turbulências em democracias mais frágeis para ampliar suas reservas econômicas, apropriando-se dos recursos tão generosamente disponíveis nessas áreas.
Também na guerra daqui, as narrativas são parciais e, frequentemente, assimétricas. E tal como lá, as grandes potencias que se organizam em torno da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ou do G7 (grupo que reúne as sete maiores economias do mundo) escolhem e desempenham o papel de magnânimos salvadores do mundo. Para tanto, buscam estabelecer acordos e tratados que visam instituir mecanismos, obrigações e retaliações para preservar intacta a grande garantidora global de sequestro de carbono atmosférico – a Amazônia. Mas subliminarmente, suas decisões políticas e econômicas caminham na direção de submeter para dominar, mesmo que isto signifique fomentar ações de conflitos e mortes.
Mas no final das contas, se, de um lado, a guerra do leste europeu pode deflagrar uma guerra nuclear, que extinguiria todas as formas de vida que conhecemos, o ataque às terras indígenas em andamento no Brasil também poderá resultar no fim da civilização. O certo é que, aqui, a morte será mais lenta e, seguramente, mais traumática. As populações indígenas, que representam a nossa ancestralidade, seriam, seguramente, as primeiras a desaparecer.
Mas, afinal, perguntam-se os donos do mundo – incluindo neste grupo os representantes de uma tosca elite brasileira -, o que estes seres selvagens que vivem nas florestas tropicais significam frente à coletividade global, que esbanja uma comovente e seletiva solidariedade com refugiados? – Que morram!
Brutos e cegos, esquecem que o extermínio dos tais selvagens resultaria em eventos climáticos, crescentemente mais extremos, e trariam a morte para todos, incluindo os não selvagens que se calam frente ao massacre em andamento!
*Profa da Universidade de Brasília e diretora da Febrageo