Por Isadora Stentzler, jornalista e especialista em Direitos Humanos

Quando a primeira edição da constituição foi encadernada, indígenas avá-guaranis do Oeste do Paraná eram jogados como petecas. Um progresso que nada tinha a ver com os ancestrais costumes os fez juntar os seus e sair ao léu. A terra será fértil. Disseram. A terra será grande. Afirmaram. A terra será inundada. Concretizaram. Do esvaziamento dos avá-guaranis que viviam às margens do Rio Paraná, na tríplice fronteira, quando a usina de Itaipu foi construída, restou o desaparecimento de indígenas, a separação de famílias e amontoados de gente em territórios rochosos que até hoje estão em conflito com fazendeiros, sem receber demarcação.

Quando a tese do marco temporal ressurge ante os ecos da bancada ruralista e em tom de urgência, indígenas de todo o Brasil tremem. Se fosse essa tese aceita, restaria aos avá-guaranis do Oeste do Paraná viverem em palafitas no lago da Itaipu, sob um cemitério indígena que guarda as centenas de anos vividos ali e enraizados no fundo das águas. Mas como só suas histórias ficaram sob o espelho d’água, seria necessário saber por qual pedaço de chão seus pés arrastavam poeira naquele 5 de outubro de 1988 para dizer se dele mereciam um pedaço de terra.

A tese do marco temporal foi criada em 2009 e defende que terra indígena é apenas aquela onde indígenas estavam quando a constituição foi promulgada. O que ela quer dizer é que indígenas em terras não demarcadas só receberão a homologação do espaço se comprovarem que estavam ali desde 1988. O julgamento estava nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) que analisava o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, de Roraima. A sentença desse caso serviria de parâmetro para outros. E era ansiada. O placar do julgamento era de um para um, com o relator do caso, ministro Edson Fachin, votando contra o marco temporal e o o ministro Nunes Marques, a favor. Mas como mais um golpe a lá portugueses de caravela, a câmara aprovou a urgência a pauta para ser votada no plenário. Ou seja: tirou do STF a decisão e colocou nas mãos dos mais de 450 deputados e deputadas, em um momento cujo parlamento é infestado por ratos. Não a toa, a urgência foi aprovada por 324 deles. É o genocídio legislado. Institucionalizado.

A emoção de assistir o cacique Raoni subir a rampa do Palácio do Planalto na posse de Luís Inácio Lula da Silva (PT), em janeiro deste ano, dá lugar ao choro ante este duro golpe aos povos originários.

Ata-se as mãos do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e se deixa a herança de 1.500, da ditadura militar e dos quatro anos do fascismo bolsonarista realizar as mortes que não conseguiu concretizar.

É que terra é vida. Mas na visão capitalista a terra não passa de uma base para sustentar o lucro. É um acolchoado de veneno para uma planta crescer no ritmo humano. Poeira que precisa atender aos anseios da ganancia. O capitalismo não permite entender a terra como matéria prima para vida. Aos que não sucumbem a essas heresias do capital restou condená-los a uma data: se não provares que empoeirou os pés neste chão quando o livro de leis foi criado, não podes viver aqui – ainda que aquele que fale isso sequer lembre por onde passeava ou se já esperneava sem um cordão umbilical.

Foi a poucos meses atrás que nos horrorizamos com as cenas de indígenas yanomamis em corpos a pele e osso. Indígenas que abriram mão do descanso após a morte para ter suas imagens divulgadas e sensibilizar as autoridades. As terras em questão eram demarcadas. E se a sombra da fome e da vulnerabilidade devastou territórios homologados, o que ela fará em áreas que sequer possuem áreas delimitadas?

A espera do julgamento do marco temporal pelo STF reuniu multidões de povos em Brasilia. Só não se esperava que na noite de uma quarta-feira essa decisão cairia para um plenário com quórum ruralista.

Penso de novo nos avá-guaranis do Oeste do Paraná. As comunidades, 15 no total, vivem numa região chamada Guasu Guavirá, entre os municípios de Terra Roxa e Guaíra. Área retomada por eles após as remoções forçadas causadas pela Itaipu. Os conheci quando o ex-presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Marcelo Xavier, cancelou todos os processos de demarcação. A esperança batia à porta, mas voltou a estaca zero para famílias que lutavam por seu pedaço de terra. Por suas vidas.

Num deserto de notícias, encontrei histórias banais de violência explícita, sequestro, disparos de arma de fogo e mortes por atropelamento. Vingança pelo crime de ocupar a terra e nela plantar.

O marco temporal afeta estas comunidades e lhes tira tudo. Da aval para que mais violências aconteçam e que novos despejos forçados, como os que estas comunidades já carregam em suas historias, se repitam.

Ao acabar com aqueles que cuidam das florestas, o verde vira pasto. O azul se mancha de lodo de garimpo. E o amarelo vira faísca de fogo para se plantar a soja.

Por todos os seus ângulos, a tese do marco temporal se mostra inimiga de qualquer fôlego e manifestação de vida.

Aprova-la é carregar a arma e pertar o gatilho. Contra os indígenas. Contra nós.

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