‘Close’: as semelhanças entre o aclamado filme de Lukas Dhont e da obra do escritor Mário de Andrade
Filme teria tudo para ser um melodrama sobre a amizade masculina, mas é um grito que revela coisas não ditas sobre os amores entre homens
Por Aline Gomes
A primeira cena de “Close” (2022), filme de Lukas Dhont, apresenta Remi e Leo brincando. Ambos atuam como soldados e simulam situações de guerra, logo entendemos que eles estariam em um bunker. Num ambiente escuro, os dois sussurram para não serem descobertos pelos supostos inimigos. Um deles se posiciona como capitão e dá a ordem para evadirem. No comando combinado, eles fogem correndo. A cena se transforma, os protagonistas atingem o exterior do suposto bunker, passam por um punhado de árvores e, agora iluminados pela luz natural, adentram em uma plantação de flores. A câmera os acompanha perfilada na mesma velocidade que correm e assim podemos testemunhar de perto um mar florido sendo transpassado pelos dois garotos. Eles avançam sorridentes, enérgicos e triunfantes. Essa corrida pela terra farta de flores e cores transborda uma alegria genuína e poética. Mário de Andrade (1893-1945) colocou uma imagem dessas num verso: “Os meus amores são flores feitas do original” (Poesias Completas, Ed. Itatiaia, 1987).
O tema central do filme holandês é a amizade entre dois garotos de 13 anos, advindos de uma família de classe média europeia e passam por eventos típicos de jovens daquele contexto. No entanto, o contraste entre a violência da suposta guerra em que estavam mergulhados naquela brincadeira e o cenário bucólico no qual emergem durante a fuga, talvez seja um bom prólogo sobre a trajetória que será contada.
Lembrar do escritor Mário de Andrade ao ver “Close” pode parecer uma comparação descabida. É bem provável que Dhont não conheça a obra de Mário. Mas talvez tal lembrança se deva pelo motivo de que o poeta paulistano já tivesse tocado no assunto em sua obra. Um dos seus contos, “Frederico Paciência” de 1947, é sobre a amizade masculina e remete muito aos protagonistas do filme holandês. A narrativa de Mário apresenta Juca, o narrador do conto, e sua relação com Frederico. O espectador e o leitor mais atento perceberá que nas duas obras logo saltam semelhanças: são tramas vividas por dois jovens que compartilham suas experiências a partir de uma relação íntima e afetiva. Tanto no conto como no filme, o cotidiano dos adolescentes é preenchido por atividades muito semelhantes. Remi e Leo dormem no mesmo quarto, na mesma cama, vão juntos para a escola, frequentam regularmente um a casa do outro, trocam confidências e admiram-se de maneira recíproca. Apesar de Juca e Frederico não compartilharem o mesmo leito, eles realizam atividades muito parecidas aos meninos do filme: “a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da minha. Me contou tudo o que ele era (…) Paciência foi me buscar depois da janta. Saímos. Principiava o costume daqueles passeios longos no silêncio arborizado dos bairros. Frederico Paciência falava nos seus ideais”.
Mais uma semelhança entre “Close” e “Frederico Paciência” é o modo como os adolescentes transparecem suas afetividades, trocam gestos de carinho mútuo e demonstram uma intimidade típica de melhores amigos-amantes. No filme há ainda o círculo familiar que entende perfeitamente os laços construídos entre os meninos e nunca interpela essa convivência.
Talvez por ter dedicado muitos anos ao conto, Mário trabalhou nesse texto durante 18 anos, o escritor tenha maturado a relação dos garotos dentro de si e investe Juca de uma atitude que diferencia o conto do filme. Se na história de Leo e Remi presenciamos uma tensão corporal provocada por um desejo mútuo, mas que não se concretiza ou se manifesta por outros caminhos, em “Frederico Paciência” Juca não resiste à troca de flertes e lança um beijo roubado no amigo:
“Era um jogo de cabeças unidas quando sentávamos pra estudar juntos, de mãos unidas sempre, e alguma vez mais rara, corpos enlaçados nos passeios noturnos. E foi aquele beijo que lhe dei no nariz depois, depois não, de repente no meio duma discussão rancorosa sobre se Bonaparte era gênio, eu jurando que não, ele que sim. — Besta! — Besta é você! Dei o beijo, nem sei!”.
Conforme já apontado neste texto, a hipótese de que Lukas Dhont desconheça a literatura de Mário de Andrade, não nos impede de supor que ele seja um leitor do renomado poeta americano Walt Whitman (1819-1892). Na obra mais conhecida do poeta, “Folhas da Relva” (1855) no seu poema intitulado “We two boys together clinging”, que poderia ser traduzido como ‘Nós dois garotos agarrados (ou abraçados)’, encontramos o retrato de uma cumplicidade entre dois jovens muito próxima da relação criada entre Leo e Remi:
“Nós dois rapazes se agarrando / Um nunca abandonando o outro / Subindo e descendo as estradas, fazendo excursões para o norte e o sul / Curtindo o poder, cotovelos esticados, dedos entrelaçados / Armados e destemidos, comendo, bebendo, dormindo, amando / Sem outra lei a não ser a de nós mesmos sendo donos, marinheiros, soldados, ladrões, valentes”. (trad. Eric Mitchell Sabinson, editora Jabuticaba, 2016).
O poema de Whitman também inspirou uma obra do pintor David Hockney que deu o mesmo título do poema ao seu quadro de 1961. Na tela ele retratou dois corpos abraçados feitos por blocos geométricos difusos, com frases e palavras posicionadas de maneira diversa no espaço da obra. Um detalhe do quadro chama atenção, as cabeças dos garotos se tocam, indicando um beijo ou apenas uma aproximação de rostos, mas entre eles a palavra “never” (nunca) se impõe como um obstáculo. Lukas Dhont coloca uma cena muito semelhante quando Leo e Remi estão na sala de aula, sentados um ao lado do outro, tão próximos que suas cabeças se encostam, naquele momento a palavra “never” ainda não havia contaminado a relação dos meninos.
Levar a cabo esse enamoramento infelizmente tem um alto preço, o cineasta nos lembra disso engendrando o incômodo da sociedade e apontando um desconforto que ela não consegue lidar. Como podem dois meninos viverem tão livremente um amor? Jovens que cultivam os prazeres do corpo sem temor, parece muito audacioso aos olhos do outro, tal heroísmo custa caro e a sociedade imprime suas limitações, operando para eliminar justamente aquilo que ela não tem coragem de viver. Não por acaso, quando Leo e Remi chegam pela primeira vez na escola, a câmera, antes muito acostumada a exibir os meninos bem de perto, se afasta lentamente. Gradativamente o enquadramento se expande e mistura o retrato dos dois ao restante dos alunos. Essa ampliação resulta na aparição numerosa dos outros jovens, que de alguma forma generaliza Leo e Remi. A trajetória da câmera opera de forma análoga ao que aconteceria com eles, uma separação causada a partir do ponto em que são introjetados ao ambiente escolar, local em que estão sujeitos aos julgamentos valorativos e morais.
A violência entra como personagem marcante a partir desse momento. O relacionamento entre os adolescentes é posto em cheque aos olhos dos outros e Leo passa a ser atingido profundamente pelos comentários dos colegas sobre sua amizade com Remi. Depois de sentir amargamente o distanciamento do melhor amigo, Remi o confronta sobre a atitude de Leo, frustrado com a resposta que recebe ele inicia um choro tímido, ataca fisicamente seu melhor amigo e a briga se torna expansiva. No pátio da escola, diante dos outros colegas, a dor de Remi é exposta.
Voltando ao conto de Mário de Andrade, Frederico, também é confrontado no colégio sobre a intimidade que possui com Juca. A partir desses questionamentos a convivência entre os dois se danifica. O resultado se repete, a solidão e a frustração resultam em atos de violência: “Diante de uma amizade assim tão agressiva, não faltaram bocas de serpentes. Frederico Paciência, quando a indireta do gracejo foi tão clara que era impossível não perceber o que pensavam de nós, abriu os maiores olhos que lhe vi. Veio uma palidez de crime e ele cegou. Agarrou o ofensor pelo gasnete e o dobrou nas mãos inflexíveis.”
Em uma entrevista para o podcast da MUBI, o diretor de “Close” menciona o livro “Deep Secrets: boys’ friendships and the crisis of connection”, publicado em 2011. Neste trabalho, Niobe Way, pesquisadora americana que estuda o desenvolvimento social e emocional de meninos e meninas adolescentes por mais de três décadas, demonstra que a grande maioria das centenas de garotos que ela e sua equipe entrevistou na pesquisa sugere que as amizades mais próximas entre garotos durante a adolescência se comparam mais ao enredo de uma história de amor do que “O Senhor das Moscas” (referindo-se ao clássico livro de William Golding, publicado em 1954). E ainda menciona que os meninos se sentiriam completamente perdidos sem o amor e a amizade de seu melhor amigo.
Mesmo considerando a distância cronológica e cultural, além das diferenças dos suportes artísticos entre cinema, literatura e até as artes plásticas, todas as obras citadas aqui nos indicam que Lukas Dhont soube tratar de coisas que não são ditas entre os homens. Sem ser melodramático, “Close” demonstra que a amizade e o amor no universo masculino é potente e genuíno, que certamente algo se perde com a chegada da vida adulta. Perdas que são demarcadas pelas exigências normativas e morais, um muro que se constrói na vida adulta dos homens e os engessa em um padrão. Certamente o mundo seria muito mais interessante se homens e meninos pudessem correr livremente entre “flores feitas do original”.