Por Kaio Phelipe

Filósofo, documentarista e ativista, Cláudio Nascimento é um nome fundamental na história do movimento LGBTQIAP+ brasileiro. Ele dedicou mais de três décadas de sua vida à luta por direitos, visibilidade e dignidade para a comunidade. Sua trajetória, marcada por desafios, conquistas e um profundo compromisso com a justiça social, se entrelaça com a própria história do Grupo Arco-íris, uma das mais importantes organizações do país.

Nesta entrevista, mergulhamos nas memórias de Cláudio, desde sua juventude na Baixada Fluminense e o despertar para o ativismo, até a fundação e consolidação do Arco-íris como um farol de resistência e transformação. Ele nos leva por momentos cruciais, como o primeiro casamento gay no Brasil, a organização da primeira Parada do Orgulho e a incansável busca por políticas públicas que garantam a igualdade e o respeito.

1995: Cláudio Nascimento fez parte da Comissão Organizadora da 17ª Conferência Mundial da Associação Internacional de LGT, no Hotel Rio Palace, Posto 6, Copacabana, no Rio

Confira a entrevista completa:

Quando você entrou para o ativismo?

No próximo mês de junho, vai fazer trinta e seis anos que estou no ativismo LGBTQIAP+. Trinta e seis anos não são trinta e cinco dias. É preciso celebrar nossas lutas, né? Entrei no movimento LGBTQIAP+ quando eu tinha dezoito anos, mas antes já participava de movimentos sociais. Quando eu tinha treze anos, me conectei com a associação de moradores do meu bairro, em Austin, Nova Iguaçu (RJ).

Sou de uma família muito pobre, que, em um processo de êxodo rural, saiu da Bahia e veio para o Rio de Janeiro. Minha mãe não sabe ler nem escrever e meu pai também não. Somos catorze irmãos e viemos todos em um ônibus com o sonho de mudar de vida. Minha família é da construção civil, todos são pedreiros e pintores e meu pai era mestre de obra.

Sempre fui um moleque muito questionador e, quando eu tinha treze anos, comecei a me inserir no movimento do meu bairro por conta da situação das enchentes na Baixada Fluminense. Em Austin, de três em três meses, tinha enchente e todo mundo perdia tudo. Eu ficava muito triste ao ouvir os choros da minha mãe. Ela nunca chorava perto da gente, sempre chorava quando a gente ia dormir. Eu comecei a tentar entender qual era a razão daquela história toda, o descaso do governo, do poder público. Mas vi que também precisava ser construída uma consciência coletiva. Aí comecei a participar das associações. Isso foi por volta de 1984, 1985.

Também com treze ou catorze anos, entrei em contato com o Partido dos Trabalhadores. Na época, entrei para o PT pela Convergência Socialista, onde fui militante por muito tempo. Com catorze anos, entrei para o PT e fui aprender comunicação popular e como me defender enquanto militante. Naquela época, ainda havia muitos grupos de paramilitares. Hoje em dia, tem as milícias. Mas, antes, era o Esquadrão da Morte, Mão Branca, Mão Preta. Então a gente tinha que aprender a se defender para não ser mais um ativista morto.

Depois, me associei ao MNU (Movimento Negro Unificado), onde militei até meus dezoito anos. Com quinze anos, também entrei para o movimento estudantil. Nesse mesmo período, eu já estava liderando um movimento na Baixada Fluminense, com mais ou menos cento e vinte jovens do Alicerce da Juventude Socialista, que era a corrente jovem da Convergência, que existia no Brasil inteiro.

Até meus dezoito anos, não sabia que eu era gay. A educação que recebi dentro de casa foi extremamente conservadora. Uma parte da família era católica carismática e a outra evangélica e bem neopentecostal. Mas, a partir do momento que entrei para a militância, comecei a ter um pensamento muito libertário. Sempre digo que tenho sorte por ter entrado na militância e ter tido contato com muitos livros. A literatura foi muito importante na minha formação enquanto ativista.

Quando eu tinha dezoito anos, em um congresso de estudantes, um jovem da mesma idade que eu me roubou um beijo. Eu me emociono muito quando lembro disso. Fiquei duas semanas sentindo o calor dos lábios dele e a sensação de umidade. Passei duas semanas pensando naquilo, até que me olhei no espelho e disse para mim mesmo “bom, nenhuma menina até agora me causou isso”. E eu era muito namorador. Militante e CDF, não me faltava namorada.

É bom falar disso porque as pessoas adoram falar “ah, é gay porque não teve contato com coisa de homem, é gay porque sempre foi protegido…”. Eu trabalhei em construção civil por muito tempo, fui servente de obra dos dez aos dezessete anos.

Mas, enfim… a Convergência preparava os militantes para serem figuras públicas. Eu estava em um congresso para me tornar uma figura pública e eu tinha que fazer algumas tarefas. Uma delas era defender algumas pautas muito caras para a juventude e a Convergência era contrária. Por exemplo, a juventude do movimento estudantil defendia que o serviço militar deveria ser opcional e a Convergência defendia que o alistamento militar deveria ser obrigatório, que era necessário manter uma base popular nas forças armadas para elas não se tornarem um exército de mercenários. Uma ilusão, na minha opinião, de que a base popular não seria consumida por uma narrativa dos coronéis e outros dirigentes militares e conservadores. Eu discordava disso, mas, para me tornar uma figura pública, diziam que eu precisava passar por esse estágio. Na época, os ativistas que me conheciam me perguntavam se eu ia entrar nessa mesmo, que eu não podia fazer isso e tal.

Aí esse jovem que me roubou um beijo, que também era da Convergência, me provocava e dizia “você não vai defender um negócio desse, né? Você é libertário.” Quando eu tomei a decisão, na hora, no plenário, com o pessoal da JS (Juventude Socialista) e outras correntes do PT me pressionando, decidi não defender. Houve um choque da Convergência. Eu estava sentado na arquibancada e esse rapaz me puxou para trás e me deu um beijo na boca, assim, do nada, e disse “parabéns, agora você é um revolucionário, antes eu estava desconfiado disso”. Não sei onde ele está hoje, já procurei várias vezes, tentei localizá-lo, mas nunca o encontrei. Duas semanas depois desse beijo, tomei consciência da minha homossexualidade.

Como reagiu a essa descoberta?

Eu quis contar para a minha família, mas antes tentei o suicídio. Felizmente, não foi consumado e estou aqui para contar. Logo depois, contei para a minha família e tive que sair de casa. Eles não me aceitaram e tudo ficou muito difícil.

Fiquei entre a casa de outras pessoas e a rua por quase um ano. Morei nas ruas do Largo da Carioca, na Cinelândia, na Candelária, Madureira, Nova Iguaçu, vários lugares. Mas nem durante esse tempo me desconectei da militância. Tinha gente que queria me ajudar, mas as coisas não eram como são hoje. As pessoas tinham medo de acolher um jovem gay. Não sabiam como seria a reação dos outros. Recentemente, até encontrei uma mulher, no Saara, que me abraçou por trás enquanto eu estava distraído. Fiquei desesperado, foi perto da eleição do Bolsonaro, e tentei me desvencilhar, querendo sair do abraço, com medo de ser alguma violência, mas essa mulher gritou “me desculpa, Cláudio”. Ela disse “sou fulana de tal, você saiu da minha casa porque me ouviu falando besteira”, eu disse “senhora, isso não importa mais. O que importa é que a senhora me deu três noites na sua casa. Talvez em uma dessas três noites poderia ter acontecido alguma coisa, caso eu tivesse ficado na rua, então eu te agradeço”.

Compreendo que era uma época muito difícil para uma mãe solo sair de casa e deixar o filho e um amigo gay correndo o risco de alguma maldade dos outros. No momento que entendi a minha sexualidade, me olhei no espelho e decidi não esconder isso de ninguém.

Assim, fui fazendo uma transição do movimento estudantil para o movimento LGBTQIAP+. Aí comecei primeiro em Nova Iguaçu, na Associação de Gays Amigos de Nova Iguaçu, que é uma associação criada em 1988 ou 1989, fundada por Neno Ferreira, que continua na liderança desse grupo, que agora chama AGANIM, Associação de Gays Amigos de Nova Iguaçu e Mesquita.

2001, no pátio da Conferência Mundial contra o Racismo e as intolerâncias em Durban, África do Sul, Cláudio lidera manifestação contra o fundamentalismo religioso e a discriminação contra a lgbtifobia

Qual é o principal desafio da luta por direitos da comunidade LGBTQIAP+?

Diferentemente de outros segmentos sociais, o processo político do movimento LGBTQIAP+ passa, primeiro, por um processo de libertação individual. Primeiro, a pessoa precisa se reconhecer sem culpa para que possa se empoderar para uma questão coletiva.

Com dezoito anos, entrei para o movimento me sentindo muito sozinho, mas não por culpa da minha sexualidade. Venho de uma família nordestina, onde tudo era feito em reunião. No final de semana, todo mundo se reunia no quintal para comer e ouvir música e, de repente, isso me foi retirado.

Depois do período que fiquei na rua e na casa de amigos, encontrei um emprego no SINDSPREV (Sindicato dos Trabalhadores Federais em Saúde e Previdência no Estado do Rio de Janeiro), que tem uma história magnífica de conexão com a comunidade LGBTQIAP+. Foi o primeiro sindicato brasileiro a fazer uma semana do Dia do Orgulho LGBTQIAP+, em 1992. Então o sindicato me acolheu e fui trabalhar lá. Aí conversei com outra militante, que hoje é dirigente do MNU, Adriana Martins, e ela me convidou para participar de uma ocupação, no Méier.

Mas, depois eu queria voltar para Austin, queria provar para a minha família, que não dava nada por mim e dizia que logo eu voltaria pedindo arrego, que eu tinha dado certo, que a bicha tinha vencido. Nesse momento, eu já estava militando pelo PT e era dirigente dos congressos.

De 1992 para 1993, sofri ameaças de morte por questões políticas e, principalmente, por militar na causa LGBTQIAP+. Em Nova Iguaçu, minha casa foi invadida. Eu denunciava o assassinato de travestis que acontecia na Dutra. Minha casa foi toda quebrada e pixaram na parede “sua bicha safada, se continuar falando demais, vai amanhecer com a boca cheia de formiga”.

Nesse período, eu tinha conhecido um militante importante do Grupo Atobá, que foi um grupo de destaque no Rio de Janeiro, fundado em 1986, e esse militante, que depois virou meu companheiro, era o presidente do grupo. O nome dele era Adaltu Belarmino e eu me apaixonei por ele. Daí então começamos a namorar e resolvemos nos casar.

Nesse ínterim, o Grupo Arco-íris foi fundado por um grupo de militantes: Caê Rodrigues, John McCarthy, Augusto Andrade, Luiz Carlos Freitas e Toni Freitas. John McCarthy e Caê Rodrigues participaram dos primórdios do movimento LGBTQIAP+, em 1979, no Grupo SOMOS. Com toda questão da aids, Augusto Andrade e Luis Carlos Freitas, junto com Caê e John, fundaram o Arco-íris e tinham como objetivo trabalhar a autoestima, a construção de referências positivas e a produção de estratégias de visibilidade social e política. Sem esses fatores, seria impossível alcançar a construção de uma militância efetiva para os anos seguintes.

Daí eu decidi morar no Rio de Janeiro e militar com o Arco-íris, três meses depois do grupo ser fundado. No início, as pessoas achavam que eu iria militar no Grupo Atobá, por conta do meu marido. Eu não tinha oposição ao Atobá, mas tinha uma concepção política diferente. Eles tinham muitos confrontos com a igreja, com as forças armadas e criavam muitos protestos públicos. Eu acreditava que a gente precisava de um trabalho de base, para sustentar um número maior de pessoas e formar lideranças. Eram concepções diferentes, mas quando eles iam para um protesto, a gente aglutinava em boa parte das ações. É fundamental a possibilidade de pluralidade de ideias e até a possibilidade da contradição para oxigenar o movimento social e garantir que a gente dê conta de muitas frentes.

Em 1993, entrei para o Arco-íris e, em 1994, protagonizei, junto com o Adaltu, o primeiro casamento gay do Brasil. Recentemente, descobriram uma entrevista para a Hebe Camargo onde falamos disso e o vídeo viralizou. Nós nos casamos e não foi fácil na época. Era período de candidatura do Lula e a gente estava discutindo para que tivesse a pauta LGBTQIAP+ na plataforma da candidatura dele. A sigla ainda não era LGBTQIAP+, era GLT. GLS é outra categoria e nunca teve nada a ver com o movimento. GLS foi uma categoria construída pelo mercado de boates, que tinha como estratégia de lucro a higienização para captação de público, esse mercado tinha medo de se associar à imagem de trans e travestis. A sigla GLS não tem nada a ver com o movimento social. O movimento GLT participou da fundação do primeiro grupo de travestis e trans do Brasil, com a traviarca Jovanna Baby, onde eu estava presente, em 1992, aqui no Rio de Janeiro. Meu companheiro Adaltu ajudou a escrever o estatuto do grupo ASTRAL, primeiro grupo oficial de pessoas trans e travestis.

1994: Cláudio Nascimento e Adauto Belarmino protagonizaram o primeiro casamento gay público do Brasil

Como foi o casamento?

O casamento ia ser celebrado por uma pastora metodista, de esquerda, negra, que se ofereceu para conduzir a cerimônia. Mas a gente achava muito perigoso para uma mulher negra aparecer celebrando um casamento gay naquela época.

Um ativista do Grupo Atobá, Raimundo Pereira da Silva, também muito famoso dentro do ativismo, era uma espécie de relações públicas do movimento e ele sempre oferecia pautas e furos para os jornais. Raimundo sempre foi vinculado à pequena burguesia e aos grandes eventos e era muito importante para a gente ter alguém para fazer essa conexão. Ele, sem a nossa autorização, falou para os jornais sobre o nosso casamento. Saiu em tudo que era jornal que dois homens casariam na data tal, que a cerimônia seria feita por uma mulher negra e os noivos usariam uma guirlanda de flores de laranjeiras, como nos casamentos suecos.

Nesse dia, fui para o meu trabalho e o Adaltu para o dele, a gente ainda não sabia da notícia. Quando cheguei no meu local de trabalho, tinha vários cinegrafistas, fotógrafos e jornalistas. Eu não estava entendendo nada e aí me perguntaram sobre o casamento e os jornalistas me mostraram a matéria. Eu falei “pera aí um pouquinho” e liguei para o Adaltu, que me disse que no trabalho dele o cenário era o mesmo. Aí fui ao encontro dele para a gente organizar o que ia dizer.

Eu estava achando que eles não tinham se interessado pelo casamento, mas sim por ser uma pastora metodista que ia celebrar e que se a gente dissesse que não seria mais com ela, eles perderiam o interesse nessa história toda. Combinamos de falar isso, demos uma outra data para o jornal, falamos que seria dois meses depois, para despistar. Folha de S.Paulo, Estado de São Paulo, O Dia, Sem Censura… tudo que era mídia estava lá querendo falar com a gente.

No dia seguinte, a gente foi capa de todos os jornais. Se não na matéria principal, logo depois da manchete. Tinha uma que era “eles serão marido e marido”. Adaltu e eu conversamos, a gente não tinha nada a perder e precisávamos de visibilidade para o movimento, então resolvemos assumir essa história de frente. Meu companheiro era uma pessoa vivendo com HIV e eu uma pessoa sem HIV. Ele já tinha a sorologia exposta e me perguntou se a gente podia levantar essa pauta, eu falei “óbvio”. Já era tempo de discutir sobre isso. Já se falava sobre camisinha, mas tinha muito preconceito ao falar de relacionamento entre pessoas com sorologias diferentes – quando, na verdade, as pessoas nem sabem a própria sorologia. A gente foi fazendo tudo sem ter noção do que isso se transformaria e acabamos virando referência para esse debate na época. Fomos em muitos programas falar sobre casamento e sobre HIV.

1994: Cláudio Nascimento e Adauto Belarmino protagonizaram o primeiro casamento gay público do Brasil

Depois daquela matéria, a gente assumiu o casamento e começamos a sofrer ameaças de morte. Na época, tinha um grupo de skinheads neonazistas chamado Carecas do Brasil, que tinha sede no Rio de Janeiro e em São Paulo. Inclusive, dois anos antes do casamento, esse grupo atacou um estande do Grupo Atobá em um encontro mundial, a ECO-92, e bateram nas pessoas. Esse grupo começou a ameaçar a gente de morte em 1994. O SINDSPREV cuidou da gente e pagaram por seguranças. A gente não tinha confiança na Polícia Federal. A polícia acompanhava, dava assistência, mas a gente preferiu uma segurança particular. Não vê o caso de Marielle Franco e Anderson Gomes? Foram assassinados e anos depois foi descoberto o envolvimento de um delegado. Então, o SINDSPREV financiou a nossa segurança durante um ano. Era assim, eu estava em um lugar e recebia uma mensagem dizendo “acabei de ver você entrando em tal lugar”, “ontem você estava no lugar tal”.

Mas a gente fez o casamento assim mesmo. Foi a coisa mais linda do mundo e fico muito emocionado lembrando disso. Foi no SINDSPREV, na Lapa, Rua Joaquim Silva. A gente recebeu informações de que teria uma bomba lá – o SINDSPREV virou alvo de ameaças junto com a gente. No dia do casamento, a rua estava lotada, a gente falou “pronto, vão dar uma surra na gente, estamos fudidos”, começaram a bater no carro. Aí a gente viu que as pessoas estavam jogando pétalas de rosas e grãos de arroz. Quando a gente chegou no local, era um bando de gente com flor na mão. Foi impressionante. Tinha um hotel perto e as bichas com mais dinheiro alugaram os quartos que davam para a rua para ver a gente chegar. Foi uma sensação. Se fosse nos tempos de hoje, teria viralizado, mas foi tudo coberto pela imprensa. Aí aconteceu o casamento.

Na época, tinha uma loja chamada Mesbla, na Cinelândia, que inclusive era um local de pegação. Nós fomos no departamento dessa loja e colocamos uma lista de casamento, a primeira lista de um casal gay, para ter um enxoval. E, de sacanagem, também colocamos uma lista em uma loja muito mais cara, uma grife para acessórios de casa. A gente sabia que não ia rolar nada na loja cara, tanto é que não rolou mesmo. Mas na Mesbla rolou. O jornal O Dia publicou a lista e virou um acontecimento. As pessoas iam até a loja só para ver a lista. Virou um passeio visitar a Mesbla. Lembro de quando fomos lá para fazer a lista. Falei com a atendente que já tinha lido todo o regulamento e não dizia nada que era exclusivamente para casal de homem e mulher, falei com a atendente “então não tem como nos impedir”. Ela desceu a mucosa pela garganta, falou com o gerente e ele disse que a gente poderia fazer. Na hora de preencher com os nossos dados, na ficha só tinha “noivo” e “noiva”, fiz esse apontamento e a atendente explicou que para alterar demoraria muito tempo. A internet ainda não era tão rápida, tudo demorava meses para ser alterado. Aí meu marido na mesma hora disse “então eu vou ser a noiva, para mim não tem problema nenhum”.

1994: primeiro casamento gay público do Brasil, Lapa, Rio de Janeiro. os noivos Cláudio Nascimento e Adauto Belarmino com o celebrante Paulo Fuhro.
1994: primeiro casamento gay público do Brasil, Lapa, Rio de Janeiro. os noivos Cláudio Nascimento e Adauto Belarmino com o celebrante Paulo Fuhro

Como foi o início do Grupo Arco-íris?

Luiz Carlos e Augusto Andrade foram para a Califórnia, viram casais de mãos dadas e eles tentaram também dar as mãos, mas não conseguiram, isso ainda lá em São Francisco. Eles voltaram para o Rio de Janeiro com isso na cabeça e, semanas depois, receberam a notícia que um amigo deles tinha morrido em decorrência da aids, sozinho, dentro de um apartamento. O amigo não aceitava muito bem a própria sexualidade e não contou a sorologia para ninguém. Foi duro para o casal ver essa situação. Eles tiveram um insight sobre o que presenciaram em São Francisco. Aqui no Brasil não existia uma cultura de expressão afetiva das pessoas homossexuais e travestis. Eles queriam um lugar para poder falar, falar, falar e não chegar a conclusão nenhuma. Muitos militantes retrucavam “mas vai ter uma reunião sem ter conclusão?”, eles respondiam “querido, em uma assembleia reivindicando melhores salários, isso faz sentido, mas chegar a uma conclusão discutindo sobre sexualidade, não. As pessoas precisam sair daqui com o sentimento de que conseguiram se expressar”.

O Arco-íris, em menos de um ano, já era o maior grupo LGBTQI+ do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil. Naquela época, a gente chegou a ter reunião com oitenta, cem pessoas. Em 1993, nossos encontros aconteciam em boates, bares, sedes culturais. Muitas reuniões foram feitas no Centro Cultural das Laranjeiras. Em 1994, a gente estava com um desafio. Em 1991, meu companheiro Adaltu, que ainda não era meu marido e a gente ainda não se conhecia, ele já era presidente do Grupo Atobá e foi para a Conferência dos Direitos Humanos, na Áustria. Na conferência, ele descobre que tem um encontro de ativistas da ILGA (Associação Internacional de Gays e Lésbicas). Lá, estavam discutindo quais seriam as próximas sedes das conferências mundiais de gays. Olha que cara abusado: um jovem, de vinte e seis anos, levanta a mão e diz que o Brasil queria ser candidato. Ele era o único do Brasil lá e estavam discutindo o local da conferência de 1993 e de 1995. Depois, ele me contou que pensou “a de 1993 vai ser muito abuso, faltava pouco tempo”, aí ele sugeriu a de 1995 ou de 1997.

O Toni Reis, que agora é presidente da Aliança Nacional LGBTQI+, era presidente do grupo Dignidade, de Curitiba, ele ligou de Nova York para vários militantes do RJ, e para nós disse “Adaltu, Cláudio, preciso que vocês reúnam a militância toda, que a gente precisa conversar sobre a conferência mundial, o Brasil foi candidato e a conferência de 1995 vai acontecer no Rio de Janeiro, eles querem confirmar se vocês têm condições de seguir os protocolos”. Tinha muitas regras, tantos por cento de gays, tantos por cento de lésbicas, língua de sinais, tradução de idioma e tal. Eu, Adaltu, Augusto e Luiz Carlos fizemos uma reunião e falamos “vamos ter que mentir para o Toni” – essa é a primeira vez que eu estou falando isso tão abertamente –, “se a gente disser a verdade para ele, que não temos nada, ele não vai ter segurança para defender a nossa candidatura”.

A gente construiu toda essa militância sem o advento da internet, tinha que marcar horário com a empresa de telefonia para fazer uma ligação. Foi antes do fax. Quando o Arco-íris comprou um fax, foi uma coisa muito chique, muito maravilhosa. O Toni defendeu que o Rio tinha, sim, condições de fazer o evento. A gente começou a organizar as coisas e realizamos a maior conferência da história da ILGA até aquele período. Trouxemos mil e oitocentos representantes de quarenta países, com mais de trezentos militantes com passagem aérea paga pela organização do Rio de Janeiro. A gente não podia fazer feio. Foi muito importante o grupo ter uma inserção na classe média daquela época, se não a gente não teria conseguido articular uma série de suportes. Renato Russo e Marta Suplicy foram presidentes de honra da conferência.

O Renato Russo participava do grupo. Ele frequentava as oficinas, mas ele não queria que as pessoas o tratassem como celebridade. Era assim, a gente chegava e dizia, por exemplo, “hoje nós vamos discutir os conceitos de ativo e passivo”, “vamos discutir se tamanho é documento”, “relação com a família” e todo mundo dialogava, tirava a vestimenta de militante e falava em primeira pessoa. A gente também precisa falar sobre nossas experiências, nossos sentimentos, e o Renato Russo queria fazer igual e falar das suas dores, das suas fantasias. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas falavam “ele é um dos maiores artistas do país”.

Qual memória guarda da Primeira Parada do Orgulho?

Em 1993, teve uma tentativa de Parada aqui no Rio de Janeiro, onde se reuniram trinta pessoas, todo mundo meio triste, conversando, alguns chamando a comunidade de traidora. Mas o Arco-íris tinha outra visão. A gente sabia que era preciso ter um sentimento de pertencimento, de comunidade e, então, a gente começou a trabalhar a individualidade e, aos poucos, fomos costurando a ideia de comunidade. Não seria de uma hora para a outra que a gente conseguiria colocar mil pessoas na rua.

Em 1994, a gente achou melhor não repetir a mesma fórmula e decidimos construir um evento sem caminhada, nos jardins do Museu de Arte Moderna, no Flamengo. O nome do evento foi Tarde de Convivência Pela Dignidade Homossexual. Foi o nome mais chique que a gente arranjou. Se fosse hoje, todo mundo acharia demodê, horrível, um nome tão grande. Aí foi uma tarde de brincadeiras, cabo de guerra, arte e poesia. Rose Marie Muraro estava presente, uma grande escritora e feminista. Conseguimos reunir muito mais gente do que no ano anterior. Fomos trabalhando, nas oficinas do Arco-íris, a ideia das pessoas se verem em público. Hoje em dia isso parece um pensamento óbvio, mas antes não era. A gente era colocado em uma categoria de bobo da corte ou de exótico. Sempre que a gente era abordado na televisão, era em programa de humor ou em pautas de saúde mental. A gente precisa falar sobre esses assuntos, mas esse era o único lugar que nos colocavam.

1995 – Claudio Nascimento (com jaqueta jeans), Augusto Andrade e Luiz Carlos Freitas, fundadores do Grupo Arco-Iris, na parada do orgulho lgbti+ Rio na Praia de Copacabana, a primeira parada do Brasil

Em 1995, fizemos a conferência mundial, uma oportunidade sem igual, e decidimos fazer a primeira passeata do orgulho do Brasil, como encerramento da conferência. Nessa passeata, a gente fez um “beijaço”. Algumas pessoas durante as oficinas do grupo, ainda relataram o medo que tinham de aparecer em público. Buscando uma solução, a gente decidiu confeccionar máscaras. Vimos com os participantes se eles topariam participar dessa forma e as respostas foram positivas. Apesar do medo do que podia acontecer, ninguém queria deixar de participar. Existia o medo de sair no jornal, ser expulso de casa, ser demitido do emprego… Fizemos as máscaras de papel machê com um grupo de artistas plásticos que frequentavam o grupo. O resultado foi icônico. Durante a passeata, algumas pessoas foram tirando as máscaras. Daí inauguramos o “beijaço”, que hoje em dia chamam de “beijato”. O beijo era uma mensagem extremamente poderosa e revolucionária.

Nesse dia, também foi a primeira vez que a bandeira do arco-íris apareceu em um evento público aqui no Brasil, e é uma coisa que fazemos até hoje na Parada do Orgulho de Copacabana. Ela mede cento e vinte quatro metros de comprimento e dez de largura, é a maior do mundo. Antes, o movimento usava o triângulo rosa, que tem uma mensagem muito poderosa, mas que carrega muita dor e a gente entendia que era importante ter uma mensagem de revolução, de afeto, felicidade e não só o carimbo que a Alemanha nazista colocava em nossos corpos.

Como a bandeira do arco-íris se tornou um símbolo do movimento?

A bandeira nasce de uma passeata na comemoração de um ano da revolução de Stonewall, onde várias faixas de tecidos foram erguidas em comemoração. Daí Gilbert Baker idealizou a bandeira. Não eram as mesmas cores que vemos nas bandeiras de hoje.

Com o passar do tempo, as cores foram sendo adaptadas para os tons mais utilizados na indústria de tecido. A bicha era muito inteligente, ele pensou em uma bandeira e o mundo inteiro aderiu. A ideia de utilizar a bandeira do arco-íris na passeata que fizemos aqui, em 1995, foi para utilizar um símbolo que nasceu de um de nós, pensado por um de nós. A gente também é a primeira organização a utilizar a nova bandeira, que chamamos de Arco-íris Progressista e inclui as bandeiras trans e antirracista, em um evento, na Parada de 2022. Muitos setores da militância criticaram, falaram que a gente como uma instituição histórica não poderia ter feito isso, já que não foi deliberado em lugar nenhum.

A gente entende que tem processos que são construídos naturalmente, a gente vai acumulando forças e chega um momento que se torna espontâneo alguns acontecimentos e as pessoas precisam entender isso. Utilizamos a nova bandeira com o intuito de incluir mais pessoas intersexos, mais pessoas trans e trazer o debate do racismo. Em 2022, o Arco-íris acrescentou outras cores na bandeira tradicional dizendo que o movimento LGBTI+ precisa incorporar a luta antirracista. Eu, como um homem negro e nordestino, sei bem o que é o racismo até dentro da comunidade LGBTI+. Mesmo sendo uma liderança, em algumas situações preciso repetir a mesma coisa trinta vezes até ser ouvido enquanto uma liderança branca precisa falar uma única vez e vai ganhar as palmas de todo mundo.

Cruzando os dados de violência LGBTIfóbica, a maioria absoluta, em torno de 60%, são pessoas negras que sofrem discriminação. A gente também incorporou a bandeira do movimento trans. As pessoas mais violentadas da comunidade são pessoas trans e elas precisam estar em destaque. A bandeira precisa representar o que estamos discutindo.

Qual é o papel do Grupo Arco-íris atualmente?

O grupo, hoje, é uma das poucas organizações que possui sede e é institucionalizado. A gente atua em diversas agendas políticas e, inclusive, oferecemos o espaço da sede para que coletivos possam se organizar, se reunir e produzir seu próprio conteúdo. A gente não tem a pretensão de lutar sozinho, encorajamos todo mundo a se organizar e não criar empecilhos. Não dá para formatar o processo antes de o processo ser criado.

Nós também temos a área de atendimento comunitário para atender a população LGBTI+ em situação de vulnerabilidade, que não tem advogado, não tem psicólogo, não tem assistência social, que foi expulsa de casa, que depende de pessoas preconceituosas dentro de casa, que tem dificuldade de se inserir socialmente. A gente trabalha muito com atenção e apoio à comunidade LGBTI+ que não tem uma rede de proteção em torno delas. A classe média alta sempre tem uma rede de proteção, um amigo advogado, psicólogo e tal. Então, quando ela precisa de algo, acaba buscando essa rede.

Para você ter ideia, no primeiro trimestre de 2024, a gente atendeu setecentas e três pessoas, isso só no Rio de Janeiro, com demandas de violação de direitos. Por ano, a gente atende em torno de três mil e quinhentas pessoas. Por isso, temos uma equipe de profissionais de referência. A gente trabalha com a população LGBTI+ que necessita de apoio social, jurídico e psicológico, mas também atendemos demanda de insegurança alimentar e temos um projeto de empregabilidade.

Outra área de ativismo muito forte aqui é o controle social de políticas públicas. O Grupo Arco-íris está em diversos conselhos municipais, estaduais e nacionais acompanhando, monitorando e cobrando a efetividade de políticas públicas. No monitoramento, por exemplo, nós fizemos o primeiro levantamento sobre políticas públicas no Brasil, que se chama Mapeamento das Políticas Públicas Para LGBTI+ nos Governos Estaduais e Distrito Federal. Esse estudo do Arco-íris em parceria com a Aliança Nacional LGBTI+ se tornou uma referência para o Ministério Público Federal, que criou vinte e seis procedimentos estaduais cobrando os estados para responderem porque estão em situação X. Isso é revolução, o movimento social criando dados e interferindo na política pública. Em maio de 2024 nós lançamos em São Paulo um relatório chamado Mapeamento de Políticas Públicas LGBTI+ nas Capitais Brasileiras. Nós mapeamos todas as capitais, tudo através da Lei de Acesso à Informação, que obriga os órgãos públicos a responderem o que estão fazendo e o que não estão. Depois desse estudo, nós soltamos a plataforma nacional LGBTI+ de políticas públicas para cobrar os candidatos à prefeitura e à vereança de assumirem os compromissos com as pautas da comunidade.

2009 com Jane Di Castro

Também desenvolvemos um ativismo cultural. Temos entendido que é fundamental reformar e revisar linguagens artísticas e, cada vez mais, dialogar com a juventude. Primeiro, a Parada do Orgulho de Copacabana, ela tem uma agenda extremamente política, mas também um viés cultural. Todo ano fazemos seleção para cantores e cantores se apresentarem nos trios. Temos algumas regras: pelo menos 50% dos selecionados precisam ser pessoas negras, 50% precisam ser de gêneros femininos, 50% precisam ser de territórios de favela. A gente foi entendendo a importância de empretecer as atrações culturais. A pessoa preta LGBTI+ precisa se ver no palco. Muita gente critica a Parada falando que é só uma festa. Eu digo que é uma festa e uma manifestação. Nós precisamos entender que é preciso celebrar a nossa existência e a história do movimento até aqui.

A comunidade precisa do respiro das Paradas. Todo ano a gente tem um tema e o de 2023 foi “O amor, a cidadania e a luta LGBTI+ jamais vão recuar”. Ano passado foi “Somar para fortalecer a cidadania LGBTI+”. Os temas foram escolhidos como uma resposta aos movimentos da extrema direita dentro do Congresso Nacional, querendo regredir direitos que conquistamos no STF. Na Parada, a gente consegue pegar a política e conectar com uma agenda cultural. Dentro do grupo, a gente tem ainda alguns projetos importantes como o Museu Movimento LGBTI+, que a gente vem trabalhando há algum tempo, há mais ou menos dez anos, mas com mais frequência há cinco anos. A gente produziu uma exposição no metrô do Largo da Carioca em 2023 junto com a Unirio e a UFPEL falando um pouco sobre a nossa história de luta.

Estamos, nesse momento, fazendo a identificação e a catalogação de documentos históricos do movimento, documentos importantes, coleções completas do jornal Lampião da Esquina e de diversos jornais que nasceram e fecharam durante a década de noventa. Hoje, temos um acervo de mais de trezentas entrevistas de ativistas da década de setenta, oitenta e noventa. Hoje, o maior acervo de história oral sobre o movimento é o Grupo Arco-íris é do Centro de Memória João Mascarenhas, da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

Junto com o Marcio Caetano, realizei um filme que conta a trajetória do movimento LGBTI+ durante a ditadura militar, Quando ousamos existir, que até agora já ganhou seis prêmios. Eu sou documentarista de formação também. Sou filósofo especialista em políticas públicas e documentarista. Agora nós estamos trabalhando em um segundo filme que representará a década de noventa do movimento. Por enquanto, pretendemos criar uma trilogia e achamos que a década de noventa merece um filme só para ela porque foi coisa pipocando de tudo que é lado, a parte cultural, a parte política, a presença na televisão, as cantoras da MPB. Em 1996, por exemplo, o movimento LGBTI+ criou estratégias para lançar candidaturas da comunidade em vários estados brasileiros. Era eleição municipal. Eu fui candidato no Rio de Janeiro, o Luiz Mott foi candidato na Bahia. Totalizamos vinte e seis candidaturas LGBTI+, a maioria pelo PT. Esse período da década de noventa foi muito importante para construir as bases do movimento da atualidade. Foi o período em que começamos a discutir o conceito de políticas públicas. Enfim, no filme dos anos 2000 pretendemos pegar o debate da cidadania formal e a entrada do Estado. Ainda temos ideia para um quarto filme, representando 2015 para cá, falando sobre a explosão identitária, mas esse ainda estamos em dúvida se vamos chegar até ele, já que os assuntos ainda estão acontecendo.

Na parte cultural, a gente também tem o Coro Arco-íris Por Prazer, que reinaugurou em 2023 e agora já conta com quase noventa membros. Tem gente trans, preta, gay, hetero. O coro hoje é uma potência e uma forma de ativismo importante, de convivência. A gente tem olhado muito para as redes sociais e elas criam uma falsa ilusão de que todo mundo está incluído, que toda a comunidade LGBTI+ está no Instagram e que está todo mundo bem, mas isso é mentira, não é bem assim. Atrás das redes existe muita dúvida, muita solidão, muita incerteza. Muita gente vem para o coral buscando a convivência de pares. Uma pessoa que entra no Arco-íris hoje acessa muitas áreas de ativismo e cultura. 

As fotos desta reportagem são de arquivo pessoal.