Por Hyader Epaminondas

Proibido pela ditadura militar em 1976, logo após sua exibição no Festival de Brasília, Iracema: Uma Transa Amazônica foi condenado ao silêncio por revelar, sem pudores, o que o regime queria manter enterrado: a floresta dilacerada em nome de um falso progresso e os corpos amazônicos reduzidos a mercadoria descartável.

Cinco décadas depois, o filme que jamais coube por completo entre a ficção e o documentário talvez encontre justamente nesse entrelugar a razão de sua permanência, uma obra que ainda arde como ferida aberta na memória do país. Não apenas pela lembrança do que denunciava, mas pela constatação dolorosa de que o tempo não curou nada. Pelo contrário: diante dos recentes desastres ambientais no Brasil e das consequências levianas para os responsáveis, sua crítica ganha novas camadas de urgência.

O olhar de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, híbrido e inquieto, recusa o panfleto e aposta numa lucidez quase ingênua, onde o absurdo emerge por si só, sem a necessidade de sublinhado. É a brutalidade do real que grita. O filme apenas escuta, enquadra e mostra. A câmera, sempre inquieta, recusa o conforto da neutralidade. O granulado típico da época auxilia na viagem no tempo, mesmo no presente da restauração.

Ela treme, se aproxima demais, se suja, respira junto da terra e do suor. Há um calor incômodo em cada plano, um rastro vermelho que não vem só do sol, mas da denúncia viva que pulsa por trás das imagens e do caminhão que atravessa a floresta como um punhal cravado na pele da terra. A modernização da Amazônia, capturada ali como um processo de ocupação, violação e apagamento, desenha um retrato de colonização contínua, onde as promessas de futuro atropelam tudo que insiste em existir.

Agora restaurado em 4K pela Gullane+, Iracema retorna com suas cicatrizes ampliadas pela nitidez. O tempo não suavizou o impacto, apenas o tornou mais claro. O que foi censurado por ser incômodo demais hoje se impõe como um espelho cruel, um lamento que se confunde com o presente pela falta de mudança e pelas realizações que nunca se concretizaram. Um grito que a história tentou sufocar, mas que sobreviveu e continua ecoando com a urgência de tudo aquilo que ainda sangra.

Entre a câmera e a floresta: a viagem de Iracema

A travessia proposta por Iracema: Uma Transa Amazônica é tanto geográfica quanto sensorial, ética e simbólica. A câmera, no banco do carona, segue o caminhão de Tião Brasil Grande, interpretado por Paulo César Pereio, enquanto atravessa estradas lamacentas, vilarejos precários e zonas de garimpo onde a violência se tornou linguagem corrente. Mas é a Iracema de Edna de Cássia, figura adolescente e marginalizada, quem nos guia de fato. Ela carrega no corpo o peso da floresta e do abandono, ora erotizada, ora descartada, sempre silenciada.

O que o filme propõe é um deslocamento constante: entre paisagens e corpos, entre documentário e ficção, entre desejo e exploração. A viagem é longa e desconfortável porque revela, sem filtros, como o Brasil construiu sua ideia de progresso atropelando os que vivem fora da rota oficial. É nesse espaço entre a câmera e a floresta que a verdade brota: crua, quente, impossível de ser ignorada.

Mais do que personagem, Iracema é síntese desse apagamento histórico, da hipersexualização dos corpos racializados e da promessa traída de um país que nunca foi para todos. Sua presença no filme não busca complexidade psicológica, mas sim potência simbólica: uma jovem indígena, pobre, arrancada do anonimato e transformada em espelho incômodo da exploração sexual, ambiental e social que se entrelaçam no coração da Amazônia. Enquanto Tião, o caminhoneiro branco que cruza o país com seus discursos de progresso e cinismo, representa a marcha predatória da modernidade, Iracema é o corpo sobre o qual essa marcha atravessa e esmaga.

Ela não é apenas vítima, ela é testemunha. Seu silêncio, sua fragilidade e até seus momentos de provocação carregam a dor coletiva de uma região sistematicamente violentada. Cada gesto, cada plano que a registra, carrega o peso do que a ditadura tentou esconder: que a Amazônia tem rosto, nome, corpo e história, e que sua destruição não é apenas ecológica, mas humana.

Entre a câmera e a realidade, Iracema se torna o elo perdido entre o Brasil real e o Brasil oficial da época dos anos de chumbo. E sua viagem, forçada e sem destino, segue ecoando como um aviso: enquanto continuarmos tratando pessoas e territórios como descartáveis, o país seguirá em ruínas, ainda que com estradas asfaltadas.

Foto: Divulgação
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Quando restaurar a imagem não basta: Iracema volta, o Brasil continua no mesmo lugar

O discurso anti-ecológico permanece, mas se transformou. Se em Iracema: Uma Transa Amazônica ele era exposto com sarcasmo, hoje é bradado com orgulho, um símbolo da ignorância institucionalizada e da recusa em compreender os impactos ambientais. Tião encarna um estereótipo que ainda resiste no imaginário nacional: o do “vencedor da classe média” que avança a qualquer custo, guiado pela máxima distorcida de que “vence na vida quem mais caminha”.

A Transamazônica, epicentro simbólico e físico desse Brasil de promessas rasgadas, segue incompleta: com trechos intransitáveis, sem asfalto e em condições precárias, revelando o fracasso de um projeto que priorizou a ocupação predatória à dignidade dos locais. A própria disputa por terra, pano de fundo constante do filme, continua marcada pela subjetividade legal, onde a ausência de documentação pesa contra os pequenos, e a grilagem é legitimada pelo poder.

A restauração da imagem não vem acompanhada da restauração da justiça, seja social, ambiental ou histórica. Ao contrário: revela, com nitidez brutal, como seguimos presos a uma lógica colonial onde corpos não brancos, femininos e periféricos continuam sendo os primeiros a desaparecer, sob a lama dos garimpos, nas estatísticas da fome, nos dados do feminicídio, nos becos onde a bala é o fim mais previsível.

O Brasil que recebe Iracema remasterizado é o mesmo que normaliza a militarização das periferias, que elege discursos negacionistas, que destrói políticas de proteção ambiental em troca de lucro imediato. É o mesmo país que continua confundindo desenvolvimento com destruição, e que ainda se recusa a escutar quem vive à margem, como se a margem não fosse o centro do que realmente importa.

Assistir Iracema: Uma Transa Amazônica hoje é como encarar um espelho rachado: ele não reflete um passado longínquo, mas um presente que insiste em repetir o erro. Se há algo de profético no filme, é justamente a constatação de que o país não falhou em cumprir promessas, ele jamais teve a intenção de cumpri-las.