Por Lohuama Alves

É no interior que, muitas vezes, o audiovisual se torna a única janela para o mundo — e também um reflexo potente da própria realidade. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, o cinema há muito tempo tem sido concentrado nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo.

No entanto, uma movimentação impactante e transformadora tem ganhado cada vez mais espaço: o cinema realizado longe dos grandes centros — aquele produzido, exibido e celebrado nas pequenas cidades e nas regiões mais afastadas dos grandes circuitos comerciais. Nesse contexto, iniciativas e festivais vêm fortalecendo o audiovisual como instrumento de identidade, resistência e pertencimento.

Fazer cinema no interior é, antes de tudo, um ato de resistência. A falta de infraestrutura, a escassez de recursos e a dificuldade de circulação das obras são desafios constantes. Ainda assim, realizadores, coletivos e agentes culturais têm construído redes sólidas de produção e exibição, desafiando o centralismo cultural e revelando narrativas que fogem dos clichês metropolitanos.

Festivais que brilham no interior

Muito além de vitrines para exibição, os festivais de cinema no interior têm se tornado espaços de criação coletiva, onde surgem parcerias, roteiros, oficinas e até obras completas. Alguns se consolidaram como verdadeiros polos de valorização do cinema regional. Veja alguns destaques:

  • Festival de Cinema de Vitória da Conquista (BA) – Um dos mais importantes do interior nordestino, valoriza produções independentes e obras com forte recorte territorial e social. Além das exibições, oferece oficinas e debates com realizadores de todo o país.
  • Festival Curta Taquary (PE) – Realizado em Taquaritinga do Norte, é um símbolo da força do audiovisual no agreste. Com foco no curta-metragem, o festival proporciona formação e visibilidade a jovens talentos da região.
  • Cine Sertão (BA) – Em Irecê, conecta o sertão baiano com o mundo por meio de mostras e trocas entre cineastas locais e nacionais. É referência no fortalecimento do audiovisual em regiões semiáridas.
  • Festival Pachamama (AC) – Embora ocorra em Rio Branco, representa o que há de mais potente na produção distante do eixo Sudeste-Sul. Com foco no cinema latino-americano, dá visibilidade a vozes inviabilizadas e atua como espaço de resistência cultural e valorização de narrativas indígenas, periféricas e decoloniais.
  • Festival Transamazônico de Cinema (Marabá – PA) – Criado em 2016, é um dos principais eventos audiovisuais da região Norte. Foca em narrativas da floresta, indígenas, negras e periféricas.
  • Circuito de Cinema de Penedo (AL) – Uma das iniciativas mais relevantes do audiovisual nordestino, o evento acontece às margens do Rio São Francisco e já tem mais de uma década de história.
  • Festival de Cinema de Jaraguá do Sul (SC) – Promove mostras competitivas e debates voltados à produção independente, incentivando a cadeia audiovisual do interior catarinense. Com abordagem híbrida, combina exibições presenciais e online.
  • Festival de Cinema de Arapiraca (AL) – Um dos maiores do interior do estado, mesmo com apenas três anos de existência. Reúne cineastas, críticos, estudantes e o público em atividades que celebram a diversidade do cinema alagoano e nacional.
  • Festival de Cinema do Sertão Piauiense – Floriano (PI) – Apoia produções sertanejas e promove intercâmbio entre coletivos e cineastas de diversas regiões. Seu destaque mais recente foi o curta “Lágrimas de Barro”, produzido por um coletivo de mulheres artesãs e premiado no Festival de Cinema Feminino de Belo Horizonte.

Iniciativas comunitárias e formação

Além dos festivais, inúmeras ações locais vêm transformando o audiovisual em ferramenta de educação e mobilização social. Destaques incluem:

  • Cineclube Buriti (PI) – Promove exibições e debates em comunidades rurais;
  • Oficinas de Cinema da Periferia (RN) – Formam jovens realizadores em favelas e bairros afastados;
  • Rede Cinesolar – Leva sessões de cinema com energia solar a municípios sem salas de exibição.

Produções premiadas que nasceram longe dos holofotes

Algumas das obras mais potentes dos últimos anos surgiram em contextos distantes dos grandes centros urbanos. Entre os destaques estão filmes como:

  • Noites Alienígenas (2022), de Sérgio de Carvalho – Primeiro longa de ficção produzido no Acre, foi premiado em seis categorias no Festival de Gramado e reconhecido internacionalmente.
  • Cavalo (2020), de Emygdio Almeida e Rafhael Barbosa – Produção alagoana que explora espiritualidade afro-brasileira. Recebeu menções honrosas em Brasília e no Olhar de Cinema.
  • Inabitável (2020), de Matheus Farias e Enock Carvalho – Rodado em Recife, venceu o Prêmio Canal Brasil de Curta-Metragem.
  • Vento Seco (2020), de Daniel Nolasco – Produção goiana que estreou no Festival de Berlim e deu visibilidade ao cinema do Centro-Oeste.
  • Inferninho (2018), de Guto Parente e Pedro Diógenes – Filme cearense premiado em diversos festivais, incluindo o Festival do Rio e o Janela Internacional de Cinema do Recife.
  • Mato Seco em Chamas (2022), de Adirley Queirós e Joana Pimenta – Mistura documentário e ficção para retratar mulheres na periferia do DF. Exibido e premiado em festivais internacionais como Berlinale, Cinéma du Réel e IndieLisboa.

Desafios que persistem

Apesar das conquistas, a ausência de políticas públicas contínuas e o desmonte de editais regionais seguem como obstáculos. A descentralização do financiamento e o fomento a iniciativas locais são urgentes.

Ainda assim, com o avanço da tecnologia, fazer cinema no interior deixou de ser utopia — é revolução. E os festivais, mais do que eventos, são corações pulsantes de uma nova cena audiovisual brasileira, revelando talentos, construindo pontes e provando que o interior também tem luz própria.

Para aprofundar esse debate e refletir sobre os caminhos possíveis para uma cena audiovisual forte, diversa e sustentável fora dos grandes centros, acontece no dia 17 de abril o aulão “Cinema fora do eixo: desafios e potências do Brasil Profundo”, com Karla Martins e Clemilson Farias. O encontro propõe discutir as possibilidades e os enfrentamentos de quem constrói o cinema a partir de outros territórios — com outras vozes, outras urgências e novas formas de produzir e existir.