Por Hyader Epaminondas

A 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo terminou, mas suas discussões ainda parecem reverberar. Como um epílogo espiritual não programado, “Chainsaw Man: O Filme – Arco da Reze” surgiu logo depois, ecoando os mesmos dilemas e pulsões humanas que marcaram essa edição do festival.

Criado por Tatsuki Fujimoto, “Chainsaw Man” surgiu em 2018 como um sopro de irreverência no gênero shonen, misturando horror, violência e humor com uma crueza rara. Seu protagonista, Denji, é tudo o que um herói tradicional não seria. Um adolescente de 16 anos, preso a uma dívida astronômica herdada do pai, ele vive na miséria ao lado de Pochita, seu inseparável companheiro demônio-serra. Ainda assim, o herói se mantém solidário, quase ingênuo, sonhando com pequenos prazeres, um pão com geleia, um teto, um toque de afeto, que às vezes o puro caos hormonal ambulante confunde com outras coisas.

Sua força vem justamente dessa simplicidade: o desejo de viver o mínimo já o torna extraordinário. E quando seu corpo se funde à motosserra, nascendo o Homem-serra, o absurdo se torna símbolo. O corte que atravessa monstros e vísceras também atravessa o próprio Denji, entre o humano e o demoníaco, o inocente e o brutal, sendo obrigado a se tornar um caçador de demônios da Segurança Pública.

Dentre as produções da chamada nova geração, que ironicamente já começa a parecer antiga, já que muitas delas encerraram suas histórias no mangá, “Chainsaw Man” era uma das poucas que eu ainda não tinha tido uma primeira vez. As versões compiladas dos episódios disponíveis na Crunchyroll acabaram sendo uma ótima porta de entrada, ajudando a criar o clima e o ritmo antes de mergulhar no filme, que adapta diretamente a sequência da primeira temporada.

Amor e destruição: o arco da Reze

A animação do estúdio Mappa, sob a direção de Tatsuya Yoshihara, é um verdadeiro espetáculo de engenharia visual, onde cada frame enquadrado parece meticulosamente coreografado nos storyboards. As cores não apenas saturam a tela, mas orquestram emoções, guiando o olhar com a precisão de uma partitura. A fluidez dos movimentos atinge níveis quase líquidos, transformando lutas, quedas e gestos cotidianos em uma valsa explosiva e vertiginosa que funde realidade e exagero estilístico.

As transições e impactos são acentuados por um timing perfeito, criando um turbilhão visual que não apenas impressiona, mas sincroniza corpo e mente ao ritmo da história, amplificando tensão, explosões e momentos de intimidade. Com Power fora do elenco do filme e Makima com uma participação especial, o time protagonista ganha novos parceiros.

Denji passa a conviver com o tubarão Beam, cuja relação funciona de forma secundária ao arco principal, servindo como alívio cômico perfeito com momentos genuinamente engraçados. Em paralelo, o veterano Aki é colocado ao lado do preguiçoso Demônio dos Anjos, em uma dinâmica que reforça o arco de confiança entre humanos e demônios, servindo de sustentação dramática ao núcleo central da narrativa.

O filme é um corte profundo no tecido do que significa ser humano. No final do arco anterior, o protagonista ficou se perguntando se ainda tinha um coração humano, e ele descobre a resposta neste filme. Denji acorda de um sonho enigmático e Pochita sussurra advertências que ele ainda não compreende, como se o próprio inconsciente o preparasse para a violência do afeto. Reze surge de forma completamente aleatória no cotidiano do protagonista como catalisadora: amor e destruição entrelaçados, como correntes elétricas de uma motosserra que corta e, ao mesmo tempo, desperta.

O encontro deles é frágil e dura pouco, quase banal: uma cabine telefônica debaixo de uma chuva torrencial, uma flor, o sabor inexplicável de algo novo. Mas cada gesto esconde uma lâmina. Denji se inclina para sentir, tocar, viver, e é aí que o mundo o corta. O amor é, neste arco, uma arma tão cruel quanto qualquer demônio. A tensão entre desejo e perigo se manifesta na própria estrutura do romance: explosões e beijos, intimidade e traição. Cada sentimento é uma lâmina afiada, cada aproximação, uma corrente elétrica que arranca pedaços da inocência de Denji.

O romance desse arco funciona como uma chama contida, como uma lamparina acesa no instante em que Reze surge, tímida e irresistivelmente humana, enquanto ela manipula livremente a sua intensidade. Ela entra na história como as mulheres dos filmes de Woody Allen, ambígua, divertida, cheia de nuances, mas carregando um perigo que nem o próprio protagonista percebe. Há algo fascinante na interação deles: um amor tecido de melancolia, ternura e medo, e uma sinceridade crua, como se ambos estivessem aprendendo, pela primeira vez, o que significa se sentir tão próximos e tão vulneráveis.

Aos poucos, Reze, uma personagem claramente em conflito consigo mesma, se infiltra na vida dele como um pensamento obsessivo, ocupando cada espaço com uma doçura que carrega o peso silencioso de uma tensão prestes a explodir. Ela cumpre uma jornada dupla: enquanto conquista o protagonista, conquista também o público, que se vê enredado pelo mesmo feitiço.

Sua presença é o próprio paradoxo, uma mulher que ama enquanto prepara o fim, um sentimento que cresce como faísca correndo por um estopim até o ponto sem retorno. E quando a explosão acontece, não há ruído, há deslumbramento. Uma tragédia luminosa, como fogos mortais que rasgam o céu antes de se apagarem.

A trilha sonora, que começa embalada por “Iris Out”, de Kenshi Yonezu, vibra no mesmo compasso da mente de Denji, alternando entre o ruído e a melodia, como se traduzisse, em som, o caos emocional do personagem. O encerramento foca nos dilemas pessoais de Reze ao som de “Jane Doe”, por Kenshi Yonezu e Hikaru Utada.

Há momentos em que o silêncio pesa mais do que qualquer acorde, e outros em que o som do êxtase total se mistura à música e ao som da motosserra, formando uma sinfonia distorcida entre o humano e o monstruoso. Essa fusão sonora reflete o próprio estado mental de Denji, que passa o filme todo com o coração na mão, em conflito, onde o instinto de sobrevivência e o desejo por afeto disputam o mesmo espaço.

Ela pulsa como extensão de sua vulnerabilidade. Cada corte que Denji desfere reflete o conflito interno entre o desejo de ser amado e a inevitável destruição que o acompanha. Ele não apenas fere o mundo, mas também é ferido por ele. A arma se torna metáfora da experiência humana: cortar, ser cortado, sobreviver entre o gozo e a dor, entre o abraço e a ameaça.

O arco transforma a violência em poesia. Há extremo carinho nos instantes mais brutais: nadar com Reze, o café compartilhado, a sensação de calor humano que Denji mal consegue compreender. Mas o mundo responde com fogo e metal, lembrando que nenhum afeto é gratuito, nenhum momento de beleza é sem preço. O amor é uma serra elétrica, potente, excitante, mortal. E Denji aprende, dolorosamente, que sentir é arriscar tudo.

Enquanto isso, a maior mudança chega sem pedir licença em Reze, e isso fica simbolizado na cena inicial da personagem. Ela andava rígida, quase como um soldado marchando. Depois, toda a sua expressão corporal vai relaxando e, aos poucos, entrando completamente em sintonia com os movimentos desengonçados de Denji. Seus passos mudam, tornam-se hesitantes, cheios de expectativa, como os de uma garota que começa a perceber que está se apaixonando.

Mesmo em meio a uma narrativa permeada pelo erotismo e pela idealização sexual do protagonista, Reze escapa da objetificação. O filme traduz visualmente essa tensão entre desejo e humanidade sem recorrer ao olhar masculino convencional. A relação entre o casal nasce da carência afetiva e da inocência, não da exploração do corpo feminino, e o erotismo surge, assim, como expressão de vulnerabilidade emocional, reafirmando a autonomia e a complexidade da personagem.

É um filme redondinho, construído com uma precisão quase artesanal, onde cada imagem parece conversar com outra. Cheio de paralelos significativos, pensados nos mínimos detalhes: a flor que abre o filme encontra seu oposto no desfecho, a piscina se dissolve no mar como se a intimidade se expandisse em imensidão. Ela fala que vai ensinar Denji sobre o mundo, mas é ele quem insere significados no mundo dela. Tudo ecoa, tudo retorna, num ciclo quase poético de causa e consequência.

Nesse primeiro filme da saga, surpreendentemente um romance intensamente apaixonante, nosso protagonista sente tudo em excesso e amadurece justamente por se permitir sentir. E é exatamente isso que Fujimoto quis mostrar: ser humano é aceitar a motosserra que pulsa dentro de si. A dor, o amor, a traição, a esperança, tudo vibra como uma corrente elétrica que corta e conecta, destrói e revela, lembrando que crescer é aprender a sobreviver ao próprio caos interno.