Céu Albuquerque: “Mutilações genitais são feitas para a manutenção de uma estrutura binária”
Céu busca ser a primeira parlamentar intersexo da América Latina em um mandato solo
Por Kaio Phelipe
Entrevistamos Céu Albuquerque, candidata a vereadora do Recife (PE) e primeira pessoa do mundo a retificar a certidão de nascimento para intersexo, processo histórico que se concretizou em fevereiro de 2024. Ativista, fotógrafa, jornalista e coautora do livro 150 variações intersexo, Céu contou um pouco sobre a sua trajetória, os bastidores de sua campanha política e as consequências de mutilações genitais em crianças.
Caso vença, Céu Albuquerque será a primeira parlamentar intersexo da América Latina em um mandato solo.
1. Quando entrou para o ativismo?
Comecei no ativismo em 2011, quando criei um canal no YouTube. Na época, ainda não se usava o termo intersexo e esse assunto ainda não era debatido aqui no Brasil, mas eu falava sobre hiperplasia adrenal congênita, que é a minha variação intersexo, e falava também sobre feminismo e mutilação genital. Então eu já levantava essas discussões relacionadas ao corpo e à liberdade. De 2011 para cá, o meu ativismo foi se intensificando e comecei a ouvir o termo intersexo e entendi que, além da hiperplasia, contamos com mais de cem variações de intersexo. Comecei o ativismo para além da minha variação e hoje faço uma discussão acadêmica mais profunda sobre o assunto.
2. Como que alguém se descobre intersexo?
A descoberta depende de muitas coisas. Algumas crianças já nascem com variações intersexo externas e descobrem logo ao nascer, como foi o meu caso, que nasci com genitália ambígua. Mas tem gente que só vem a descobrir na adolescência ou na fase adulta e algumas pessoas só descobrem na autópsia. Na adolescência, é comum a descoberta ser feita na ausência de menstruação, por exemplo. Daí vai investigar e a pessoa descobre que não tem útero, que cromossomicamente é XY, mesmo tendo um corpo feminino. Muita gente descobre na fase adulta, como é o caso de quem tem síndrome dos ovários policísticos, onde os médicos não tratam como intersexualidade. Daí muitas pessoas passam a vida inteira fazendo tratamento com anticoncepcional, até descobrirem que isso vai muito além.
O processo de descoberta depende muito de qual variação é e, como a gente tem mais de cento e cinquenta variações catalogadas, segundo uma pesquisa que eu fiz, a descoberta varia bastante. É muito comum que, em certas variações, a pessoa se identifique mais com um gênero do que com outro e, às vezes, com o gênero oposto escolhido pelos pais e médicos. Isso é um absurdo. Na hiperplasia, você nasce XX, mas com genitália ambígua e quando as crianças não são submetidas à cirurgias, crescem com um microfalo e podem se identificar como meninos, já que foram criados assim, devido à falta de diagnóstico na infância. Mas, no caso das pessoas que são operadas e depois se identificam com o gênero masculino, isso é um problema gravíssimo porque não tem como reverter, é uma mutilação. E aí o que geralmente acontece é o suicídio. Ninguém fala sobre o suicídio entre pessoas intersexo, mas é um fato muito comum.
3. Como optam pela mutilação genital em uma criança?
Primeiro, são feitos vários exames hormonais, cariótipos, hexogramas, ressonâncias, ultrassons. Assim, eles chegam em uma característica predominante e, dessa forma, é escolhido o gênero. Vou citar o meu caso: cromossomicamente XX, com útero e ovário, mas com genital ambíguo. Então escolheram para mim que eu seria menina. É assim que fazem. Se o corpo for feminino, mas o cromossomo é XY, fica sendo menina. Mas se é XX e não tem útero, tem um micropênis, fica menino. Então eles pegam as características predominantes e escolhem, mas essa escolha é muito grave porque a identidade de gênero e a orientação sexual não estão formadas nem construídas para um bebê.
As cirurgias não trazem nenhum benefício quando são para cunho estético. As cirurgias deviam ser feitas apenas quando aparecem alguma questão de necessidade fisiológica, por exemplo, quando a criança nasce sem a uretra. Eu atendo alguns casos de crianças que passaram pela mutilação e hoje possuem incontinência urinária ou infecção urinária. Quando falamos de adultos, falamos de adultos com estenose, fibrose, com perda de sensibilidade, perda de lubrificação e que sentem dor. Essa é uma cirurgia feita para a manutenção de uma estrutura binária, que beneficia o falocentrismo. Fazem vaginas nessas crianças para elas crescerem e terem relações heterossexuais. Não importa se essas crianças vão sentir dor ou não vão querer. O que importa é que elas terão um buraco e que um homem possa penetra-la, é assim que os médicos enxergam. Essa estrutura de cirurgia, seja de genital ou de extração de gônadas, é uma cirurgia violenta, que rouba a essência das pessoas. É uma cirurgia que causa disforia de gênero e, desde o momento em que o corpo é operado, isso prejudica a vida da pessoa.
É muito comum pessoas intersexo não conseguirem se relacionar afetivamente e, principalmente, sexualmente, com medo de discriminação, rejeição e de sentir dor. Se a gente crescesse em uma sociedade que ensina que corpos são diferentes e que está tudo bem, que crianças e adultos intersexo existem e que as genitálias diferentes, a gente viveria em uma sociedade empoderadora. Mas essa não é a realidade para nós.
Se alguém submete o seu corpo a uma mudança, se o seu corpo foi mutilado no passado para agradar uma sociedade, estão acabando com você. É o que a Simone de Beauvoir fala: não se nasce mulher, torna-se. A sociedade faz com que a gente entre em uma caixa porque a pessoa intersexo desafia a binariedade.
4. A mutilação genital em crianças já foi discutida publicamente no Brasil?
Em alguns países a mutilação genital em crianças já é crime, como na Alemanha, em Portugal e em outros países da Europa. No Chile e em outros países da América do Sul também já não fazem mais esse tipo de cirurgia ou já tem protocolos para fazer apenas na fase da adolescência. Aqui no Brasil, já foi discutido e levado para o Conselho Nacional de Saúde. O presidente Lula chegou a assinar dois documentos, em 2023, dando início a construção de projetos.
No último mês de junho, eu protocolei um projeto de lei, junto com o deputado federal Clodoaldo Magalhães, também de Pernambuco, para a gente proibir esse tipo de cirurgia de cunho estético em todo o território nacional. Esse projeto já está na Câmara, só falta escolher a comissão e depois encaminhar para votação. Essa discussão sobre a proibição já rola há muito tempo. Existe uma resolução do Conselho Federal de Medicina, número 1664/2003, que é uma resolução violenta, que viola os direitos das pessoas intersexo, que dá o aval para os médicos e os familiares escolham o gênero da criança.
Essa é uma resolução que não pensa na qualidade de vida dos indivíduos, mas o que podemos esperar do CFM, que durante a pandemia estava indicando cloroquina e, no início do ano, estava discutindo a proibição do aborto em crianças?
5. Como foi o processo de retificação na certidão de nascimento?
O processo se iniciou em 2021, quando eu entrei em contato com a Defensoria Pública do Estado do Pernambuco e começamos a estudar o processo jurídico para alteração de nome e do campo “sexo” na certidão de nascimento, de feminino para intersexo. Só em fevereiro de 2024 que a juíza deu o aval e permitiu a mudança. A notícia circulou por todas as mídias do país, do jornal pequeno ao grande. Foi um acontecimento muito importante e abriu caminhos para políticas públicas que começaram a ser construídas depois. E, principalmente, foi importante para pessoas intersexo entenderem que podem ser reconhecidas como elas são. Pessoalmente, foi importante porque quando eu nasci, por ter nascido com genitália ambígua, fiquei seis meses sem certidão de nascimento.
Durante seis meses, eu não existi para o Estado brasileiro. Foi uma coisa que me violentou muito e diversas vezes, a ponto de não ser considerada uma cidadã. Eu só pude ser registrada quando meu cariótipo saiu e deu XX. Uma pessoa intersexo não tem direito nem ao registro de nascimento porque os médicos acreditam que podem decidir a forma como você vai existir.
A mudança na certidão de nascimento foi uma questão política, de reivindicação do que me foi negado um dia. Por mais que só tenha o termo intersexo na certidão de nascimento, para mim é muito importante. Toda criança intersexo deveria ser registrada como intersexo, isso deveria ser uma medida obrigatória, mas hoje elas ainda são registradas como “sexo ignorado” e isso é um atraso.
6. Qual é o número de pessoas intersexo na população brasileira?
Escrevi um artigo com Dionne Freitas e Thais Emilia dos Santos, outras duas mulheres intersexo, e nós encontramos cento e cinquenta variações. Os dados anteriores a essa pesquisa diziam que 1,7% da população é intersexo, número que podia ser comparado ao número de ruivos na sociedade. Mas, com essa pesquisa, vimos que 11% da população é intersexo. Esse artigo virou um livro, chamado 150 variações intersexo, publicado pela Editora CRV, em formato físico e digital. Seria incrível a gente ter esse dado através do IBGE, mas como seria possível se a maioria da população brasileira não sabe se é intersexo ou não? Não é algo debatido. As características dessas pessoas são tratadas como doenças e não como intersexualidade.
São muitos casos subnotificados, muitas pessoas com síndrome de ovário policístico que nem imaginam que são intersexo, são muitas pessoas com mutação cromossômica que não fazem ideia do que é intersexualidade. É um dado que seria muito importante se fosse feito dentro do sistema de saúde e se existisse uma catalogação.
7. Quais são os desafios de uma campanha política sendo uma mulher intersexo e lésbica?
Eu estou concorrendo pelo Partido Verde, aqui no município do Recife, Pernambuco, com o número 43500. O maior desafio que estou tendo, por incrível que pareça, por ser uma mulher lésbica e intersexo, está vindo de outras mulheres, que querem boicotar a minha campanha. Isso é algo que eu não imaginava que aconteceria.
O meu maior desafio está sendo, de fato, ser um corpo político e ocupar um espaço que historicamente foi tirado de todas as pessoas da comunidade LGBTQIAP+ e saber que algumas pessoas não querem que eu alcance esse lugar. Eu imaginava que seria perseguida por pessoas de direita e pelo conservadorismo, mas a esquerda também está incomodada com a minha candidatura. Eu não estou pulando de paraquedas na política, eu sou uma pessoa que trabalha há mais de dez anos com políticas públicas e venho construindo isso há muito tempo, o que acaba gerando insegurança em outros candidatos que não possuem a mesma estrutura de trabalho, que pretendem entrar para começar a trabalhar. Mas eu acredito que não é preciso entrar no parlamento para começar esse trabalho. Vou dar continuidade ao trabalho que venho fazendo há mais de dez anos.
8. Quais são as propostas da sua campanha?
Temos muitas propostas relacionadas à comunidade LGBTQIAPN+, como a abertura do primeiro ambulatório do Brasil para pessoas intersexo, uma casa de acolhimento para crianças intersexo e seus familiares, projetos para implementação de políticas para pessoas vivendo com HIV, políticas para facilitar o acesso à educação para pessoas trans, como o Ensino de Jovens e Adultos e parcerias com o SENAI e o SENAC, estamos pensando em empregabilidade para a comunidade LGBTQIAPN+, projetos para pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua. Além das propostas relacionadas ao meio ambiente, empreendedorismo, turismo e lazer. Temos um plano bastante estruturado. Nunca existiu nenhum parlamentar intersexo no Brasil em mandato solo. Caso eu venha conseguir, serei a primeira parlamentar intersexo, não só do Pernambuco e do Brasil, mas de toda América Latina.