Por Igor Fonseca

“Na cara não, chefe, pra não estragar o velório”, disse o derrotado Baiano antes de ter o seu “CPF cancelado” por Mathias, na operação que também simboliza a iniciação do recém-formado policial dentro do BOPE. Na mais sádica escolha de José Padilha, o sangue do traficante é derramado fora da tela, privando quem assiste de testemunhar o batismo e o renascimento do estudante de Direito para uma nova vida (a de caveira). Cabe ao som o papel de sacramentar a carnificina pop que é “Tropa de Elite”. Um único tiro de distância até os créditos finais. Dentre todos os momentos marcantes de um filme que os tem aos montes, a sequência final é o mais bem cravado na minha memória. Graças à minha mãe.

Eu ainda era criança quando a assisti pela primeira vez. Não sei precisar se meu pai foi um dos muitos que comprou o filme na banca do camelô antes do lançamento oficial. Mas sei que estávamos em casa, à noite, com as luzes desligadas e o DVD rodando no Philips prateado. Minha mãe garantiu que a imersão fosse a mais completa possível. Enquanto Mathias preparava o fuzil, ela empurrava a minha cabeça na direção da TV, e gritava: “Você tá vendo?! É isso o que acontece com quem se mete com droga! É isso! Nunca se meta com essas coisas, entendeu?!”. Nunca deixei de achar a reação exagerada além da conta, mas na infância a classificava como “preocupação de mãe”.

Quase duas décadas depois, “inescapado” da vida adulta, tenho reaberto essa memória com outras chaves. O que era apenas um longa, se transformou em acontecimento cultural, daqueles que conseguem tão bem cruzar a linha entre representar o momento estético e social de seu tempo e tecer comentários, bem como incitar reflexões, sobre as ideias-base da identidade nacional. As leituras são heterogêneas, a controvérsia é inegável, o debate é incessante. Hoje sei que a “preocupação de mãe” era, também e sobretudo, a confirmação de um ponto de vista já assimilado por ela antes de assistir, e que foi materializado em “Tropa de Elite”. E ela não foi a única a se sentir validada.

Não é incomum ver a obra máxima de José Padilha sendo utilizada como filtro de leitura para a realidade. Jargões, termos e pequenos monólogos passaram a ser evocados no cotidiano pelo brasileiro, assim que o assunto crime organizado/narcotráfico surge na roda, ou quando alguém deseja apenas “metaforar” sobre o país. A força cultural se impõe ao ponto de tornar o filme um ponto de referência para as discussões sobre a Operação Contenção, assim como as conversas surgidas paralelamente a ela. Do clamor de Nikolas Ferreira por “mais Capitã[es] Nascimento” até o uso de falas da sequência (“O Inimigo Agora é Outro”) para refutar o deputado, chegando ao aumento na demanda pelo filme em plataformas de streaming desde o dia 28 de outubro, existe uma relação fidelizada com o simulacro de realidade ali retratado.

As imagens evocadas em “Tropa de Elite” operam, como todo e qualquer produto de comunicação de massa, dentro de um contexto cultural e ideológico consolidado anteriormente à realização da obra. O que quero dizer com isso? Que o ponto de vista assumido pelo filme, expresso através das escolhas de roteiro, mise-en-scène e pós-produção, não necessariamente estão à serviço de um objetivo consciente por parte de quem o realizou. Afinal, desde Deleuze e sua proposta de imagens-movimento, tenta-se decifrar o que move o raciocínio cinematográfico para além da técnica. Aqui parto de outro viés, tentando extrair o simbolismo que emerge a partir e após a finalização do corte.

“Ou você faz parte da solução, ou faz parte do problema”.

Wagner Moura como Capitão Nascimento em “Tropa de Elite”. Foto: Zazen Produções, 2007

Ainda que cada um de nós siga em busca da própria individualidade, somos moldados pelos padrões comportamentais e cognitivos nativos das coletividades e instituições sociais nas quais convivemos. Familiares, amizades, equipes esportivas, colegas de trabalho, comunidades religiosas, além de tantos outros contextos de convivência e interação humana, influenciam no desenvolvimento de opiniões, percepções e princípios. Considerando o papel central da racialidade na formação ideológica do Ocidente, as relações sociais aqui mantidas não deixam de estar sujeitas a esta ordem.

O trabalho de Sueli Carneiro se debruça na sistematização do racismo, alcançada pelo aparelhamento ideológico das esferas de poder, compreendendo-o como um dispositivo responsável por regular toda e qualquer instituição, para além das mais associadas ao conceito, como a política, a economia, o belicismo e a segurança pública. Muito mais do que injúria racial, o racismo é descrito por Carneiro (e por tantos outros antes e depois dela) como ideologia estruturante, capaz de estabelecer e normatizar comportamentos, discursos, representações simbólicas e dinâmicas hierárquicas. Este fenômeno é sintetizado por ela através do termo dispositivo de racialidade. 

Toda produção simbólica originada em uma sociedade aparelhada pelo racismo atende a dois propósitos: sustentá-lo ou subvertê-lo. Independentemente das intenções do seu autor, os dispositivos de racialidade emergem, por pertencerem a um leque referencial construído por séculos, e que se perpetua devido ao sucesso das plataformas de divulgação, e da ampla adesão popular. O audiovisual opera como uma dessas plataformas, sintetizando arquétipos e fixando representações raciais, por meio de um modelo narrativo de palatável assimilação.

“Tropa de Elite” conta a sua história pela perspectiva de um homem que não distingue a esfera pública da privada. Que vive sob os princípios da instituição para a qual trabalha. O uniforme do BOPE enfeita, enquanto a pele branca reveste o caveira. Capitão Nascimento é referência nacional para integridade, masculinidade, ética e retaliação justificada contra o crime. Existe uma satisfação no público ao ver “a justiça sendo feita” por aquelas mãos, guiadas pelo pragmatismo psicopático do ofício, pois seus atos confirmam um viés já estabelecido: o da branquitude.

A cada esporro dado nos “moleques” em adestramento, a cada acusação de demagogia contra discursos dissonantes da ordem, a cada “choque de realidade” sentido por André Mathias, a validação pessoal do espectador aumenta. Não há tempo a perder, nem disposição a ceder, para se esforçar em entender as entrelinhas do ato ali encenado. Afinal, para quê falar em limpeza étnica, em genocídio da população negra, quando se pode sentir prazer ao ouvir um “quem manda nessa porra aqui sou eu”?

A conversão do Mathias, aliás, é outro arco narrativo simbolicamente poderoso. Um homem negro, estudante de Direito, lentamente cooptado para servir e aplicar a “verdadeira justiça”. Com direito a uma cena dele em um debate, durante uma aula na universidade, se impondo perante a suposta cegueira dos futuros “intelectuaizinhos” de esquerda. Quer um case de sucesso para o BOPE maior do que esse? 

O fascínio pela criação original é tão significativo, ao ponto da sequência lançada em 2010, que tenta aplicar uma correção de curso diante das consequências da repercussão da obra-matriz, ser considerada inferior por muitos ou até totalmente inválida para alguns. A decepção de parte do público com “Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro” não foi somente sobre um enredo que ousa cogitar a existência de corrupção na polícia militar.

Acima de tudo, foi sobre a quebra de um pacto social com duas representações simbólicas (o Capitão e o BOPE) que validam a conservação da branquitude enquanto paradigma estruturante da sociedade brasileira. Foi sobre a recusa de enxergar a realidade não tão bem escondida por baixo da superfície. Foi sobre o desconforto de ser exposto como imoral, tal qual Mathias fez com seus colegas de sala. Foi sobre o medo de sentir o dedo sendo apontado para a sua cara. Não é tão divertido assim quando você é a vítima, não é mesmo?

A criação conjunta de José Padilha, Rodrigo Pimentel, Bráulio Mantovani, Wagner Moura, André Ramiro e demais envolvidos, é certamente um dos marcos culturais brasileiros do início do século XXI. E dentre as muitas sínteses pseudofilosóficas contidas nele, uma é indiscutivelmente unânime: o sistema é foda, parceiro. De fato é. E até que ponto você vai se deixar ser conivente com ele?