Por Rafaela Collins, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30

Aos 63 anos, Maria Iracema acorda todos os dias antes do sol nascer. Pega o transporte rumo ao galpão da Concaves, na grande Belém (PA), veste as luvas e começa a separar plásticos, papelão, vidro e alumínio. O som das prensas e o cheiro do material reciclável não a intimidam. Pelo contrário: são parte da rotina que ela construiu depois de anos de fome e invisibilidade. “Eu morava na rua. Catava para sobreviver, comia o que achava no lixo, uma laranja, uma banana estragada, qualquer coisa. Só Deus sabe o que a gente passou”, relembra.

Hoje, Iracema é uma das catadoras responsáveis pela triagem dos materiais recicláveis gerados na COP30, em Belém. A cooperativa da qual faz parte foi contratada para recolher e destinar corretamente os resíduos da conferência, que reúne dezenas de líderes globais.

“Quando penso que vou trabalhar num evento que fala de clima, fico emocionada. Nunca imaginei isso. Eu não sei ler, nem escrever, mas aprendi que meu trabalho ajuda o planeta”, diz, com um sorriso tímido.

Maria Iracema teve a vida transformada pelo cooperativismo (Foto: Rafaela Collins)

O caminho até aqui foi longo. Depois de anos cantando nas ruas com um carrinho de mão, Iracema foi convidada para integrar a Concaves, que nascia como um pequeno grupo de catadores e hoje é uma das maiores Unidades de Valorização de Recicláveis (UVR) da região Norte, com quase 20 anos de operação. “No começo, trabalhava até às dez da noite, sem comer, só tomando água. Mas foi melhorando aos poucos”, conta. Atualmente, ela ganha entre R$ 1.200 e R$ 1.300 por mês, valor que varia conforme a quantidade de materiais processados e os contratos que a cooperativa fecha, como o da COP30, que trouxe um fôlego extra para mais de 200 famílias ligadas à cooperativa, beneficiadas indiretamente.

Viúva há seis anos, Maria mora com um filho e dois netos. Outros dois filhos também seguiram o mesmo caminho e hoje trabalham como catadores. “Eu tenho fé em Deus que vou até o fim trabalhando. E que ainda vai melhorar mais”, afirma, entre o cansaço e a esperança de melhorar de vida.

Da invisibilidade ao reconhecimento

A história de Maria se cruza com a de Jonas da Silva, 45 anos, fundador da Concaves. Assim como ela, Jonas começou a catar recicláveis por necessidade, há duas décadas, depois de ficar desempregado. “Era barra. A gente era tratado como lixo. O pessoal não deixava nem a gente encostar no portão”, relembra.

Um encontro com Lula mudou a vida de Jonas (Rafaela Collins)

A virada veio em 2010, quando ele participou do Encontro Internacional dos Catadores, em São Paulo, e teve um encontro decisivo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Ele olhou pra mim e disse: ‘Jonas, volte a estudar’. Eu respondi que não tinha mais idade. E ele retrucou: ‘Não existe isso de idade. Olha pra mim,  um metalúrgico que virou presidente’. Isso mudou tudo. Obedeci ao conselho dele, entrei na faculdade e me formei em Gestão Ambiental”, conta com orgulho.

Hoje, Jonas coordena a Concaves, que reúne 35 trabalhadores e atua em educação ambiental, coleta seletiva e destinação de resíduos. Ele defende o reconhecimento do catador como agente ambiental essencial.

“Somos gestores ambientais da cidade. A gente cuida do que é de todo mundo, debaixo de sol e chuva. A COP30 mostra que o nosso trabalho tem valor”.

A cooperativa, que há anos luta por estrutura e reconhecimento, agora integra o programa Coleta Mais, da Itaipu Parquetec, em parceria com a Prefeitura de Belém e o Governo Federal. Quarenta catadores das quatro cooperativas participantes fazem o trabalho de coleta, triagem e encaminhamento para reciclagem dos resíduos da conferência. Nos dois primeiros dias da Cúpula do Clima, a Concaves recolheu 1,5 tonelada de materiais recicláveis, e a expectativa é ultrapassar 5 toneladas até o fim da COP30.

Um legado que navega pela Amazônia

O evento também marca o início de uma nova fase para os catadores de Belém: a chegada do BotoH₂, o primeiro barco da América Latina 100% movido a hidrogênio verde, desenvolvido pela Itaipu Parquetec. A embarcação, lançada durante a COP30, será usada pela Concaves para realizar a coleta seletiva na Ilha do Combu, comunidade ribeirinha de Belém onde o turismo cresceu, mas o saneamento básico ainda é precário.

“Vai ser uma revolução. A gente vai conseguir trabalhar nas ilhas, recolher o lixo sem agredir o meio ambiente e ajudar quem vive cercado de água, mas sem água potável”, explica Jonas.

Além do barco, o programa da Itaipu Parquetec investe na reforma e ampliação de galpões, capacitação de cooperados e uso de tecnologia de ponta, como o Reciclômetro, ferramenta que mede em tempo real a quantidade de resíduos coletados e o impacto ambiental e social do trabalho. “Essa é a primeira vez que somos tratados como parte da solução dentro de um evento global. É inclusão social de verdade”, afirma Débora Baia, presidente da Concaves.

Reciclar para viver e para mudar o mundo

Para Maria Iracema, participar da COP30 é mais do que uma oportunidade de renda: é um símbolo de dignidade. “Hoje, as pessoas olham pra gente diferente. Eu não sou mais aquela mulher da rua. Sou uma trabalhadora que ajuda o meio ambiente.”

Jonas complementa: “Cada garrafa que deixamos de ver no rio é uma vitória. A reciclagem é a nossa forma de justiça climática. A COP está acontecendo lá dentro, mas nós estamos fazendo a nossa parte aqui fora.”

No fim do expediente, quando o sol se põe sobre os galpões da Concaves, Maria lava as mãos, retoca o batom e sorri. O trabalho é pesado, mas o que ela carrega é leve: a certeza de que, mesmo sem educação formal, ela possui conhecimento de vida e está ajudando a escrever um novo capítulo para a Amazônia, novos escritos onde quem sempre viveu à margem agora faz parte da solução e é exemplo a ser seguido.