Carta ao Neymar Jr. sobre tornar-se negro
Portanto, não proponho a você, com esta carta, o início de uma guerra racial. Proponho-te, ao contrário, que se junte à luta iniciada por nossos ancestrais, primeiramente contra o fim da escravidão, e depois continuada contra o racismo estrutural.
Por Djeff Amadeus*
Caro irmão Neymar Jr.: Stolkely Carmichael conta que, quando garoto, via o filme do Tarzan branco e comemorava quando ele batia nos negros nativos. Ele gritava: “- Mate essas bestas, mate esses selvagens, mate-os.” Um dia o Stolkely olhou para o espelho e tomou o maior susto da vida, irmão. Sabe por quê? Porque ele percebeu que estava gritando: matem-me![1]
Eis o motivo pelo qual a Giganta psicanalista Neusa Sousa Santos deu ao livro dela o nome de “Tornar-se negro”.[2] Com isso, irmão, ela quis dizer que não nascemos negros, mas sim nos tornamos negros. É um processo, saca? Por isso eu te entendi quando você há muitos anos, bem mais novo, disse numa entrevista que nunca havia sofrido racismo, pois não era negro.
Eu também me achava branco, irmão. Vou te contar um segredo que nunca falei publicamente. É a primeira vez que falo sobre isso. Uma parente minha passava leite de rosas no meu corpo todo a fim de me clarear. Dizia que isso ia me “ajudar”. Também passava a cera da vela quente no meu nariz para afiná-lo. Eu era novinho, irmão. Não entendia nada, mas fazia. Lembro direitinho: a gente esquentava a cera da vela, moldava, e eu a apertava por cima do meu nariz e ficava pressionando, pressionando com os dedos e respirando pela boca. Maior tempão…! Também já alisei meu cabelo, mano. E pintei de loiro. É reflexo que fala, né? Fiz tudo isso, irmão! Ah, também tenho uma compulsão por rabiscar meus livros que decorre do racismo…
E pra gente, negros de pele mais clara, pelo fato de termos mais “passabilidade” (ou seja: menos rejeição entre os brancos) acabamos querendo também, inconscientemente, gozar dos privilégios da branquitude. Por branquitude estou a me referir à ideologia que nos violenta simbolicamente querendo nos tornar algo que não somos: brancos. Isso acontece, segundo o mestre Adilson Moreira, porque a branquitude oferece uma série de privilégios que, depois, serão mascarados pelo discurso da meritocracia.[3]
É por isso que a gente se odiava, mano. Malcolm X e tantxs outrxs, que deram as vidas delxs para que você pudesse estar aí jogando futebol e eu aqui, advogando, perguntava(m): “Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele…?” Ora, odiando tudo que se distancia dos padrões impostos pela branquitude, além de nos odiarmos, acabamos tendo grande responsabilidade pela solidão da mulher negra.
Entenda irmão: esta carta não é para você criar ódio de todos os brancos, até porque como ensinou o Mestre Sílvio Almeida: “não há uma essência branca impressa na alma de indivíduos de pele clara que os levaria a arquitetar sistemas de dominação racial.”[4] O problema, então, conforme ensina o referido Filósofo e Jurista, não é o branco enquanto indivíduo, mas sim a branquitude enquanto ideologia de dominação.
Bob Seale e o Fred Hampton, todos do Partido dos Panteras Negras, diziam que Huey Newton ensinou “a não odiar uma pessoa pela cor da pele, mas a odiar o que a classe dominante faz conosco, o que fazem a nós, povo negro.”[5] Tanto isso é verdade que existem brancos aliados; inclusive quem enviará esta carta a você é um destes.
Por isso, parafraseando Eldridge, não estou propondo que tu “combatas o racismo com o racismo, até porque o fogo não se apaga com fogo, mas sim com água”.[6] Portanto, não proponho a você, com esta carta, o início de uma guerra racial. Proponho-te, ao contrário, que se junte à luta iniciada por nossos ancestrais, primeiramente contra o fim da escravidão, e depois continuada contra o racismo estrutural. Como diz o Mestre Preto Zezé, “chega de resistir, eles que agora resistam. Crescemos o bastante para querer o poder e não a resistência.”
Finalizo, portanto, pedindo para que tu te reconheças como negro, irmão, como forma de gratidão aos nossos ancestrais que, com suas lutas, possibilitaram não só que estivéssemos aqui, mas, antes de tudo, possibilitaram a nossa existência. Gratidão a todas e todos que não estão mais aqui, bem como às/os que vieram antes de nós e ainda estão aqui.
Do lugar onde estão, daqui aproveito para pedir-lhes proteção. Venceremos.
*Djefferson Amadeus é Advogado criminalista e eleitoralista, Diretor do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), mestre em direito e hermenêutica filosófica, pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio, pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ e membro do MNU e do IANB.
[1] TURE, Kwame. Stokely Carmichael. Do Poder Preto ao Panafricanismo. Editora Diáspora Africana, 2017, p. 55.
[2] SOUZA, N. S. Tornar-se negro: As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
[3]MOREIRA, Adilson José. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen. Feminismos plurais – coordenação Djamila Ribeiro, 2019, p. 58.
[4] ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. São Paulo. Sueli Carneiro; Pólen. Feminismos plurais – coordenação Djamila Ribeiro. 2019, p. 73.
[5] Todo Poder ao Povo. Artigos, discursos e documentos do Partido dos Panteras Negras. Editora Raízes da America. São Paulo, 2017, p.68.
[6] Todo Poder ao Povo. Artigos, discursos e documentos do Partido dos Panteras Negras. Editora Raízes da America. São Paulo, 2017, p.68.