Por Hyader Epaminondas

Em 1995, o cinema brasileiro estava praticamente em coma. O governo Collor havia desmantelado a Embrafilme no início da década, mergulhando o mercado audiovisual num vácuo criativo e institucional. Produzir filmes parecia um ato excêntrico ou de resistência, e é nesse cenário que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil surge como um grito debochado: um filme que usa o riso como arma e o sarcasmo como ferramenta política.

Peça central na história do cinema nacional, foi ao mesmo tempo provocação estética, sucesso de bilheteria e ato político, enquanto a cultura era tratada como estorvo pelo governo. Carla Camurati teimou em filmar — e teimou com estilo. A escolha pela dublagem, que hoje pode ser vista como um detalhe acertado, respeitou a língua materna de cada grupo retratado: nem o narrador em inglês nem os personagens portugueses ou espanhóis soavam como brasileiros, a não ser pelos próprios brasileiros do filme, o que reforçou a autenticidade e o tom satírico da obra.

Por inaugurar a Retomada do Cinema Brasileiro, o longa impôs uma identidade autoral ácida, desbocada, descaradamente satírica e consciente do próprio lugar. Camurati assumiu a direção com a faca nos dentes e, em vez de reconstituir o passado com verniz de gala, desmontou com deboche. Se o Brasil colonial era uma ópera bufa, ela não teve medo de expor seus bastidores grotescos.

A história do Brasil é a história da mentira

O texto do filme não alivia. Zomba da elite, ridiculariza o machismo aristocrático, aponta o dedo para a construção mítica da nacionalidade, tudo com um sarcasmo milimetricamente calculado. A trilha sonora, a direção de arte e até a fotografia colaboram para um retrato que jamais busca a ilusão do real. Tudo aqui é caricatura com propósito. É uma escolha formal e política.

E, dentro desse palco, Marieta Severo reina. Sua Carlota é uma evolução natural da pequena Carlota vivida por Ludmila Dayer, uma criação meticulosamente cínica, grotesca e irresistível. Ela representa a aristocracia europeia como uma figura que mistura loucura, perversidade e desejo, e transforma isso numa performance completamente entregue ao jogo farsesco do roteiro. Marieta entende o tom do filme desde a primeira cena e domina a tela com tanta segurança que sua atuação se torna o eixo da obra.

Do outro lado, Marco Nanini encontra o equilíbrio ideal para esse jogo dos tronos. Seu Dom João é ridículo, sim, mas nunca simplório. Ele representa o absurdo do poder passivo, da realeza disfuncional, e dá corpo à ideia de que o grotesco também pode ser político. Juntos, Marieta e Nanini constroem uma energia cênica que oscila entre a comédia e o desconforto, como se o riso nunca pudesse ser completamente inocente.

O filme de Camurati ri de tudo, mas principalmente do que há de mais estruturante no Brasil: a maneira como o país foi fundado em cima de absurdos e disfarçado com solenidade. A obra não está interessada em uma reconstituição de época, mas sim em escancarar como a história é narrada e quem lucra com essas narrativas. Ela antecipa uma discussão que só se popularizou anos depois: a ideia de que a memória oficial muitas vezes serve para perpetuar o poder, e não para revelar a verdade.

Revisitar Carlota Joaquina 30 anos depois é encarar uma obra que continua afiada, relevante e incômoda. O tom farsesco, que poderia ter envelhecido mal, na verdade se mostra uma escolha inteligente. É justamente porque não tenta emular o real que o filme resiste ao tempo. Ele não busca a neutralidade. Ele toma partido. E, por isso, ainda provoca.

Na linha do tempo do cinema brasileiro, Carlota Joaquina foi o filme que tirou o país da inércia cultural da era Collor e abriu caminho para uma nova geração de cineastas. Talvez o maior mérito da diretora tenha sido não fazer um filme certinho.

Em vez disso, ela fez um filme urgente. E urgência, às vezes, precisa vir de peruca torta, sotaque e uma gargalhada que ecoa mais forte que qualquer discurso. O retorno aos cinemas em 14 de agosto, para celebrar suas bodas de pérola, é a confirmação de que, três décadas depois, seu brilho irreverente, agora remasterizado, continua tão afiado e necessário quanto no dia da estreia.

Carlota Joaquina, Princesa do Brazil não apenas marca a retomada do cinema nacional. Ela é, por si só, um grito de retomada ou, para ficar no tom da própria Carlota, um “Independência ou Morte!” em plena tela grande, dito com leque na mão e rindo da nossa própria história.